o avesso do direito
1.
Onde guardas o que ouves? Não pode ser na cabeça, que a cabeça não chega para tanto. Quando te pergunto o que me ouviste dizer-te um dia qualquer do passado, tu recitas palavra a palavra o que eu te disse. Ou assim me parece.
Ou guardas realmente o que eu disse em todos os dias da nossa vida e lês a memória das coisas que dissemos ou inventas o que eu podia ter dito e eu, falho de memória, aceito como muito plausíveis aquelas frases adequadas à circunstância e ao dia que, sem lembranças, rememoro por intermédio da tua memória ou da tua imaginação.
De qualquer modo, não podes guardar tudo na tua cabeça. Memória gravada ou ferramentas da imaginação de memórias não cabem. Ainda pensei que usavas uma competência qualquer para guardar a informação rarefeita e para a reorganizar instantaneamente sempre que dela precisavas, mas isso também ocuparia espaço que não sobra na tua pequena cabeça.
2.
Onde guardas o que sentes? Há quem pense que guardas no teu coração o que sentes, mas o teu coração não é mais que um músculo para cumprir rotinas de músculo - sístole e diástole - e alimentar em todos os sentidos a canalização do saco de sangue que tu és. Há quem pense que guardas as emoções dentro do teu peito, mas eu acho que não cabem no teu peito os disfarces para as alegrias e tristezas e para as dores que se derramam da nascente do pensamento que é exterior a tudo o que sejas tu.
Umas vezes estás cheio de alegria e não cabes em ti de contente.
E já te vi suar indignação na voz e a rebentar de fúria. Vi que as emoções que experimentaste não cabem em ti e vivem num lugar longínquo e inacessível. Há uma lista rabiscada que se enrodilha no bolso dos segredos.
3.
As tuas ilusões acordaram cansadas e nem tens força para juntar a voz da tua mão ao silêncio. E não podes senão escrever o silêncio de tempestade por te sentires obrigado a ouvir vociferar dirigentes de faca na liga e de federação do interesse privado em negócios milionários que viram interesse público e viram do avesso o estado de direito.
Já é mau saberes que existem. Horrível é saber que eles estão em toda a parte e até dizem o que pensam.
4.
Onde guardas o que calas? Para onde vais, quando o ar é irrespirável? Fechas os ouvidos ao que precisas de ouvir para não ouvir a boçalidade criminosa? Um vendaval de silêncio dissolve no oco as palavras que ouviste e não podes devolver.
[o aveiro; 7/9/2006]
Onde guardas o que ouves? Não pode ser na cabeça, que a cabeça não chega para tanto. Quando te pergunto o que me ouviste dizer-te um dia qualquer do passado, tu recitas palavra a palavra o que eu te disse. Ou assim me parece.
Ou guardas realmente o que eu disse em todos os dias da nossa vida e lês a memória das coisas que dissemos ou inventas o que eu podia ter dito e eu, falho de memória, aceito como muito plausíveis aquelas frases adequadas à circunstância e ao dia que, sem lembranças, rememoro por intermédio da tua memória ou da tua imaginação.
De qualquer modo, não podes guardar tudo na tua cabeça. Memória gravada ou ferramentas da imaginação de memórias não cabem. Ainda pensei que usavas uma competência qualquer para guardar a informação rarefeita e para a reorganizar instantaneamente sempre que dela precisavas, mas isso também ocuparia espaço que não sobra na tua pequena cabeça.
2.
Onde guardas o que sentes? Há quem pense que guardas no teu coração o que sentes, mas o teu coração não é mais que um músculo para cumprir rotinas de músculo - sístole e diástole - e alimentar em todos os sentidos a canalização do saco de sangue que tu és. Há quem pense que guardas as emoções dentro do teu peito, mas eu acho que não cabem no teu peito os disfarces para as alegrias e tristezas e para as dores que se derramam da nascente do pensamento que é exterior a tudo o que sejas tu.
Umas vezes estás cheio de alegria e não cabes em ti de contente.
E já te vi suar indignação na voz e a rebentar de fúria. Vi que as emoções que experimentaste não cabem em ti e vivem num lugar longínquo e inacessível. Há uma lista rabiscada que se enrodilha no bolso dos segredos.
3.
As tuas ilusões acordaram cansadas e nem tens força para juntar a voz da tua mão ao silêncio. E não podes senão escrever o silêncio de tempestade por te sentires obrigado a ouvir vociferar dirigentes de faca na liga e de federação do interesse privado em negócios milionários que viram interesse público e viram do avesso o estado de direito.
Já é mau saberes que existem. Horrível é saber que eles estão em toda a parte e até dizem o que pensam.
4.
Onde guardas o que calas? Para onde vais, quando o ar é irrespirável? Fechas os ouvidos ao que precisas de ouvir para não ouvir a boçalidade criminosa? Um vendaval de silêncio dissolve no oco as palavras que ouviste e não podes devolver.
[o aveiro; 7/9/2006]
as duas mãos
O homem deitou uns incensos numas brasas, separou o fumo com as duas mãos, e por essa abertura os prisioneiros saíram para um jardim.
