Aquelas caras não me são estranhas. Aquelas caras não me são estranhas! A mulher repetia a frase como se estivesse a falar com os seus botões. As vozes não me soam estranhas. As vozes não me soam estranhas! A mulher repetia a frase como se precisasse de falar para si mesma para reconhecer o som da sua voz e, quem sabe?, identificar as vozes gordurosas, suadas pelos poros da televisão ligada.
O homem esticava a sua atenção para tentar perceber aquelas contas que se faziam com um grande número de pequenas quantidades, soma milionária de parcelas pequeníssimas. Vinham-lhe à memória as histórias dos golpes de bancários vigaristas que tiravam um cêntimo a cada conta de cada um de milhares de clientes do banco. Sempre se tinha deixado fascinar por esses golpes e chegava a imaginar caras patuscas para os seus autores. Acordou para olhar com atenção para aquelas caras. Os seus golpistas eram uns vigaristas simpáticos parecidos com o Robin dos Bosques que roubavam os banqueiros ou os clientes dos banqueiros para si mesmos ou para um grupo de amigos ou mesmo para uma seita de pobres tipos que de pouco precisavam. Tinha começado a perceber que o golpe tinha sido feito legalmente pelos próprios bancos sob as ordens daqueles senhores.
Não! Ouviu-se a dizer em voz alta, falando para a mulher. Estas caras que estás a ver não podes lembrar-te delas das nossas conversas sobre os heróis que associámos ao golpe dos centavos. Continuou ele. Também duvido que te lembres das caras e das vozes por serem banqueiros. Dos bancos nunca conhecemos mais do que o pessoal dos balcões.
Está bem. Tens razão. Eu nunca ouvi falar um banqueiro dos nossos dias. Concordou ela.
O homem e a mulher calaram-se para continuar a ouvir os senhores. Ouviram os senhores defender que é legítimo o que é legal, que, enquanto o vigarizado não reclamar, o vigarista não pode ter culpa nem remorso, até porque isso seria perda de iniciativa e eficácia. Ao determinar um fio de irracionalidade sem vergonha nos discursos dos senhores, a mulher virou-se para o homem para lhe dizer: Não estranho as caras e as vozes destes senhores e nem estranho o que dizem. Eles e as suas ideias devem ter passado por algum governo português ou pela administração de alguma empresa pública portuguesa.
Só pode! Concordou o homem.
E calaram-se.
[o aveiro; 23/11/2006]
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2 comentários:
Eh pá... que chatice... também tu andas a bater nos pobres banqueiros?
A Banca é nossa amiga: dá-nos casas, carros, electrodomésticos e agora viramo-nos contra ela... complexo de édipo...?
Há-que pagar... para sempre.
Um abraço!
Essa do dá-nos casa ... dito pelos senhores também é uma pérola.
Eu pensava que eles prestavam um serviço pelo qual se faziam pagar... bem. Eles dizem coisas que .... são genuinamente portuguesas. E falar do risco é ainda uma treta... já que estão a oferecer/impingir crédito a torto e a direito, competindo entre eles de forma muito agressiva, diga-se... Se fosse muito arriscado, tinham de tomar cautelas e caldos de galinha... como tomavam ainda não há muito tempo...
Eu gosto muito de banqueiros.... sérios e isso nada tem a ver com administradores arrivistas e outros banqueiros de brincar que não cresceram em graça e sabedoria, mas antes se governaram ... ou estiveram no governo e ficaram com a escola toda para a pequena grande vigarice e para os argumentos de heróis de pacotilha.
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