sobre as água, o olhar.

Sempre li com atenção especial as entrevistas a pessoas que respeito e os artigos crónicos escritos por pessoas que admiro. Dou por mim a concordar com os seus argumentos e, por vezes, com um estudo inteiro. Digo para mim mesmo que se concordo com a análise e até compreendo as suas consequências, para ser coerente, devo defender isto ou aquilo. Mas não.
Tenho dado por mim a acreditar nos profetas que admiro quando escrevem e dizem que mais vale atinar com alguma corrente para diminuir aspectos negativos de alguma acção ou reacção. Afectam-me especialmente os amigos que argumentam a favor de que o crescimento das cidades e das metrópoles, das redes de distribuição de bens (também culturais) tem um sentido único para onde somos levados como tralha sem utilidade para o futuro que parece querer ser o futuro de ninguém. Mais me aflige a ideia que a cultura popular só pode ser uma concertação comercializável em bolsa.
Mas é o nosso olhar sobre o descampado das águas que avista a nossa substância e o nosso espírito vive mais no que não fizemos do que nas grandes rodovias e construções que levantámos contra o céu. Das cidades que se juntam numa só cidade que é a nossa (Aveiro, Ílhavo e Gafanha da Nazaré, por exemplo), para a fala da alma, sobram-nos as coisas que sempre foram, como se não houvesse memória do tempo em que não eram. O mar, a prata da água, os canais, o lodo, os cricos, o isco, a pesca, o porto, o bacalhau, a faina, a companha, a arte chávega, o sal e os mercantéis, o junco, o moliço e os moliceiros são tudo o que reivindicamos como nossa matriz e mãe de cultura. Até os grandes negociantes (também da política), comerciantes e industriais ou empresários que vivem para o culto do betão, dos rasgões rodoviários e do movimento frenético para nenhures usam e abusam das palavras da matriz.
E, contra toda a razoabilidade da tal inevitabilidade, dou por mim a pensar que a única grande obra entre Aveiro e Ílhavo pode ser uma ciclovia sempre efémera, um caminho pedonal que nos aproxime da água e do que lá está como dantes estava. Nunca uma estrada e muito menos uma rede de ruas, casas e esgotos. Sempre que fazemos uma coisa onde estava outra, estamos a cegar-nos para o que deixamos de ver. A pior cegueira vive numa casa desnecessária.
Como oposição, apresento alternativa: não fazer disparates é o contrário de fazer disparates.

[o aveiro; 20/09/2007]

1 comentário:

Poeta de Fermelã disse...

http://poetadoalem.blogspot.com/

Cumprimentos

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