(citado por Cristina Campo em Os imperdoáveis)
(citado por Cristina Campo em Os imperdoáveis)
a feira
Polícias de três tipos - embuçados de metralhadora,
presos a cães ferozes
e desarmados à vista desarmada -
passam pelo arraial da feira como se fossem a calar a terra
e algemar ao chão da feira falsos nómadas
Porque é que ainda hoje tremo e me encolho
apanhado na rede de uma armadilha
tecida pelas mãos hábeis de um deus aclamado
como ditador sem que eu desse para o peditório.
presos a cães ferozes
e desarmados à vista desarmada -
passam pelo arraial da feira como se fossem a calar a terra
e algemar ao chão da feira falsos nómadas
Porque é que ainda hoje tremo e me encolho
apanhado na rede de uma armadilha
tecida pelas mãos hábeis de um deus aclamado
como ditador sem que eu desse para o peditório.
a feira
Das feiras já não carrego porcos para criar
nem as vacas que pastam o caminho
para não saberem voltar atrás
dos donos tornados abandonos
Posso comprar tremoços mas ninguém espera
que eu tire do bolso o lenço de assoar novo e lavado
para os guardar antes de os meter na tromba
e escupir as cascas para a estratosfera!
nem as vacas que pastam o caminho
para não saberem voltar atrás
dos donos tornados abandonos
Posso comprar tremoços mas ninguém espera
que eu tire do bolso o lenço de assoar novo e lavado
para os guardar antes de os meter na tromba
e escupir as cascas para a estratosfera!
a feira
Agora passeio na feira ao encontro da minha idolátrica:
num só quadro posso ter a santa maria adelaide de arcozelo
e a santa alexandrina de balazar; agora escrevem beata
num rigor que não conhecia à propaganda. E não fui capaz
de comprar o meu quadro porque tive medo de saber
como é pesado o caminho de regresso e nem ter casa do senhor
onde pendurar o meu retrato ao lado da escadaria do bom jesus,
do seu sagrado coração ao lado do coração de maria sua mãe
para todo o sempre expostos tão sem jeito e fora do peito
num só quadro posso ter a santa maria adelaide de arcozelo
e a santa alexandrina de balazar; agora escrevem beata
num rigor que não conhecia à propaganda. E não fui capaz
de comprar o meu quadro porque tive medo de saber
como é pesado o caminho de regresso e nem ter casa do senhor
onde pendurar o meu retrato ao lado da escadaria do bom jesus,
do seu sagrado coração ao lado do coração de maria sua mãe
para todo o sempre expostos tão sem jeito e fora do peito
a morte do funcionário
deitado na banheira deixas que a o ar e a água trabalhem
os teus músculos ou são os teus músculos que batem
na água como quem bate num saco de pancada
enquanto adormeces e sonhas com as tuas dores
de dentes arreganhados por um descanso de quem não sabe
mais que descansar cansando-se entre viagens ao balneário
sabendo que automático é tanto o pagamento do salário
como a massagem que a médica acha que é a parte que te cabe
deste latifúndio.
os teus músculos ou são os teus músculos que batem
na água como quem bate num saco de pancada
enquanto adormeces e sonhas com as tuas dores
de dentes arreganhados por um descanso de quem não sabe
mais que descansar cansando-se entre viagens ao balneário
sabendo que automático é tanto o pagamento do salário
como a massagem que a médica acha que é a parte que te cabe
deste latifúndio.
o espectador resistente
o tempo não chega para tudo
a quem antes fosse surdo e mudo
e não conhecesse sáurios sobreviventes
no vale de lágrimas dos espíritos resistentes.
Sabe deus e alguns outros criadores
que prefiro ser um poeta desistente
a ser alguma coisa similar a valente combatente
de guerras entre editores, tradutores e tractores
ou, da tourada de merdas de vida, o inteligente.
E se ainda alguma coisa há que me arrelia
é ter acreditado e divulgado quem fica indecente
mais e mais a cada dia
a quem antes fosse surdo e mudo
e não conhecesse sáurios sobreviventes
no vale de lágrimas dos espíritos resistentes.
Sabe deus e alguns outros criadores
que prefiro ser um poeta desistente
a ser alguma coisa similar a valente combatente
de guerras entre editores, tradutores e tractores
ou, da tourada de merdas de vida, o inteligente.
E se ainda alguma coisa há que me arrelia
é ter acreditado e divulgado quem fica indecente
mais e mais a cada dia
instantâneo
na areia desenhas a nuvem
e pensas na chuva de agosto
que ao cair a desfaz
na areia desenhas a onda
e pensas nela a rebentar na praia
como onda que se desfaz
e pensas na chuva de agosto
que ao cair a desfaz
na areia desenhas a onda
e pensas nela a rebentar na praia
como onda que se desfaz
fresco
descem as mulheres e as crianças uma rua inteira e os homens descem também como se fossem para o outro lado vestidos com fatos de cerimónia e tanto faz que a cerimónia seja um funeral como um casamento
somos nós os que espreitamos o quadro vendo do lado de fora o baptizado e a boda e somos nós quem os vê separados quando parecem mais unidos que nunca nas sombras que se formam nas paredes que bordejam a rua
a folha da árvore desce lá de cima do nosso quintal e vai festejar o baptizado do outro lado da rua distraindo o cão que deixa de ladrar para brincar com a grande folha que é o acaso a pedir silêncio
passo por ali - boa tarde boa tarde - espreitam-me do pátio em frente as mesas carregadas de bolos e percebo que guardo alguma inveja por ter perdido a oportunidade de um baptizado que nos reconciliasse com a aldeia
guardo alguma inveja por saber que há oportunidades que não são nossas e é por isso que me vejo a reter pormenores que lhes escapam enquanto festejam um pormenor que nos escapa
somos nós os que espreitamos o quadro vendo do lado de fora o baptizado e a boda e somos nós quem os vê separados quando parecem mais unidos que nunca nas sombras que se formam nas paredes que bordejam a rua
a folha da árvore desce lá de cima do nosso quintal e vai festejar o baptizado do outro lado da rua distraindo o cão que deixa de ladrar para brincar com a grande folha que é o acaso a pedir silêncio
passo por ali - boa tarde boa tarde - espreitam-me do pátio em frente as mesas carregadas de bolos e percebo que guardo alguma inveja por ter perdido a oportunidade de um baptizado que nos reconciliasse com a aldeia
guardo alguma inveja por saber que há oportunidades que não são nossas e é por isso que me vejo a reter pormenores que lhes escapam enquanto festejam um pormenor que nos escapa
cessar fogo
E agora? O que fazemos? - perguntou a criança, levantando os olhos para o pai. O pai pareceu distraído por uns largos momentos, como se não tivesse ouvido nem visto os olhos do filho inquieto. Também para mim, não foi claro que os olhos da criança não se fixassem numa nuvem muito acima da cabeça do pai e, por instantes, perguntei-me se a pergunta não teria sido feita a alguém mais acima, a alguém mais poderoso que o pai. Porque as circunstâncias são de tal forma que não nos permitem a veleidade de acreditarmos no poder humano das pessoas simples em decidir a sua vida com os seus.
