UM.
para que te levantas? a tua mãe sussura
na sua voz velada de almas penadas que bocejam
nas noites mais doentias como nascentes
de rios do pânico em que dás por ela penando
dás por ela? não te perguntava a tua mãe
outra coisa enquanto a casa ruía sob a chuva
e tu vestias uma cara de fazer caso, uma cara
de meter medo, de meter o medo no buraco da noite
onde dás por ela ao dar pelo bafo da besta adormecida
aos teus pés
se reparares bem são os teus pés fincados na lama
quem te segura enquanto vigias a fala da tua mãe
o funil da loucura mais divertida dás por ela espelhada
nos seus olhos marotos quase cerrados.
para que te levantas? há tanto tempo não sais de casa,
do buraco onde vives amarrado ao bloco de notas
raptado pelas almas que voam em volta das palavras
que já disseste e ninguém ouviu.
DOIS.
há sempre quem jure que me viu na rua
ou que sabe que passo o dia numa escola pública
onde supostamente dou aulas
não sou capaz de desmentir quem está pronto a jurar
citando mesmo o que eu disse em tal dia e a condizer
com a roupa que trazia vestida para a ocasião
nem eu mesmo sei porque é que as pessoas dão por mim
se é certo que não vou a lugar algum fora daqui
vai para muitos anos de falsas partidas.
TRÊS.
para que te levantas tu? se nem os olhos consegues abrir,
se as tuas noites foram pisadas por toneladas de dias sem lua,
se os teus dias dão abrigo a almas sem abrigo e torturadas,
se nem sabes sequer das tuas pernas ou como pesar-te
porque te esqueceste dos protocolos de alquimista
que foste num passado em que usavas pesa-espíritos
com a desenvoltura da tua imprudência.
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