1.
Quando cai um governo absurdo, reconciliamos o nosso espírito com a nossa vida e a vida à nossa volta. Por momentos esquecemos que a vida à nossa volta se entrança como o ninho mais que perfeito para chocar o ovo da serpente absurda.
A sociedade é o nosso ninho e, ao mesmo tempo, é o ninho das nossas víboras e dos nossos adorados cucos. De quem se fala? Nesta vida social, os exemplos de sucesso na iniciativa são de cucos que, sem corar, defendem a necessidade de empurrar para fora dos ninhos os outros portugueses - trabalhadores, claro! - para melhor os depenar. O governo mais absurdo foi aquele, que sendo igual aos outros no essencial, se atribuiu o direito a um desplante de cuco humano sem culpa e sem remorsos perante a queda dos outros no desemprego e na miséria.
Os exemplos poderosos (da sociedade e, em particular, da família) (des)educam mais do que mil palavras de professores.
2.
Nos anos 30 do século passado, um filósofo falava no princípio da tragédia da pedagogia: ?Estudar é tão estranho como ser contribuinte?. Raramente se começa a estudar ou se estuda em resposta a uma necessidade individual e intrínseca. Estudamos por razões exteriores ou sociais. É preciso estudar para aprofundar e manter as actuais condições de existência de cada um de nós na sociedade. Pagamos impostos para melhorar e aprofundar a nossa organização social que regula e regulamenta as interacções entre indivíduos e grupos, organiza e presta os serviços essenciais à colectividade de indivíduos interdependentes. Fugir aos impostos significa não dar valor aos serviços sociais de educação e ensino, justiça, cuidados de saúde, protecção na doença e na velhice, etc ou significa que não acreditamos que o Estado esteja organizado para prestar esses serviços ou que temos direito a receber sem o dever de dar em troca.
O que sabemos é que as prestações individuais para o conjunto da sociedade são extremamente desvalorizadas. Uma grande parte da sociedade não confia no valor do saber escolar e não corresponde à necessidade de certas competências escolhidas como imprescindíveis pelos poderes políticos nacionais e transnacionais. Associa-lhes uma competição ganha como vingança ou perdida a favor dos mais ricos (e dos cucos) que utilizam a escola toda para perpetuar domínios e assegurar explorações ilegítimas.
A escola é como se não fosse essa arena.
3.
Esquecendo esta tragédia primordial do saber escolar e da escola, pensamos a educação e o ensino deambulando entre cenários que se substituem uns aos outros pela nossa mão de cegos que nem querem ver, lançando culpas sem remorsos sobre os que trabalham no ensino sem sucesso e desculpas sob a forma da atribuição de toda a desgraça a uma ou outra frase assassina de um papel qualquer que, bem investigado, afinal ninguém leu.
Como se pode ver pelo meu acordo com as lições de metafísica de Ortega y Gasset, com Nuno Crato (no Expresso) posso achar um disparate escrever que a tarefa principal que se põe aos professores seja conseguir que as crianças aprendam a gostar da matemática se for verdade que todo o ensino se tenha dirigido para coisas que divirtam os alunos fazendo passar a aprendizagem para segundo plano. Mas não são as universidades que procuram e aceitam como futuros professores do ensino básico pessoas que não obtiveram êxito na sua escolarização básica em Matemática. Quem diverte quem?
4.
As medidas avulsas de David Justino estragaram o que de positivo nos sobrara dos governos de Guterres em diálogo social sobre o ensino, horários de trabalho a responsabilizar os estudantes, acerto entre documentos programáticos e organização escolar para os levar a cabo, entre natureza de aprendizagens e sua certificação, entre ensino secundário e acesso ao ensino superior.
Esperamos voltar a alguns equilíbrios, principalmente, fugir das mudanças para pior no ensino secundário recorrente. E que o governo devolva aos professores o poder, a responsabilidade e as ferramentas profissionais para fazer dos jovens os responsáveis pelo seu futuro. Na nossa vida e na nossa escola?
Sem que a escola seja reserva de cucos.
[a página da educação; 4/2005]
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