Voltamos para casa! - respondeu o pai, sem hesitação, mas minutos passados sobre a pergunta. Soube que a mulher tinha ouvido, quando a vi movimentar o seu quadril gigantesco e puxar para si uma toalha colorida. Rapidamente, vi um grande embrulho feito; grande, para ser a vida inteira, e pequeno, para caber na bacia que o homem vai amarrar na grade que se vê sobre aquele automóvel azul empoeirado.
Para casa? - enquanto solta a pergunta, a criança está a lembrar-se do pátio pequeno onde até há um mês atrás brincava. Percebo que está a ter memória da casa pelo sorriso que lhe vejo nos olhos.
O homem tem os olhos semicerrados, como se tentasse ver muito longe dali, onde está e finca o seu pé direito sobre o pneu careca. A mulher está a ajeitar o seu corpo volumoso dentro do carro. Ela sabe que ele deseja ver a casa e teme ver escombros. Ela sabe que ainda falta acertar no caminho, fazer andar aquele carro azul empoeirado por estradas que já o não são, esperar um milagre em cada ponte destruída,... comer todo o pó de uma viagem que chegaram a pensar nem ter regresso.
A mulher redonda olha o rosto do seu homem, tisnado da inclemência do sol e chupado por rugas, fundas fronteiras entre vales de lágrimas, cólera ou ódio. À mulher não interessa encontrar a casa. Ela espera encontrar o seu lugar, reconhecer um cheiro, ver um trapo perdido, ... esperar os outros que hão-de voltar ao lugar.
Sentimos o que ela pensa: Talvez a casa já nem exista. Mas o lugar existe e saberemos que o encontrámos quando cada milímetro de chão for reconhecido por quem volta. Se um vizinho levanta um calhau e, do meio dos destroços levanta uma franja da sua vida, eu sei que posso sentar-me uns metros ao lado. Em meu lugar. Não preciso de mais para descansar e para que o meu filho recomece uma brincadeira interrompida pelo meu medo.
[o aveiro; 17/08/2006]
Voltamos para casa! - respondeu o pai, sem hesitação, mas minutos passados sobre a pergunta. Soube que a mulher tinha ouvido, quando a vi movimentar o seu quadril gigantesco e puxar para si uma toalha colorida. Rapidamente, vi um grande embrulho feito; grande, para ser a vida inteira, e pequeno, para caber na bacia que o homem vai amarrar na grade que se vê sobre aquele automóvel azul empoeirado.
Para casa? - enquanto solta a pergunta, a criança está a lembrar-se do pátio pequeno onde até há um mês atrás brincava. Percebo que está a ter memória da casa pelo sorriso que lhe vejo nos olhos.
O homem tem os olhos semicerrados, como se tentasse ver muito longe dali, onde está e finca o seu pé direito sobre o pneu careca. A mulher está a ajeitar o seu corpo volumoso dentro do carro. Ela sabe que ele deseja ver a casa e teme ver escombros. Ela sabe que ainda falta acertar no caminho, fazer andar aquele carro azul empoeirado por estradas que já o não são, esperar um milagre em cada ponte destruída,... comer todo o pó de uma viagem que chegaram a pensar nem ter regresso.
A mulher redonda olha o rosto do seu homem, tisnado da inclemência do sol e chupado por rugas, fundas fronteiras entre vales de lágrimas, cólera ou ódio. À mulher não interessa encontrar a casa. Ela espera encontrar o seu lugar, reconhecer um cheiro, ver um trapo perdido, ... esperar os outros que hão-de voltar ao lugar.
Sentimos o que ela pensa: Talvez a casa já nem exista. Mas o lugar existe e saberemos que o encontrámos quando cada milímetro de chão for reconhecido por quem volta. Se um vizinho levanta um calhau e, do meio dos destroços levanta uma franja da sua vida, eu sei que posso sentar-me uns metros ao lado. Em meu lugar. Não preciso de mais para descansar e para que o meu filho recomece uma brincadeira interrompida pelo meu medo.
