A cauda da causa

Por estes dias, não há notícia que não fale do pavão.

O passarão adorava passear-se e pavonear a poderosa cor do seu papo. Sabemos como ele lamenta que as convenções não lhe permitam que exiba a sua magnífica cauda quando ele a abre no máximo esplendor de cauda de pavão. Para as visitas, apresenta-se o ministro com cauda tão brilhante como um piano de cauda.

Mas hoje, as notícias não dão margem a dúvidas e é do domínio público que os negócios do pavão ou são escuros ou são sujos. Alguns passarões ainda passam pelo desfile de vaidades, com a cauda de boca fechada.

O pavão de hoje está discreto, mais do que é seu costume. Não tem comentários a fazer, espera para ver que nada do que parece é. Quando chega a tarde, já a cauda o incomoda, uma manhã inteira trilhada no trânsito dos acontecimentos. Também lhe dói a inacção do papo. As televisões fazem-lhe perguntas sobre o tempo que faz nos paraísos fiscais, sobre o dinheiro que desapareceu, sobre a cauda da causa. Não responde a perguntas quem está habituado a falar por cima de toda a suspeita e até acima dos partidos que fizeram dele o rico ex-governante. Ele só responde a pedidos.

Vai para casa. A mulher vem recebê-lo com o costume do beijo. Pergunta como lhe correu o dia a ele e a todos os seus amigos que ela conhece ou de ouvir falar ou das filas de cumprimentos das tomadas de posse e poder de ministros e secretários. Ela gosta sempre de saber da saúde de cada um deles. Ele diz que estão todos bem, na esperança que ela volte para a fantasia da vida.

Mas sabe que ela vai ouvir notícias e fica à espera. Quando ela aparece a perguntar-lhe se é verdade, ele responde: É. Que tudo está a correr mal e que estão arruinados, ele responde: É claro, mulher, que estão arruinados. Quem? - insiste ela. Nós? Que ideia, mulher! Arruinados estão os do costume. Quem? insiste ela. O estado, os contribuintes, os outros. E a nós? Não acontece nada? Mulher! No paraíso, o que queres tu que aconteça? E podemos voltar à terra? Talvez volte mais tarde, se for bom para os negócios. Como salvador.

[o aveiro; 06/11/2008]

pássaros verdes?

Por muito que nos custe admitir, somos pássaros verdes.

Eles dizem-nos que houve desregulação, ganância desmedida, especulação criminosa, irresponsabilidade, etc e ao mesmo tempo dizem-nos que é preciso apoiar o sistema financeiro, criar fundos de garantia do estado para as poupanças dos aforradores e os depósitos dos clientes dos bancos. Como se nós pudéssemos admitir que, sem haver ladrão, as poupanças das pessoas mudem de mãos ou ganhem asas e voem. Como se nós não soubéssemos como foi difícil aplicar taxas ao grande capital financeiro e nos tivéssemos esquecido dos lucros astronómicos de bancos e sociedades financeiras ou do pede e despede gestores bancários que se tornam filantropos ao lavarem o dinheiro sujo ou saem de cena mudando de cenário. Como se nós não tivéssemos sido atropelados por banqueiros bons pais de família a ajudar à missa e a obras de divina inspiração.
Para além de admitirmos a evaporação das poupanças e das pensões como factos normais nestes tempos de crise e de centenas de milhares de desempregados, recebemos ordem para pagar o imposto que garanta aos banqueiros e financeiros o regresso ao casino de sempre com o dinheiro de sempre que é o dinheiro dos outros, esses que deram algum equivalente produtivo pelo dinheiro que guardam nos bancos da roleta russa.
Na sociedade do espectáculo, habituámo-nos ao ar respeitável de administradores de fantasias acima de toda a suspeita, administradoras de viagens pelo universo todo em representação de bairros sociais em jogos de sociedade, de culpados sem culpa formada, de colarinhos criminosos mais apontados a medo que a dedo. E não estranhamos que haja regulação sem reguladores, desregulação sem desreguladores, especulação sem especuladores, ganância sem gananciosos, irresponsabilidade sem irresponsáveis. E não nos podemos espantar que os reguladores continuem sem regular, os especuladores criminosos continuem a especular, os governadores continuem a governar-se e os administradores continuem a ministrar pouca honra e pouca vergonha.

Se não somos pássaros verdes, somos o quê? Vítimas da Dona B(r)anca. Palermas?


