Anjos de orelhas quentes

Segunda-feira. Sentada na esplanada virada ao sol da avenida da manhã, a Mariana ri-se ao ver-me passar. Aumentar a luz dos olhos e o sorriso da Mariana é fácil e natural. As palavras da circunstância do encontro soam embrulhadas em gargalhadas saborosas como o pão nosso de cada dia, naquele lugar soalheiro e ainda frio. Ela fecha a agenda. A capa está carregada de anjos sorridentes. Brinco: "O que sabes de anjos? Sabes ao menos as patentes, a hierarquia?" Ela olha para a agenda e, piscando o olho a um dos anjos da capa, responde-me que nada sabe da legião dos anjos. A hierarquia angélica dá-nos para rir. Continuo a rir-me quando retomo o inevitável caminho .
A agenda política é marcada por pessoas que não são anjos. De acordo com os seus interesses, ouço as pessoas concordar e discordar dos assuntos postos na ordem do dia pelos jornalistas ou pelos políticos. Cada um lamenta à sua maneira que a fruta da época não seja a sua fruta preferida, que é o mesmo que dizer que lamenta que a época não seja a sua época, para todo o sempre.
Há assuntos, como os casamentos de homossexuais, sem época propícia à discussão dada a quantidade, a qualidade e a gravidade dos outros problemas de sempre. O que é o mesmo que dizer que as pessoas que o protagonizam não existem ou que, existindo, são um problema artificial a desviar a atenção dos políticos do fundamental para o acessório. O fundamental é coisa que ninguém conhece mas pronto a aparecer, sempre que preciso for.
E lamentamos todos que as agendas sejam contaminadas pela excessiva divulgação dos casos capazes de mobilizar espectadores, ouvintes ou leitores. Lamentamos,... enquanto tratamos os problemas por tu, os classificamos e, com a maior serenidade e urgência que a vida exige, os resolvemos. Não é boa política, na base de uma qualquer lista de prioridades, esconder problemas e pessoas sob o tapete que amortece o sapateado dos especialistas em passos perdidos.
Como não é razoável que se amplifique, em importância política, a denúncia de um jornal diário, sobre "escutas". Tanto mais que, passado algum tempo, a montanha de audiências e declarações dos políticos pariu um rato digno desse nome e perseguido por supostas secretas socráticas pouco secretas ou controle governamental sobre a "ordenação" dos processos-crime a conduzir. Escuta quem tem as orelhas a arder das escutas.
Da agenda dos anjos alados não consta qualquer debate sobre o sexo dos anjos ou sobre a hierarquia dos assuntos. Com suas plumas caprichosas, os anjos da época desenham uma forma de lei onde cabem todos, livres e iguais. Porque os anjos não emprenham pelos ouvidos. E eu também não.

[o aveiro; 09/02/2006]

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