inveja da crítica

Quando comecei a escrever aquele conto que podia ser uma novela e acabou romance entre mim e a dactilógrafa que batia na sua velha máquina, letra a letra, as letras das palavras que eu ditava, disse para mim que mais valia ler antes a crítica que do meu livro fariam. E assim fiz. Peguei em dois maços de jornais que estavam para sair daí a alguns meses e pus-me a ler as críticas. Fiquei mais ou menos assarapantado ao constatar que nenhuma das dezenas de recensões críticas, publicadas na época, se referia ao meu livro. Telefonei a um amigo que andava pelos corredores das redacções a perguntar-lhe o que se passava, se ele não tinha ouvido falar do livro que eu estava prestes a concluir muito a tempo de merecer um comentário crítico antecipado. Ele disse-me que sim, que tinha sabido, mas que não lhe viera à memória e tinha escrito sobre o anunciado livro do conselheiro. Disse-lhe que ia esperar mais uns meses para ler alguma coisa que ele quisesse escrever a respeito do que pensa que eu estou a escrever. Ele disse-me que podia fazer a referência de favor, até porque me tinha em grande consideração e a tudo o que eu nem pensava. Agradeci-lhe e desliguei. Despedi a dactilógrafa a quem me tinha afeiçoado e comprei uma máquina eléctrica que podia ajudar nas lides da casa. E adormeci. Tinha uns meses para descansar sobre as ideias que pululavam entre a minha cabeça e a chocadeira eléctrica.

Lembro-me de ter ouvido, no sonho, a voz de um antigo primeiro ministro, em lugar mais elevado agora, a tecer considerações sobre acções do seu antigo governo, do que devia ter sido feito e ainda estávamos a tempo de não fazer, para o bem de todos nós. Mas o melhor de tudo, foi quando ao falar de uma cimeira ainda fresca, o comissário disse que, mais voo menos guantanamo, tinha aprofundado alguns problemas com o seu colega de cimeiras passadas, presentes e futuras. Esquecidas as babas do jornalista, assessor não tarda, dei comigo pasmado! O comissário reconhecera finalmente a verdade: ele aprofunda problemas.

Com a realidade a portar-se assim, nem me cansei a ver o que os jornais escreveram sobre o meu romance quando chegou a hora de não escrever. Ouvi o grito do povo: Golo! E da minha mãe: Menos um pinto!


[o aveiro; 29/06/2006]

entrelinhas



umas vezes escrevo notas fabricando as linhas e
mais tarde se passo outra vez pelo mesmo tempo
escrevo entrelinhas

e se ainda tiver as folhas perto de mim
e elas forem tristes e descoradas como eu
penduro-as para que se bronzeiem ao sol

os santos da casa

a missa por alma da tia mais viva e mais robusta
foi prevista há muitos anos para ser rezada

ao sétimo dia da sua morte ou em dia de finados
caso ela não morresse a tempo de ser lembrada

hoje é muito difícil garantir a missa em exclusivo
pela alma de alguém que parte sem avisar com antecedência
que é o que acontece com mais frequência

pesadelo

uma tia afastada
à medida que de mim
se ia afastando
deixava uma ladaínha vaga como rasto

já a vaca sagrada
sem medida, objectivo ou outro fim
que não fosse ir pastando
o meu caminho fazia desaparecer por ser o seu pasto

quando acordei
alagado em suor
descobri que a vaca com que sonhei
me limpava com mais língua que amor

ponho-me a pensar

Alternam nos governos e demais poderes - públicos e privados - os dois partidos ps com e sem d. Quando vejo nascer um ministro, nunca tendo visto, ouvido ou lido qualquer intervenção do dito sobre os assuntos que vai governar, ponho-me a pensar que é o partido que vai governar. E fico à espera de um fio condutor qualquer que dê consistência e seriedade à política. Quando isso não acontece, ponho-me a pensar que o partido recusou a política anteriormente seguida e procuro o balanço e a crítica para encontrar as razões e compreender a mudança. Mas algumas vezes fico perplexo quando não encontro nem o antes nem o depois do ministro. Como se não houvesse responsáveis e não houvesse partidos de governo. Menos ainda se compreende se pensarmos que os partidos que disputam o governo usam a disciplina de voto contra o voto em consciência em questões de governo.... Ponho-me a pensar.