O absurdo paleio



Nunca procurei o absurdo. Mas quando o encontro, ponho-me a olhá-lo olhos nos olhos. Nunca se deixa intimidar. Quando dá por mim, a olhá-lo, não desvia o olhar. Só um olhar mais aberto que arqueia a sobrancelha como que a perguntar o que é que se passa. Penso que deve ser isso, porque o absurdo não abre a boca para perguntar. Aliás, pensando bem, o absurdo nem tem boca. Penso que evoluiu e perdeu a boca por não precisar dela. O absurdo mostra-se e guarda os olhos mais para se ver. Mas mesmo os olhos do absurdo já me parecem rudimentares e pouco devem ver. Isto é o que me parece, já que nunca pude falar com qualquer dos absurdos que se cruzaram na minha vida. E também não tenho notícia sobre como era o absurdo antes eu poder ver. E é, por isso, que também tenho sérias dúvidas a respeito da validade da minha teoria sobre a sua evolução para a não boca. Também não me parece que ouça apesar dos dois pequenos orifícios, um de cada lado da sua cabeça. Será aquilo que vejo mais que uma bola sobre as duas estacas do absurdo? Porque há-de ser uma cabeça? Se fosse uma cabeça, isso significaria um cérebro, uma mente do absurdo. E teria livre arbítrio, ao menos em parte? E as estacas que o levantam do chão serão pernas para andar? Ou o absurdo está preso ao chão como um vegetal vivo livre para ser abanado pela brisa ou pelo meu sopro, mas incapaz de fugir ou sequer desviar-se de mim. Nunca pensei em ir de encontro a um absurdo com que tenha dado de caras. E, por isso, sei muito pouco sobre as suas reacções e e sobre a sua mobilidade ou motricidade. Só sei que quando vejo o absurdo, posso olhá-lo e que ele se deixa olhar sem se sentir intimidado. Quando o rodeio, ao passar por ele, vejo-o de vários pontos de vista, mas ele parece-me igual sempre virado para mim. Agora que estou a pensar nisso é que me lembro de o ter visto sempre frontalmente, mesmo enquanto vou passando por ele. E é fascinante já que nunca lhe vi outro movimento para além daquele arquear das sobrancelhas. Que agora acomeço a duvidar de mim quando penso que vi isso. Será que vi isso realmente? Ou, ao descrever o encontro, descrevi o que esperava ter visto como quando vejo pela primeira vez uma pessoa que não conheço e não há razão para outra coisa senão o espanto contra um olhar fixo no vazio. Agora que o escrevi, tenho de reflecir sobre o vazio como absurdo e aceitar que, provavelmente, nunca dei de caras com o absurdo e afinal dei por mim a chamar absurdo ao vazio que olho fixamentede vez em quando. Outras pessoas devem ter visto o que eu vejo. Será que pensaram o mesmo que eu quando viram o absurdo? Duvido agora que lhe tenham chamado absurdo sequer. O mais natural é que, se forem inquiridas sobre o assunto, respondam de forma incoerente e declarem que não viram coisa alguma, ou pior!, que não percebem a pergunta e que o fulano deve ser mas é maluco. Valerá apena perguntar a alguém? Talvez a um amigo que seja capaz de ter pena de mim.

SOUS LES PAVÉS, LA PLAGE!

Recebi uma mensagem dos Rui Bebiano e Tó Lopes. Acabou a espera. Eles voltam.

"Na sequência do prometido quando do fim da ZonaNon, venho anunciar-lhe o lançamento de um blogue que integrará a participação regular ou ocasional de alguns daqueles que participaram nessa longa aventura. A orientação é um pouco diferente, mas não deixará de encontrar por ali chamas que ainda não se extinguiram.

Alguns aspectos de funcionalidade ainda se encontram a ser concluídos, mas, se achar bem, pode desde já acrescentar a seguinte ás suas ligações favoritas:

SOUS LES PAVÉS, LA PLAGE!
http://laplage.blogs.sapo.pt/ "


Saudemos o regresso!