[o aveiro;30/10/2008]

o medo que se recomenda

Distraído, o homem segue a rua que o guia para o trabalho. Por momentos, vai esquecido dos problemas da manhã e vai entrando pela calma da tarde. Depois de atravessar a passadeira, ouve um carro que pára a falar consigo. Distraído, aproxima-se. O carro fala pelos cotovelos como se o conhecesse há muito tempo, contando uma história qualquer. O homem distraído vai ouvindo o conto do vigário como se não fizesse parte do que está a acontecer. De certo modo, o homem deixa que o conto se conte para que tudo seja rápido ou passe a passado rapidamente. Mas o carro segue-o e já está atravessado no cruzamento de duas ruas criando uma fila de carros que apitam. Para o carro que fala com o homem não há pressas nem cuidado com os carros que apitam. Só então o homem acorda da sua distracção e pede ao carro que fala que deixe o cruzamento. Para isso, presta-se a ouvir a história do carro com alguma atenção. A preocupação do homem que anda a pé com os carros que apitam é a sua desgraça. O carro que fala começa a fazer convites cerimoniosos para isto e para aquilo e oferece coisas que de facto quer vender e, sempre incomodando o homem e os carros que querem passar, conta o conto do vigário. O homem distraído acaba por ceder e dar algum dinheiro para se libertar do assédio desconfortável do carro. O carro pede mais dinheiro e quando o homem já desperto acelera uma marcha de despedida, o carro que fala começa a gritar: “senhor doutor não me faça isso!” criando em quem passa a ideia que o homem roubado é mal educado por desprezar o carro que fala e o rouba.
O homem que caminha conta a história como se tivesse sido pressionado e roubado por um carro: Porque não quer acreditar que tenha sido pessoa a torturar a sua entrada na tarde, até fazer da sua distracção calma uma irritação assassina a que o caminhante não quer dar guarida no seu coração.
Depois do trabalho, o homem vai para casa. Da caixa do correio, retira as cartas e o papelixo do costume. Ao abrir as cartas, percebe que uma delas é a oferta de um cartão bancário que nunca pediu e não quer. Já recusou aquele cartão várias vezes. De cada vez, tentaram convencê-lo que tinha de fazer isto e mais aquilo para desfazer o que não tinha feito. A irritação assassina volta. Contra quem o rouba insistindo em ofertas que ele não quer.
Começa a ter medo de si mesmo. Desesperado, aos torturadores mascarados de amigos, o homem calmo recomenda medo equivalente.


[o aveiro; 23/10/2008]

os caminhos estreitos

Nestes últimos tempos, andámos muito ocupados a tratar dos temas que têm de se passear por veredas e caminhos estreitos, como é o caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Esta discussão mostrou como em 10 anos mudou o discurso social e cultural relativamente às orientações sexuais e também que não mudaram as cautelas das galinhas gordas que ocupam os poleiros do poder, da oportunidade, o oportunismo de quem não encara direitos se estes estiverem fora da sua agenda cor de rosa.

Os caminhos estreitos que percorri um dia destes levavam-me até uma escola do 1º ciclo. Manhã cedo, os pais e as mães sobem pelo carreiro com as crianças pela mão até ao grande portão fechado. E ali ficam numa esquina inóspita até que alguém abre o portão por onde entram as crianças para a escola. Dei por mim a pensar como vai ser num dia de frio e chuva. Não há forma de escapar à chuva fria para os que sobem a ladeira até àquele portão.

Pela tarde, voltei à escola para uma reunião. Depois de muito tocar campaínhas, lá consegui entrar por uma porta estreita depois de a adivinhar. Lá entrar, entrei. Mas à medida que outras pessoas iam chegando para a reunião descobri que se não tinha sido fácil entrar, o difícil agora era sair já que não podia abrir a porta para os que queriam entrar.

Enquanto esperava, bem tentei encontrar um abrigo ou um simples banco onde um pai ou uma mãe pudesse sossegar na espera das crianças. Nem com a ajuda da imaginação consegui o banco e o abrigo. Não podia imaginar-me sentado naquelas escadas em dia húmido de chuva. E posso garantir que o mais fácil para qualquer responsável é reconhecer que não há o mínimo conforto naquelas salas para o trabalho produtivo de professores e estudo das crianças.

Dei por mim a pensar que muitas escolas são assim e que muitas há com muito menos condições que esta. De certo modo, não há lugar para pais e mães a não ser na compreensão humana dos professores que os recebem e, de certo modo, não há lugar para as crianças que precisam de respeitar regras de trabalho e de trabalhar. Nem há lugar para as crianças que precisam de brincar.

Não há forma de escapar a esta sensação de chuva fria nos ossos despejada dos beirais do desprezo pelas crianças. O desprezo faz da vida um caminho estreito.


[o aveiro.16/10/2008]

depois vieram tambêm cá