as duas mãos

O homem deitou uns incensos numas brasas, separou o fumo com as duas mãos, e por essa abertura os prisioneiros saíram para um jardim.



(citado por Cristina Campo em Os imperdoáveis)

a feira

Polícias de três tipos - embuçados de metralhadora,
presos a cães ferozes
e desarmados à vista desarmada -
passam pelo arraial da feira como se fossem a calar a terra
e algemar ao chão da feira falsos nómadas

Porque é que ainda hoje tremo e me encolho
apanhado na rede de uma armadilha

tecida pelas mãos hábeis de um deus aclamado
como ditador sem que eu desse para o peditório.

a feira

Das feiras já não carrego porcos para criar
nem as vacas que pastam o caminho
para não saberem voltar atrás
dos donos tornados abandonos

Posso comprar tremoços mas ninguém espera
que eu tire do bolso o lenço de assoar novo e lavado
para os guardar antes de os meter na tromba
e escupir as cascas para a estratosfera!

a feira

Agora passeio na feira ao encontro da minha idolátrica:
num só quadro posso ter a santa maria adelaide de arcozelo
e a santa alexandrina de balazar; agora escrevem beata
num rigor que não conhecia à propaganda. E não fui capaz
de comprar o meu quadro porque tive medo de saber
como é pesado o caminho de regresso e nem ter casa do senhor
onde pendurar o meu retrato ao lado da escadaria do bom jesus,
do seu sagrado coração ao lado do coração de maria sua mãe
para todo o sempre expostos tão sem jeito e fora do peito

a morte do funcionário

deitado na banheira deixas que a o ar e a água trabalhem
os teus músculos ou são os teus músculos que batem
na água como quem bate num saco de pancada
enquanto adormeces e sonhas com as tuas dores

de dentes arreganhados por um descanso de quem não sabe
mais que descansar cansando-se entre viagens ao balneário
sabendo que automático é tanto o pagamento do salário
como a massagem que a médica acha que é a parte que te cabe

deste latifúndio.

o espectador resistente

o tempo não chega para tudo
a quem antes fosse surdo e mudo
e não conhecesse sáurios sobreviventes
no vale de lágrimas dos espíritos resistentes.


Sabe deus e alguns outros criadores
que prefiro ser um poeta desistente
a ser alguma coisa similar a valente combatente
de guerras entre editores, tradutores e tractores
ou, da tourada de merdas de vida, o inteligente.


E se ainda alguma coisa há que me arrelia
é ter acreditado e divulgado quem fica indecente
mais e mais a cada dia

instantâneo

na areia desenhas a nuvem

e pensas na chuva de agosto
que ao cair a desfaz



na areia desenhas a onda

e pensas nela a rebentar na praia
como onda que se desfaz