a bátega caindo

(...)

Acordo
com um som de lágrimas
nos braços. É a aventura

vestida da cinza fria
do cansaço. Bebo
o atrasado veneno da espera, um lagarto

passeando-se na boca.


(...)

José Carlos Soares; Bátega. Porto 2006

talvez dormir

Quando chega o Natal, dou por mim a seguir com redobrada atenção os anúncios. Recorto anúncios de bonecas quase vivas, as roupas, as casas para elas viverem, as máquinas, os heróis repetidos das bandas desenhadas e da televisão, os telemóveis, os jogos, as consolas, etc. Não, não os recorto dos jornais e revistas. Recordo-os da televisão que vejo e ouço. A televisão mostra o mesmo e mais qualquer coisa que o rádio, o mesmo e mais qualquer coisa que os jornais, etc. A televisão mostra mais.

E a televisão esconde mais que todos os outros meios juntos. Cada um dos três canais populares mostra-se a si mesmo, mostra o que afirma, mostra as suas meninas e os seus meninos feitos modelos, locutores, apresentadores e actores nos seus papéis e depois como actores que representam as suas próprias vidinhas, para voltarem como as personagens dos anúncios publicitários que tudo pagam e tudo compram e nos compram. Os três canais populares fazem de tudo para nos convencer que não há vida fora da vida que nos mostram. São a escola que finge vidas de sonho quando cria o vazio, quando levanta o biombo a separar a realidade... do sonho que comanda a vida.

Talvez seja por isso que a indústria se desdobra em canais e mais canais na obsessão doentia de chegarem a todos e a cada um, sem excepção. Os últimos anúncios para o estertor do mundo que conhecemos, dizem-nos que qualquer de nós deve ter acesso a 65 canais por toda a casa para que cada um faça a sua escolha de solidão em família. Acrescente-se isto aos telemóveis dos fala-sós pela rua e em casa, os computadores que nos ligam ao mundo virtual e nos separam do real, as consolas que fazem da nossa vida um jogo de guerra,... Tudo e em todos os lugares onde cada um possa grunhir a sua individualidade, até que o egoísmo supremo do desconhecimento dos outros transforme em nada as pessoas tipo pai, mãe, irmão, avó,...

Os mandantes destas indústrias e deste estado de coisas enchem a boca de declarações a favor da família e dos altos valores, enquanto vendem trincheiras que fazem das casas das famílias campos de batalha onde ninguém fale para se entender. Sem sabermos como, velhos e jovens aceitam o que antes era individualmente inaceitável - a tortura do sono e o isolamento em quartos minguantes.

De dia, as escolas abrem as salas de aula para jovens. Os jovens comparecem, uns para dormir, alguns para não despertar, outros para desesperar. Se isto é um pesadelo, é melhor acordar. Ou dormir?

[o aveiro; 7/12/2006]

a cor



se não há mais que uma cor, a cor que resta
está embalsamada e morta como o portador
que nos espreita

nós sabemos que o morto está lá tão confundido
com o castanho geral: a umbra coada é sombra,
a cor toda, a cor de tudo o que já não apodrece



onde não sobra a vida, a cor é o que permanece.

corpo humano



os alunos de artes do 11º ano da escola josé estêvão refazem a beleza interior do corpo humano.

os dias seguintes

De todas as coisas simples que fiz na vida, uma há que, quotidiana, me enchia de prazer e até alguma vaidade estética, confesso! Chegava a preparar-me para essa actividade com alguma demora mental e espreitava o espectáculo antecipadamente, criando momentos para deixar respirar a minha obra ou demorando este ou aquele aspecto para contemplação do meu público.

Estou a falar de antigas aulas de matemática falada, mas principalmente da escrita em quadros negros de ardósia. Desde a primária que cuidava da escrita, mas só muito tarde dei por mim a acrescentar a emoção da matemática manuscrita à escrita. Eu sei que o que escrevia era pré-determinado pela transmissão desta ou daquela ideia ou conceito, pela demonstração, pela técnica, ... Só que o que me dava prazer era a letra, os símbolos, as figuras limpas - brancas sobre o negro - que constituíam o quadro (igual e diferente dos outros dias) cheio de palavras, de expressões, ... cheio de gestos que me pareciam irrepetíveis. Houve mesmo alturas em que dava por mim a atribuir-me o papel de mestre escola que, pelo exemplo, pede imitação e pede autorização para ser exemplo de organização e pede admiração para aquela estrutura de andaimes seguros por nexos lógicos, humor emprestado e poesia. Se fosse hoje, teria fotografado muitos quadros antes de os apagar para todo o sempre. Do mesmo modo, tarde demais, tantas vezes desejei fotografar a memória da poesia que guardava em gavetas (de memória mesmo): a que tinha lido e a que improvisava cantando entre dentes ou discursando ao vazio.

A preocupação em sair desse palco para dar cada vez mais a ribalta aos aprendizes, felizmente ou infelizmente distantes da aprendizagem por pura imitação e memorização, fez com que fosse abandonando os gestos treinados para o quadro negro. Sem mágoa, fui substituindo o modelo que era por outro e por outro e por outro, na tentativa, talvez vã, de ser o caminho. Com nostalgia, vejo-me a voltar atrás num desejo absurdo de voltar ao tempo em que me pendurava nas paredes para colar o cartaz das minhas mãos treinando o quadro que viria a ser.

Ontem sentei-me a ouvir o debate sobre a universidade de hoje em diante. Acabei por adormecer e voltar a outra universidade onde crescia por dentro para fora de mim. Quando acordei, desenhado no quadro negro, olhava a nostalgia desenhada ao meu lado.

[o aveiro; 30/11/2006]

depois vieram tambêm cá