[o aveiro; 17/08/2006]
pior que ver
pior que não ver é ver a escuridão que esconde
e saber que pela escuridão ninguém responde
pior que ver é saber que a escuridão vem ninguém sabe de onde
a manta de cinza
cobre-me a manta de cinza o sono inconsciente
para não ouvir a manhã chegar e ela não chega
nem parte
embora o vento sopre mais que um fôlego
e os pulmões da terra ardam para um último esforço:
o alento do cavalo quando chega ao sítio
onde cair morto encontra um prado
incendiado por um cavaleiro armado até aos dentes
cerrados pela ansiedade numa glória vã.
para não ouvir a manhã chegar e ela não chega
nem parte
embora o vento sopre mais que um fôlego
e os pulmões da terra ardam para um último esforço:
o alento do cavalo quando chega ao sítio
onde cair morto encontra um prado
incendiado por um cavaleiro armado até aos dentes
cerrados pela ansiedade numa glória vã.
de casa
Saímos de casa mesmo quando tudo o desaconselha e não há necessidade premente que o exija. Saímos de casa para saber se o ar livre se mantém respirável.
Do outro lado de uma rua qualquer aqui perto, levanta-se do chão uma chama que tenta elevar-se sem o conseguir. Uma nuvem de cinza eleva-se acima da chama e dela dá notícia aos céus.
Sobre cada mesa de cada casa a nuvem de cinza cai lentamente e toma o lugar das toalhas. Entra nas casas quando se desfaz em chuva miudinha de pó e toma o lugar dos tapetes e do chão. Não olhamos para os telhados.
O sol deixa que a sua luz seja coada do que ela tem de bom. Os olhos não descansam e não descansam as impressões das mãos deixadas mas toalhas de poeira ainda mole, maleável, impressionável e ... instável.
Do outro lado de uma rua qualquer aqui perto, levanta-se do chão uma chama que tenta elevar-se sem o conseguir. Uma nuvem de cinza eleva-se acima da chama e dela dá notícia aos céus.
Sobre cada mesa de cada casa a nuvem de cinza cai lentamente e toma o lugar das toalhas. Entra nas casas quando se desfaz em chuva miudinha de pó e toma o lugar dos tapetes e do chão. Não olhamos para os telhados.
O sol deixa que a sua luz seja coada do que ela tem de bom. Os olhos não descansam e não descansam as impressões das mãos deixadas mas toalhas de poeira ainda mole, maleável, impressionável e ... instável.
abençoado frio da paz
A minha casca de verão protegia-me do calor abrasador que fazia lá fora e de que ouvia falar. Parece-me que vivi numa bolha de frescura por uns dias.
Fazia umas curtas surtidas fora da casca durante o dia para procurar o jornal diário e um ou outro olhar humano. E, enquanto bebia um café, escrevia umas frases curtas em pequenas folhas de papel de embrulho e, de soslaio, olhava as fotografias dos dias incendiados. Fazia surtidas mais longas fora da casca quando a noite caía e se libertava o ar da fresco da noite por força do apagamento do sol inclemente.
Uma dessas noites tornou-se mais fresca quando a dona do café da aldeia puxou da cadeira e se sentou para conversar sobre a vida que tinha sido dantes. A vida que ela contava passava-se com pobres sem agasalho, seus pés descalços em inverno frios e longos. Chegávamos a sentir o ar gelado do passado a passar pela esplanada e vímo-la, aos 12 anos, a passar no caminho de lama com a ?giga? cheia com os tachos do comer que ela transportava à cabeça para os operários que trabalhavam nas fábricas dos lugares vizinhos.
Será que procuramos outros tempos e outros acontecimentos porque nos sentimos cercados pelos incêndios?
Notícias da guerra mediterrânica não fazem mais que aumentar o calor destes dias e abafar a minha vontade de compreender. Há alguém que ordena que se bombardeie o ar quente e se exalta a ver as núvens de fogo e de poeira que se levanta dos escombros. Cada vez mais rápidas e urgentes as bombas partem de um e outro lado antes que a humanidade argumente tão fortemente que não seja possível continuar de um e outro lado. Esta guerra tem qualquer coisa de encenação de espectáculo irracional, nem clássico nem moderno, que obedece a marcações sem ter marcações nem limites, como se fosse uma dança infinita que começou noutro tempo e quer continuar porque só pode ser interrompida noutro tempo, no porvir.
Vejo pessoas desfocadas pela turbação que o ar quente provoca. Tanto lá como cá, na terra queimada.
E foi assim, incapaz de compreender, que me deixei chegar a este dia em que dentro da casca está tão quente como fora dela. E a vida se torna insuportável se perdermos a esperança de uma aragem fresca que assobie e da chuva miudinha que faça renascer um bosque onde agora sobra cinza e pó.
[o aveiro; 10/08/2006]
Fazia umas curtas surtidas fora da casca durante o dia para procurar o jornal diário e um ou outro olhar humano. E, enquanto bebia um café, escrevia umas frases curtas em pequenas folhas de papel de embrulho e, de soslaio, olhava as fotografias dos dias incendiados. Fazia surtidas mais longas fora da casca quando a noite caía e se libertava o ar da fresco da noite por força do apagamento do sol inclemente.
Uma dessas noites tornou-se mais fresca quando a dona do café da aldeia puxou da cadeira e se sentou para conversar sobre a vida que tinha sido dantes. A vida que ela contava passava-se com pobres sem agasalho, seus pés descalços em inverno frios e longos. Chegávamos a sentir o ar gelado do passado a passar pela esplanada e vímo-la, aos 12 anos, a passar no caminho de lama com a ?giga? cheia com os tachos do comer que ela transportava à cabeça para os operários que trabalhavam nas fábricas dos lugares vizinhos.
