o douro
de muitos lugares se pode olhar um rio sentado num banco qualquer
ou feito criança ao colo de uma estátua de mulher
mesmo que os outros não vejam a estátua como nós a vemos
nem vejam o mesmo rio nem leiam o livro que nós lemos
ali naquele lugar se leio a página certa deixo o livro inteiro
menos uma certa página a única que ficou minha para sempre
amarrotada no meu bolso que a guarda e ao sonho que deixei de sonhar
para a ler repetidas vezes como um amante que hesita em despedir-se.
rua de todos os dias
todos os dias várias vezes ao dia passo por ela sem ver os amigos que nela moram
o acaso esconde-nos uns dos outros é o que vos digo por experiência
só vejo o martim que é um cão daquela rua tal qual como eu fiel à manhã
e à tarde
descanso
quando estou cansado e os braços me doem em negação
dou-lhes o gesto de varrer a melancolia de uma tela
tapando com nova paisagem a paisagem que lá estava
assim olhando em dias diferentes pela mesma janela
um amigo em visita pensa que um varredor deixa de ouvir
enquanto varre o pó do seu corpo para debaixo do tapete
e em cada instante procura o instante certo para partir
no fim de uma frase em que cai um . de silêncio
os meus olhos que não cabem na minha cabeça olham
a minha boca que refaz o dia pelo verso do arrependimento
e piscam o código sincero letra a letra para que a boca o soletre
obrigada.
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