Eu gosto de pensar que me acham uma pessoa normal. E isso quer dizer que tenho família, amigos, conhecidos, compromissos sociais e políticos, profissão e colegas de trabalho. Uma única vida? Uma única vida de vidas - vida íntima e privada, vida profissional, vida cultural, académica, social, politica. Para cada uma, a normalidade exige diversos níveis de pensamento, de discurso nos gestos e nas palavras, de actos, etc. Quantos disparates digo eu em casa e ao telefone, com os familiares e amigos? Eu sei, e todos o sabem, que, a quente(!), digo coisas sem consequências sociais porque são filtradas e excluídas pela razão de quem vive em sociedade. Quando o disparate é grande, há logo quem diga: Nem as pensas!. E há sempre quem se ria e me dê o devido desconto. A quem é que nunca foi preciso dar desconto?
As coisas que eu digo e faço nos meus círculos restritos, para terem sentido e serem interpretadas sem dramas por estranhos, exigem explicações detalhadas de contexto, ambiente, da maneira de ser, dos tiques, das rotinas da felicidade, do círculo virtuoso da intimidade, da amizade, da cumplicidade, etc.
Se alguém precisar de escutar os barulhos de um dos meus dias inteiros, não vai ter grandes surpresas se for normal. Mas se quiser compreender a totalidade do que escuta vai pedir uma descrição do meu mundo. Ou não perceberá coisa alguma.
Eu tento cumprir o que da boca me sai para o público e se transforma em compromisso social. Disso presto contas sociais. Espero compreensão, cumplicidade de leituras e lealdade aos que me rodeiam nos diversos círculos em que me movo.
Há os que dizem que quem não deve, não teme. Não devo nem temo? Eu não devo nem dou a minha vida privada a quem quer que seja que nela não entre por direito. E se for um estranho a ter acesso à minha vida privada por direito (que a sociedade lhe confere) assiste-me o direito de esclarecer e de poder continuar a usar os meus códigos próprios, pessoais, privados, … que me tornam único e reconhecível por quem me ama tal como sou em cada um dos círculos concêntricos que se intersectam com os círculos concêntricos de cada uma das outras pessoas.
Eu quero ser eu e o outro, o que escuta e é escutado, o que não trai nem é traído, o que vive livre no seu lugar. Apesar de ter vivido a última semana neste pais, quero ser eu.
[o aveiro; 23/10/2003]
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