Será que procuramos outros tempos e outros acontecimentos porque nos sentimos cercados pelos incêndios?
Notícias da guerra mediterrânica não fazem mais que aumentar o calor destes dias e abafar a minha vontade de compreender. Há alguém que ordena que se bombardeie o ar quente e se exalta a ver as núvens de fogo e de poeira que se levanta dos escombros. Cada vez mais rápidas e urgentes as bombas partem de um e outro lado antes que a humanidade argumente tão fortemente que não seja possível continuar de um e outro lado. Esta guerra tem qualquer coisa de encenação de espectáculo irracional, nem clássico nem moderno, que obedece a marcações sem ter marcações nem limites, como se fosse uma dança infinita que começou noutro tempo e quer continuar porque só pode ser interrompida noutro tempo, no porvir.
Vejo pessoas desfocadas pela turbação que o ar quente provoca. Tanto lá como cá, na terra queimada.
E foi assim, incapaz de compreender, que me deixei chegar a este dia em que dentro da casca está tão quente como fora dela. E a vida se torna insuportável se perdermos a esperança de uma aragem fresca que assobie e da chuva miudinha que faça renascer um bosque onde agora sobra cinza e pó.
[o aveiro; 10/08/2006]
quem cuida de
dentro de um turbilhão de que inventaram os pormenores
as crianças cuidam de mim de ti e de todos os que vierem
entretanto
prepara-te para a dança ainda que não possas e para as dores
de que não gostas
e prepara-te para a falta que vais sentir quando as crianças
forem embora e a paz voltar fora de ti enquanto
por dentro da cabeça explodem bombas e os estilhaços
matam um ou outro dos teus pensamentos diplomatas.
as crianças cuidam de mim de ti e de todos os que vierem
entretanto
prepara-te para a dança ainda que não possas e para as dores
de que não gostas
e prepara-te para a falta que vais sentir quando as crianças
forem embora e a paz voltar fora de ti enquanto
por dentro da cabeça explodem bombas e os estilhaços
matam um ou outro dos teus pensamentos diplomatas.
aldeia a...gosto
Sermpre contrariado, quando Agosto ataca, sou enviado para fora do meu lugar. Dizem-me que sou enviado para descanso de férias. Só que isso acontece sempre um pouco cedo demais e sou perseguido por pequenas coisas que foram sendo adiadas e são agora inadiáveis e por compromissos inevitáveis que foram assumidos para setembro e pensados agora. Começo por resisitir a todas as mudanças até desistir de lutar contra o invevitável, pensando que o computador e as comunicações funcionam. Sei que as férias não são para descansar o corpo, já que me canso só a ver as pessoas que andam daqui para ali e fazem projectos para bulir mais longe. Descansam o espírito, ao que me dizem. Talvez haja alguma coisa de pacífico e saudável nessa tentativa de estar mais tempo com a família e a fazer coisas diferentes. Também não me repugna acreditar nas pessoas que garantem lucrar com a mudança de ambiente - da cidade para as aldeias ou da montanha para a beira do mar. E tenho uma sincera inveja das pessoas, de tal modo organizadas, que ficam completamente livres no dia 1 de Agosto estando cheias de trabalho no dia 31 de Julho.
Pego em meia dúzia de coisas e deixo-me levar para uma casa de aldeia. Agora, tão perto que a casa do costume fica a menos de uma hora, mas tão longe que não possa atar lá o fio dos dias. O telefone da aldeia não vai resolver o problema do correio electrónico: nem recebo mais que os cabeçalhos e remetentes das mensagens e enviar este texto ameaça tanto o computador como o rural aparelho de telefone. A aldeia já é vila e revela-se num animado bar nocturno e num cemitério enorme. São muitos os que vivem neste dormitório do Porto, sem que da aldeia conheçam mais que as ruas por onde saem nas visitas de fim de semana à família.
No jornal da terra, vi uma fotografia de sacos de lixo a esmo em torno de um "ecoponto". Não há contentor de lixo comum à vista. A legenda da fotografia condena a falta de civismo dos moradores e não condena a câmara municipal que, sem cuidar das suas obrigações, atrai gente para dormir nos andares da aldeia. Nesta aldeia cheia de gente e de carros, não há passeios para os peões, não há contentores para o lixo dos "sem terra" nem há recolha de lixo todos os dias. Há ecopontos. Há lixos vários que não são para o ecoponto. Há lixo em algumas cabeças.
Aldeia por ainda não ser vila. Vila por já não ser aldeia. Canseira!
[o aveiro; 3/8/2006]
Pego em meia dúzia de coisas e deixo-me levar para uma casa de aldeia. Agora, tão perto que a casa do costume fica a menos de uma hora, mas tão longe que não possa atar lá o fio dos dias. O telefone da aldeia não vai resolver o problema do correio electrónico: nem recebo mais que os cabeçalhos e remetentes das mensagens e enviar este texto ameaça tanto o computador como o rural aparelho de telefone. A aldeia já é vila e revela-se num animado bar nocturno e num cemitério enorme. São muitos os que vivem neste dormitório do Porto, sem que da aldeia conheçam mais que as ruas por onde saem nas visitas de fim de semana à família.
