vira as costas ao comboio

pelo telefone

talvez ninguém possa falar das medidas
contra a educação

(por exemplo, morte das jóias da coroa de ontem: TICS, CEFs, cursos tecnológicos
seguidas de outras mortes "por inerência",
medidas tão excepcionais como um arrepio,
ao arrepio do planeado há pouco tempo ainda,
demonstração de falência da gestão do sistema educativo,
coisa mal educada, demonstração da cobardia
de cruéis trapalhões
para quem as pessoas deixaram de existir)


porque elas não existem realmente

já que
o que existe é o telefonema que anuncia
que antecipa

o que mais tarde cairá mais como facto consumado
do que como directiva de papel

ou

lei avulsa
que não é agora mais que uma forma
onde cabe o uso do abuso

contra a democracia e contra o direito
contra os direitos todos
individuais
dos profissionais

e sociais
das profissões

e

o exercício do dever.

O funcionário público sempre se levantara, manhãzinha cedo, para o seu exercício diário. Com a surdina ligada, para não acordar os vizinhos, o funcionário público marcava o ritmo dos movimentos: um, dois, três, quatro, cinco, um, dois, ... Depois do duche rápido, vestia-se e saía para a rua. Chegava cedo e ajeitava os papéis ao longo da pequena bancada, ao seu alcance e fora do alcance de quem se dirigia ao guichet onde se escondia e se mostrava o funcionário público para distribuir o exacto papel e não um qualquer papel. Ali sentado do lado de dentro do balcão antigo, não deixava ver mais que os seus olhos de ave, uma gravata e a mão cuidada que entregava o papel exacto, necessário para um determinado acto.

Uma destas semanas, às ordens do governo, o funcionário público deu por si espantado sem saber qual o seu papel nem que papel havia para dar. Sem aviso aos utentes e ao funcionário, o papel de ontem que e ainda não se cumprira em qualquer acto, já não servia, porque os actos e serviços, ontem necessários para os utentes, tinham deixado de o ser para o governante que os tinha altianunciado. O funcionário público nem sabia o que acontecia para fazer acontecer a ordem do dia. E isto começou a repetir-se com uma frequência assustadora. Alguns trabalhadores que, a confiar nos governantes, ontem desempenhavam tarefas absolutamente necessárias, revelavam-se inúteis e mesmo prejudiciais hoje, por ordem do governo. O funcionário público via como cada uma das pessoas acolhia a dor ao deixar de ser a pessoa que era, pessoa em si mesma e para os outros que a reconheciam pelos serviços imprescindíveis que prestava. Não só tinham baralhado os papéis no seu guichet, como as pessoas da fila em espera tinham perguntas para as quais as respostas de ontem não podiam ser repetidas hoje e nem havia resposta que se pudesse dar. E que papel para as pessoas à sua volta?

Num instante, os governantes mudavam decisões para nenhumas decisões mais caras.



Sem saber bem qual é o seu papel, o funcionário público levanta-se manhã cedo, desliga a surdina e acorda toda a gente a gritar para quem o quer ouvir que é urgente mudar estes governantes antes que eles gastem todo o dinheiro a desfazer o que ontem era uma boa razão para gastar o dinheiro de amanhã.

O dever de um funcionário público pode ser pedir a demissão dos seus governantes?

[o aveiro; 12/07/2007]

sala de espera

pela casa

na multidão que habita a cidade não podes esconder-te:

cada par de olhos te vê como se te conhecesse desde criança
e sentes que te seguem na tua deambulação sem esperança:

sabes bem que mão procuras e também sabes perder-te

o quadro

Praça do peixe

Nos dias que correm, para serem elegantes e poderosos, os homens mostram-se a correr pelas ruas e praças. Aproveitando a frescura da manhã ou da tardinha, um homem poderoso e elegante deve tomar a dianteira de uma fila de homens seguros treinados em ordem unida e em limpeza de bermas do trilho. Há fotógrafos que correm, em rápida marcha atrás, tanto como os homens poderosos e elegantes, para fotografar o andar saudavelmente enérgico dos homens elegantes estampado nas caras sorridentes que trazem sempre afiveladas. Os fotógrafos que tiram estas fotografias são admitidos nos trilhos e chegam mesmo a aparecer como matilha.

Os homens poderosos e elegantes são optimistas, nunca esquecem o sorriso, o brilho no olhar e a palavra fácil sobre uma grande cimeira, razão directa da ciumeira oposicionista e invejosa. 

Podem surgir do nada os homens elegantes e poderosos, podem ser feitos de nada, podem ter sido feitos para nada como se fosse para serem tudo que é o nada do outro lado. O maior encanto dos homens elegantes e poderosos reside no milagre da sua criação por uma revista de recados, modas e bordados. A essência “chic” dos homens elegantes transparece tanto na passada elástica sobre passadeiras vermelhas como na forma do tornozelo que se vê nas fotografias das tão significativamente importantes saídas dos automóveis negros. Há mesmo quem diga que neste mundo atapetado e apatetado importa mais a riqueza do pormenor que o pormenor da riqueza e que um homem poderoso pode ser elegante na medida da marca do sapato ou do verniz. 