De fora para dentro

Nas últimas semanas, por mais tempo do que seria desejável, ouvimos falar do sistema educativo por razões que não são as melhores. Num tempo de nova Lei de Bases, revisão curricular e medidas para o apoio aos jovens com necessidades educativas especiais, as vozes que se ouvem não falam disso, mas de dificuldades nas colocações de professores, compadrio em deslocações de professores, etc.
Uma boa parte da paz e do sucesso das escolas do ensino público vive de poucas coisas seguras: a colocação dos professores obedece a critérios claros e objectivos, garantindo que é colocado o profissional mais qualificado entre todos os que se candidatam; há programas estabelecidos que contemplam o necessário para a vida em conhecimentos e competências escolares; os sistemas de aferição e provas de exame são adequados aos programas e servem os seus objectivos de verificação do que se aprendeu e é necessário para novos estudos ou para ingressar numa vida profissional em que a formação subsequente mais direccionada muito depende da formação escolar inicial. E vive principalmente de valores sociais de integração que é preciso incutir pelo exemplo de todos os dias, a começar e a acabar na vida dos responsáveis.
Para estragar, já nos bastam as calamidades e a maldade que todos os dias assaltam a vida social relatadas pela comunicação social e cabe também à escola interpretar e moderar. O pior que nos pode acontecer é termos responsáveis pela educação sem valores, que não possam ser apontados como exemplos de honestidade, respeitadores das regras sociais e das leis, cumpridores das obrigações individuais para com a comunidade.
A interferência nos exames nacionais do ano lectivo passado, as malfeitorias de favorecimento no acesso ao ensino superior para familiares de altos responsáveis, as deslocações de favor e à margem da lei de professores de umas escolas para outras são factos e actos perniciosos ao sistema de valores que o sistema educativo também é. Só nos faltava a notícia desta semana que envolve o próprio Ministro da Educação em incumprimento de obrigações e jogos.
Que pode fazer a escola? Sejam e façam como nós dizemos, não sejam como mostram ser os nossos responsáveis? Nada é pior para a educação de um país do que ser atingida pelo mais fulminante desalento: “Já que ninguém se salva, salve-se quem puder!”


[o aveiro, 15/01/2004]

A professora.

Nos dias mais calmos da vida, saio de casa para a leitura do jornal da manhã, acompanhada de café e água mineral. Aproveito também para desenhar e escrever à mão num caderninho de folhas soltas, fazendo exercícios de salvação dos meus dedos tolhidos pela artrose da idade, pelos teclados das máquinas e na perseguição de ratos que teimo em domesticar.

Assim estava eu escondido nesse meu canto de café, quando ouço gritar o meu nome ou parecido, logo seguido de uma melopeia sobre a Escola José Estêvão. “Já não te lembras de mim? É natural, mas eu sim eu lembro-me bem de ti. Ainda estás na escola, não?” Puxei pela memória dos milhares de rostos que vi na escola e tenho de reconhecer que a cara que me fitava não me é estranha. Devo ter assentido nesse reconhecimento vago. Tanto bastou para ouvir uma reclamação gritada contra a situação, contra as colocações de professores, contra o Ministério, contra a corrupção, contra tudo e todos. Em calão claro, grosseiro. E a história gritada para todo o café: “Concorro todos os anos, já há cinco anos que não sou colocada, não tenho dinheiro, agora estou à espera do rendimento mínimo, …” Finalmente, em tom ligeiramente mais rouco, pediu que lhe emprestasse dois euros. Do pouco dinheiro disponível, dei-lhe a única nota que tinha. Quando ela se foi com o dinheiro, ouvi-a pedir o troco da nota para ir à máquina comprar cigarros. Enquanto saía do café, ainda gritou: “Sei muito bem onde te encontrar, quando tiver o dinheiro”.

Podia vir aqui falar de uma irritação surda contra ela que ia fumar o dinheiro. Mas não me sobrou irritação – só uma funda turbação e muita tristeza. Não só a mim: nenhuma outra fala humana se ouviu durante a altercação.

O que é que é injusto? Sabemos que as crianças não podem sofrer com a administração de ensino por uma pessoa que perdeu a identidade na espiral de desgraça em que se perdeu a professora que nos enfrentou no café. Mas desejamos ardentemente que seja colocada como professora se esse for o seu direito! Só podemos revoltar-nos por não cuidarmos que cada pessoa possa cumprir-se num destino digno e útil. Se tivesse sido professora nos últimos cinco anos, esta mulher seria completamente diferente?

A pessoa que me enfrentou no café deixou-me diferente, tocado pelo seu assomo de arrogância trágica. Como uma mágica unidade estatística saltou dos relatórios dos governos. Para não me deixar indiferente.


[o aveiro; 8/1/2004]

Bom Ano

Para todos os que se interessarem por isso, a minha vida só depende da vontade dos outros em viver bem o ano de 2004. Vivam bem, pois! Se não precisarem de fazer por isso por vocês mesmos, façam-no por mim. Eu mereço alguma compaixão. Cada um de nós merece.

Para mim, isto é coisa da idade, o que conta é que está passsado. 2003 já cá canta e não vai constar da minha pedra tumular.

As minhas fotografias são todas a preto e branco, mesmo quando não parecem. Umas vezes, vejo o negativo; outras vejo pelo positivo. Ainda consigo fazer revelações. Não há qualquer angústia em saber. Também não me amofino quando finjo que não sei.