Os olhos nas máscaras.
Arsélio Martins


A máscara cobre o desespero das mulheres à beira da vala comum que o Iraque foi e desvenda.
Nas últimas semanas usámos máscaras na China, Vietname, Canadá. Para tentar escapar ao contágio da pneumonia atípica, usamos máscara. Olhamos uns para os outros perplexos.
Nas horas de ponta de Tóquio e das cidades mais poluídas, as máscaras brancas começam a colar-se nas caras. Os nossos olhos estão diferentes. E as nossas vozes saem distorcidas pelo medo e pelas máscaras.

Na última semana, os napolitanos andaram de máscara pelas suas ruas. Duas semanas sem recolha dos lixos urbanos e um ar, apodrecido e nauseabundo, vagueia pelas ruas de Nápoles. Há quem diga que tudo talvez tenha acontecido por manobras dos donos do negócio do lixo. O lixo pode ser transformado num negócio fabuloso e, a exemplo de Nápoles, as comunidades podem ser manipuladas por um novo terrorismo. Vimos os carros a abrir caminho empurrando e esmagando sacos de lixo pelas ruas de Nápoles e vimos os perdidos olhos das pessoas em surtidas para as compras do pão de cada dia.

Em Portugal também se falou de lixo, das novas opções para o tratamento de lixos perigosos, mas também para o lixo em geral que não cessa de crescer à nossa volta, como cintura às nossas vidas. As freguesias sobrepovoadas optimizaram de tal modo a ocupação do espaço para os produtores de lixo (que somos todos nós) que não sobra lugar onde se guarde o lixo. E há comunidades a suspeitar de quem lhes compra o quintal para nele depositar as sobras de quem se empilha nas concentrações urbanas. Podemos deixar que o lixo se transforme num grande negócio? Na última semana, ouvimos falar da área metropolitana de Aveiro que vai democratizar ainda mais o acesso aos bens, estabelecer as ligações que faltam, atrair mais gente para a vertigem do desenvolvimento e… para mais lixo. O lixo que depositarmos na definição de políticas nacionais, regionais e locais pode vir a ser morte e mortalha. Conheço localidades do nosso distrito que são tanto dormitórios como lixeiras: as câmaras construiram ou autorizaram a construção das casas sem cuidarem de criar sistemas de transporte e tratamento dos resíduos que concentraram. Esses autarcas usam a máscara da distância para não cheirar o seu apodrecimento.

Olho os olhos assustados de Nápoles nas ruas assoladas pelo lixo que voa das casas e olho como metáfora triste os sacos de lixo que, contra a democracia e o direito, a fúria de Felgueiras atira com as catapultas irracionais.

Hoje mais que ontem, o lixo é uma arma global pronta a ser disparada. Um pouco acima das máscaras, os olhos apontam ao céu azul para distrair as crianças do pesadelo do caminho.

[artigo de "o aveiro" de 22/5/2003]

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