Em momentos de grande pompa, o mais importante para os homens elegantes é não mostrar uma única estaladela no verniz e dar para a fotografia a ruga de simpatia, quase humano sinal de compaixão por quem precisa de ver a fotografia para acreditar na benção da sua existência. 

As pompas civis repetem-se: assembleias de accionistas, cimeiras, estreias de teatro superbemestar ou exposição de rica colecção em instituições subsidiadas pelo estado, velórios, baptizados e casamentos de estadão.  O cerimonial com artistas poderosos e elegantes não é subsidiado, porque é o estado a representar(-se). Até um mosteiro pode virar camarim. Não falta arte para representar, nem ponto para a asneira mais artística, nem fresco papel moeda.

Quem lhes dá corda aos sapatos? 

[o aveiro; 5/07/2007]

a leitura que nós somos

Se for verdade que nós escrevemos o que somos, é também verdade que nós somos o que lemos e diferentes seríamos se tivessem sido outros livros os que nos conduziram até aqui. Quanto mais leio, mais me sinto desmentido e, por isso, mais necessidade tenho de mentir a mim próprio para que o meu mundo não entre em derrocada.

Há quem diga que nós olhámos a religião como ópio do povo e a religião é afinal baseada na crença da imperfeição do homem terreno e que isso sim é a humanidade que anseia pela perfeição noutra vida que não nesta. E que procurar na vida terrena a perfeição humana transformou-se numa nova religião, ópio dos intelectuais que não se habituaram ao ópio do povo.

Quem assim nos olha, está sentado no penhasco mais alto e mais aguçado enquanto lê um livro de viagens escrito por um cavalheiro, e, sem acreditar em coisa alguma, deixam à turba a esperança na salvação eterna e aos intelectuais a degradação no culto do ópio e da perfeição humana em vida.

pobre e pedinte

Não me penteio e, por isso, um espelho anda atrás de mim pela casa. Não sou capaz de o partir porque o barulho da sua choradeira acordava o prédio inteiro. De vez em quando vai à minha frente em marcha atrás com um pente na mão. O desgraçado do espelho é cego, mas eu não dou esmolas ao primeiro espelho que me aparece.

Praça de peixe

Outros poderão vender. Mas eu dou mesmo, dou de barato a verdade de quase todos os governos das autarquias portuguesas estarem em grande sofrimento. E eu, pequeno contribuinte, com eles sofro quando a dor deles é pontada de desgosto pela herança de dívidas acumuladas. A dor da dívida inicial curou-se com pêlo do mesmo cão: quanto maior o montante em dívida, maior a capacidade de endividamento! Até um certo nível. Acima dele, os cães invadem a rua. No espaço social exterior ao canil das dívidas do município, as vítimas dos cães e os cães uivam.

Ainda a procissão ia no adro, e aparecia em cena uma especialização em controle de cães e afins a que chamaram engenharia financeira para as primeiras perseguições e reengenharia financeira para as fintas à realidade. Não sei em que faculdade se formavam estes engenheiros nem sei que refaculdades especiais são exigidas aos reengenheiros. Nem sei se há ordem para estes casos e muito menos ouvi falar em qualquer reordem. Dou de barato que há por aí uma dor em redor da banca branca.

Dar de barato para a dor é uma coisa.

Engolir tudo o que nos dizem para esquecer a dor é outra. Já cheiravam a peixe podre as notas explicativas para a obra de encerramento da praça do peixe fresco. Como justificar que não há notícia a chamar à responsabilidade os técnicos suspeitos de terem cometido os erros de que fala o encerrador? Pior fedor tem a notícia de que, com apoio em técnicos certamente e tendo 9 talhos disponíveis no novo Mercado, a anterior câmara prometeu um talho a cada um de 13 talhantes. A verdade mente? Seja o que for que tenha acontecido ou tenha sido dito, o que está a ser dito agora é uma baforada de mau cheiro vinda de lá, desse lugar que começa a ser incapaz para um mínimo de decoro.
Há quem pense que os políticos podem usar de alguns descuidos na linguagem e que isso é normal na luta política. Chamam-lhes peixeiradas para ofender as peixeiras. Eu preciso de acreditar no que me dizem os responsáveis para formar opinião, estar de acordo ou em desacordo. Também não dou de barato enxovalhos aos técnicos da autarquia.
Não faço ouvidos de mercador. Disparates risíveis presos do lado de fora das minhas orelhas não fazem de mim louco, nem tão pouco mouco. Fazem de mim.


[o aveiro; 28/06/2007]

porque hoje é sábado

Quando a noite chegou, fumei um dos charutos da herança de Estrela Rego. A varanda enche-se de sinais de fumo. Que partam com o ar que passa! Não lembro o que leio, não lembro o que ouço nem o que vejo. Deixo que a noite tome conta de tudo. Embrulho-me nela e deixo-me ficar escondido, embrulhado numa dobra de tempo feita por uma ausência de luz.

depois vieram tambêm cá