No jornal da terra, vi uma fotografia de sacos de lixo a esmo em torno de um "ecoponto". Não há contentor de lixo comum à vista. A legenda da fotografia condena a falta de civismo dos moradores e não condena a câmara municipal que, sem cuidar das suas obrigações, atrai gente para dormir nos andares da aldeia. Nesta aldeia cheia de gente e de carros, não há passeios para os peões, não há contentores para o lixo dos "sem terra" nem há recolha de lixo todos os dias. Há ecopontos. Há lixos vários que não são para o ecoponto. Há lixo em algumas cabeças.
Aldeia por ainda não ser vila. Vila por já não ser aldeia. Canseira!
[o aveiro; 3/8/2006]
por alguns dias, ... adeus
é tão lenta a entrada neste mundo por este telefone de aldeia que melhor teria sido nem tentar.
o mais provável é que não volte a entrar por aqui.
o mais provável é que desapareça.
o mais provável é que não volte a entrar por aqui.
o mais provável é que desapareça.
as grades
caminho pela manhã da avenida 25 de abril. habitualmente passo pelas grades do fechado portão central da escola e sigo em frente para entrar dois catetos adiante pelo portão lateral. ao passar, sinto-me preso na avenida. depois de entrar, sinto-me preso na escola. breves instantes estes em que sou preso dentro e fora.
mas hoje, há uma porta aberta no portão central da escola e eu esgueiro-me livre. e, por momentos, sinto-me e sento-me livre. sob a grande copa que me abrigava da chuva, vejo as baforadas do meu cachimbo de um tempo antigo em que estranho estranho era não dar esses sinais de fumo antes de entrar.
mas hoje, há uma porta aberta no portão central da escola e eu esgueiro-me livre. e, por momentos, sinto-me e sento-me livre. sob a grande copa que me abrigava da chuva, vejo as baforadas do meu cachimbo de um tempo antigo em que estranho estranho era não dar esses sinais de fumo antes de entrar.
a guerra pela janela
Pela rasgada janela da televisão, os olhos abertos de um cadáver parecem fixar-me. Nada do que o morto possa ser me aflige. O que me aflige é o vivo que ele foi ontem sem saber que ia morrer. Contra ele se levantaram os que quiseram matá-lo sem quererem saber quem ele era e sem cuidarem de saber quem ele viria a ser. O soldado que disparou a morte vai morrer algum tempo depois e não pode saber se matou uma esperança de paz duradoura. Não pode saber se quem acaba de matar não seria aquele que amaria perdidamente por toda a vida e já lhe falta. E pensa, para acalmar a culpa e remorsos de não saber, que o mais natural é ser um dano colateral acrescentado a tantos outros de que já não há conta nem medida. Os mortos não me incomodam.
Na última década, as guerras mataram milhões de crianças. É o que dizemos para fingirmos que não foram homens, tão civilizados e industrializados fabricantes e vendedores de armamento, os que assassinaram as crianças e as esperanças que elas podiam ser. Mais no Líbano que em Israel, crianças jazem destroçadas. Os assassinados não me comovem.
Comove-me a pergunta, a dúvida que leio nos lábios fechados do soldado que ainda vive. Sem saber quando vai morrer, sabe da sua fé na vida além da morte e sabe da mesma fé no coração do corpo abatido pela fúria do seu disparo. Ainda vivo, o jovem soldado treme por acreditar que do lado de lá vai ser apresentado aos que matou sem conhecer e sem odiar. Do outro lado do tempo, em que acreditam encontrar-se todos perante quem tudo sabe, no julgamento em que comparecem todas as vítimas olhando os carrascos nos olhos. O soldado já prepara a sua defesa e clamará então que não fez mais que cumprir ordens. Se lhe disserem então que matou o seu messias ainda este era uma criança a experimentar a sua humanidade, ele dirá um silêncio espantado. De outra das suas vítimas, a que era mulher destinada a amá-lo, após o dia do juízo, o crente soldado vê-a sem ser visto e sabe que foi ele quem a cegou.
Não me incomodam os mortos nem os lugares onde jazem mortos. Incomodam-me os destroços vivos, os agentes da morte, os fabricantes de destroços capazes de imaginarem a sua própria vitória sobre a vida.
[o aveiro; 27/07/2006]
Na última década, as guerras mataram milhões de crianças. É o que dizemos para fingirmos que não foram homens, tão civilizados e industrializados fabricantes e vendedores de armamento, os que assassinaram as crianças e as esperanças que elas podiam ser. Mais no Líbano que em Israel, crianças jazem destroçadas. Os assassinados não me comovem.
Comove-me a pergunta, a dúvida que leio nos lábios fechados do soldado que ainda vive. Sem saber quando vai morrer, sabe da sua fé na vida além da morte e sabe da mesma fé no coração do corpo abatido pela fúria do seu disparo. Ainda vivo, o jovem soldado treme por acreditar que do lado de lá vai ser apresentado aos que matou sem conhecer e sem odiar. Do outro lado do tempo, em que acreditam encontrar-se todos perante quem tudo sabe, no julgamento em que comparecem todas as vítimas olhando os carrascos nos olhos. O soldado já prepara a sua defesa e clamará então que não fez mais que cumprir ordens. Se lhe disserem então que matou o seu messias ainda este era uma criança a experimentar a sua humanidade, ele dirá um silêncio espantado. De outra das suas vítimas, a que era mulher destinada a amá-lo, após o dia do juízo, o crente soldado vê-a sem ser visto e sabe que foi ele quem a cegou.
