De todas as coisas simples que fiz na vida, uma há que, quotidiana, me enchia de prazer e até alguma vaidade estética, confesso! Chegava a preparar-me para essa actividade com alguma demora mental e espreitava o espectáculo antecipadamente, criando momentos para deixar respirar a minha obra ou demorando este ou aquele aspecto para contemplação do meu público.
Estou a falar de antigas aulas de matemática falada, mas principalmente da escrita em quadros negros de ardósia. Desde a primária que cuidava da escrita, mas só muito tarde dei por mim a acrescentar a emoção da matemática manuscrita à escrita. Eu sei que o que escrevia era pré-determinado pela transmissão desta ou daquela ideia ou conceito, pela demonstração, pela técnica, ... Só que o que me dava prazer era a letra, os símbolos, as figuras limpas - brancas sobre o negro - que constituíam o quadro (igual e diferente dos outros dias) cheio de palavras, de expressões, ... cheio de gestos que me pareciam irrepetíveis. Houve mesmo alturas em que dava por mim a atribuir-me o papel de mestre escola que, pelo exemplo, pede imitação e pede autorização para ser exemplo de organização e pede admiração para aquela estrutura de andaimes seguros por nexos lógicos, humor emprestado e poesia. Se fosse hoje, teria fotografado muitos quadros antes de os apagar para todo o sempre. Do mesmo modo, tarde demais, tantas vezes desejei fotografar a memória da poesia que guardava em gavetas (de memória mesmo): a que tinha lido e a que improvisava cantando entre dentes ou discursando ao vazio.
A preocupação em sair desse palco para dar cada vez mais a ribalta aos aprendizes, felizmente ou infelizmente distantes da aprendizagem por pura imitação e memorização, fez com que fosse abandonando os gestos treinados para o quadro negro. Sem mágoa, fui substituindo o modelo que era por outro e por outro e por outro, na tentativa, talvez vã, de ser o caminho. Com nostalgia, vejo-me a voltar atrás num desejo absurdo de voltar ao tempo em que me pendurava nas paredes para colar o cartaz das minhas mãos treinando o quadro que viria a ser.
Ontem sentei-me a ouvir o debate sobre a universidade de hoje em diante. Acabei por adormecer e voltar a outra universidade onde crescia por dentro para fora de mim. Quando acordei, desenhado no quadro negro, olhava a nostalgia desenhada ao meu lado.
[o aveiro; 30/11/2006]
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2 comentários:
Viva Mestre
Pena é que não tenha fotografado.
Pena é que as nossas memórias não tenham capacidade de impressão.
Porque, acredite, muitas fotografias ficaram gravadas desses belos momentos.
Um Abraço
Como sempre, a sua paixão pelo ensino, Professor.
Ao percorrer com os olhos todos os blogs que tenho gravados nos meus favoritos vi este, e sem nada de mais importante para fazer, decidi deixar um comentário. Achei que tinha coisas por dizer. E lembrei-me de si.
Primeiro que tudo, o texto, está mesmo.. qualquer coisa. Não sou a favor de um ensino teórico, mas admiro o gosto com que fala de dar aulas. Foi, até hoje, provavelmente, um dos melhores professores que tive. Não que compreendesse sempre as suas aulas, porque não as compreendia sempre. Mas porque sempre transmitiu um grande gsto pelo ensino. Via-se que gostava daquilo. E foi uma Pessoa que, acima de tudo, acima de Professor, era uma Pessoa com P grande, que gostei muito de conhecer. Admiro-o por ter sido o professor que mais respeito me mereceu até hoje, que maior gosto transmitia do ensino, que mais sabia daquilo que ensinava, que mais sabia entender os alunos. Poucos encontrei assim, talvez agora na Universidade, venha a conhecer algum...
Continue a ser o Professor que é. Podem não gostar, mas quando crescerem certamente vão dar-lhe o devido valor.
Um abraço
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