Não me incomodam os mortos nem os lugares onde jazem mortos. Incomodam-me os destroços vivos, os agentes da morte, os fabricantes de destroços capazes de imaginarem a sua própria vitória sobre a vida.
[o aveiro; 27/07/2006]
sentidos
eles passavam por mim e eu passava por eles
em sentidos contrários
enquanto procurávamos o mesmo sentido
e sabendo que nunca nos reconheceremos
se acaso algum dia nos encontrarmos no lugar certo
por acaso
ao compasso marcado
pelo rufar de um tambor continuamos em frente
até nos perdermos de vista
amanhã
Em tempo de guerra, há frases soltas que deflagram como bombas à minha volta.
Estamos a fazer todos os esforços para evitar baixas civis. Todos sabemos como é difícil bombardear áreas densamente povoadas. Acabar com os bombardeamentos é o objectivo da diplomacia. Os terroristas aproveitaram um incidente em território palestino para provocar o estado de Israel e os israelitas aproveitaram o momento para cortar as vias libanesas usadas pelos terroristas, bem como para destruir todos os incómodos que vivem no Líbano.
Ouço e parecem-me de outro mundo cada palavra e cada sorriso dos diplomatas, em suas reuniões cercadas por escombros e mortos.
Em tempo de guerra, olho para todas as vítimas e fico à espera de ver os poderosos a olhar pelas pessoas todas e, de tal modo, que lhes seja inaceitável que qualquer pessoa passe a vítima pela via do terror e da guerra. Vejo-os carregar com seus dois pesos e suas duas medidas sem nunca sagrarem cada vida humana. Eles olham os mortos nos olhos fazendo deles nós de um bordado quando tecem considerações sobre o conflito regional, ou quando anunciam subidas e descidas do preço do barril de petróleo nas grandes praças do mundo civilizado dos banqueiros. Em tempo de guerra, olho-os mais pelo prisma do veto que do voto e algumas referências da democracia deixam de ser referências. Os poderosos que vetam resoluções das nações unidas e apelam à contenção reúnem-se aos que usam o poder para aperaltar biquinhos transatlânticos em convívios mais ou menos (g)astronómicas no nosso mundo em guerra. Os poderosos andam feitos e em festa uns com os outros. Já nem percebem que os seus jogos de salão fazem estremecer o salão. E ouço as traças que mastigam os fatos dos poderosos quando eles fazem de traças do mundo.
E ouço generais que parecem comentadores e comentadores que parecem marechais a falar de mortos como peças de um xadrez qualquer. Pensam eles que sempre que aumenta o número de mortos, diminui a probabilidade de lhes caber a morte em sorte. E descuidam as defesas contra a estupidez que tudo come e consome.
Parece-me que todas as partes conspiram para evitar a paz. Uma diplomata israelita disse que quando salvamos uma alma, salvamos o mundo. Há alguém a pensar em salvar uma alma?
[o aveiro; 20/07/2006]
Estamos a fazer todos os esforços para evitar baixas civis. Todos sabemos como é difícil bombardear áreas densamente povoadas. Acabar com os bombardeamentos é o objectivo da diplomacia. Os terroristas aproveitaram um incidente em território palestino para provocar o estado de Israel e os israelitas aproveitaram o momento para cortar as vias libanesas usadas pelos terroristas, bem como para destruir todos os incómodos que vivem no Líbano.
Ouço e parecem-me de outro mundo cada palavra e cada sorriso dos diplomatas, em suas reuniões cercadas por escombros e mortos.
Em tempo de guerra, olho para todas as vítimas e fico à espera de ver os poderosos a olhar pelas pessoas todas e, de tal modo, que lhes seja inaceitável que qualquer pessoa passe a vítima pela via do terror e da guerra. Vejo-os carregar com seus dois pesos e suas duas medidas sem nunca sagrarem cada vida humana. Eles olham os mortos nos olhos fazendo deles nós de um bordado quando tecem considerações sobre o conflito regional, ou quando anunciam subidas e descidas do preço do barril de petróleo nas grandes praças do mundo civilizado dos banqueiros. Em tempo de guerra, olho-os mais pelo prisma do veto que do voto e algumas referências da democracia deixam de ser referências. Os poderosos que vetam resoluções das nações unidas e apelam à contenção reúnem-se aos que usam o poder para aperaltar biquinhos transatlânticos em convívios mais ou menos (g)astronómicas no nosso mundo em guerra. Os poderosos andam feitos e em festa uns com os outros. Já nem percebem que os seus jogos de salão fazem estremecer o salão. E ouço as traças que mastigam os fatos dos poderosos quando eles fazem de traças do mundo.
E ouço generais que parecem comentadores e comentadores que parecem marechais a falar de mortos como peças de um xadrez qualquer. Pensam eles que sempre que aumenta o número de mortos, diminui a probabilidade de lhes caber a morte em sorte. E descuidam as defesas contra a estupidez que tudo come e consome.
Parece-me que todas as partes conspiram para evitar a paz. Uma diplomata israelita disse que quando salvamos uma alma, salvamos o mundo. Há alguém a pensar em salvar uma alma?
[o aveiro; 20/07/2006]
futebol brasileiro
Um time de futebol ganhou 8 jogos mais do que perdeu e empatou 3 jogos menos do que ganhou, em 31 partidas jogadas. Quantas partidas o time venceu?
O futebol brasileiro tem destas coisas: até aparece na olimpíadas brasileiras de matemática. Quem pode não gostar?
O futebol brasileiro tem destas coisas: até aparece na olimpíadas brasileiras de matemática. Quem pode não gostar?
conselho
da última reunião do conselho pedagógico, o último postal:
um último conselho pedagógico? não dou.
devoto
faz o sinal da cruz
na areia da praia
como regos por onde a água brinque,
faz o sinal da cruz
na testa
e sente-o como festa do amante,
faz o sinal da cruz
coa naifa na tua mão esquerda
pra ser estigma chato com'á merda,
faz o sinal da cruz
no teu peito
para compensar a foice e o martelo tatuados nas costas,
faz o sinal da cruz
nas tuas calças
para seres uma viola no enterro,
faz o sinal da cruz
branca na t-shirt preta
e pequeníssima para que te paguem o salário de padre,
faz o sinal da cruz
no elástico das cuecas
para as poderes reclamar por um bom motivo.
faz o sinal da cruz
sobre a boca
para ninguém te ouvir dizer que estás vivo,
faz o sinal da cruz
na toalha do restaurante
enquanto esperas o bife,
faz o sinal da cruz
no céu azul
com as asas do desejo enquanto voas,
faz o sinal da cruz
em todos os lugares
do labirinto em que te queres perder
faz o sinal da cruz
para lembrar à tua mãe
que te sabes benzer,
faz o sinal da cruz
como parte de penitência
sobre o pecado que mais queres,
faz o sinal da cruz
porque te vais arrepender
amanhã do bem que te soube hoje,
(...)
faz o sinal da cruz
no boletim de voto.
na areia da praia
como regos por onde a água brinque,
faz o sinal da cruz
na testa
e sente-o como festa do amante,
faz o sinal da cruz
coa naifa na tua mão esquerda
pra ser estigma chato com'á merda,
faz o sinal da cruz
no teu peito
para compensar a foice e o martelo tatuados nas costas,
faz o sinal da cruz
nas tuas calças
para seres uma viola no enterro,
faz o sinal da cruz
branca na t-shirt preta
e pequeníssima para que te paguem o salário de padre,
faz o sinal da cruz
no elástico das cuecas
para as poderes reclamar por um bom motivo.
faz o sinal da cruz
sobre a boca
para ninguém te ouvir dizer que estás vivo,
faz o sinal da cruz
na toalha do restaurante
enquanto esperas o bife,
faz o sinal da cruz
no céu azul
com as asas do desejo enquanto voas,
faz o sinal da cruz
em todos os lugares
do labirinto em que te queres perder
faz o sinal da cruz
para lembrar à tua mãe
que te sabes benzer,
faz o sinal da cruz
como parte de penitência
sobre o pecado que mais queres,
faz o sinal da cruz
porque te vais arrepender
amanhã do bem que te soube hoje,
(...)
faz o sinal da cruz
no boletim de voto.
apeadeiro
sem que eu dê por isso
tu levantas-te da sombra
fingindo que és uma sombra
uma pálida sombra do que és
dizes que vais buscar-me
onde eu estiver
e eu fico aqui sem jeito
para ficar
partindo sem partir
tu levantas-te da sombra
fingindo que és uma sombra
uma pálida sombra do que és
dizes que vais buscar-me
onde eu estiver
e eu fico aqui sem jeito
para ficar
partindo sem partir
S. D.
Não deixo que mais ninguém dispute estas lágrimas
Sei que morreste mas não reconheço a tua morte
Para mim não caíste nem foste para o hospital
Apenas flutuas a meio das escadas como num sonho
São apenas minhas estas silenciosas lágrimas
Que o meu inglês não traduz nem consegue traduzir
Fico com os discos e fotocopio os teus poemas
Para serem discutidos na aula e é tudo
É uma liturgia muito banal mas é minha
Não tenho outra maneira de te dizer adeus
Agora que enches de música outros territórios
Agora que alimentas uma grande saudade.
[J. Carmo Francisco; Iniciais. 1980]
o milagre de antón fernán
Antón Fernán vem a Portugal duas vezes por ano. O resto dos dias passa-os por cá, mas é como se cá não morasse. Nos celebrados momentos da visita de Antón Fernán ao nosso país, ouvimos uma frase de circunstância que ele prepara antecipadamente para ser comida como entrada. Embora possamos jurar que ouvimos as palavras de Antón Fernán, a verdade é que elas nunca foram ditas. Não por serem impronunciáveis ou indizíveis, mas por serem inaudíveis acima do silêncio sobre a visita de Antón Fernán, infinitamente mais sossegada que a visita de qualquer outro português que dê à costa.
Também é verdade que ninguém sabe muito sobre a nacionalidade de Antón e há mesmo alguma confusão a respeito da atribuição desta ou daquela nacionalidade a um cidadão da Península Ibérica. Se há quem diga que ele é catalão, outros dizem que descende de um vilão fenício dado à costa durante uma viagem marítima efectuada entre os dois pólos que, por culpa dos achatamentos polares, ficou menos celebrada que o extraordinário cruzeiro de Fernán de Magalhães, essa outra celebridade entre os ibero-mundanos.
Há mesmo quem insista que Antón é galego, talvez mesmo português. Quem tal pensa, não sabe explicar porquê. Muitos pormenores de todos os dias aumentam para o dobro a dificuldade em aceitá-lo como português. Numa das suas últimas visitas a Portugal, país de onde raramente saiu, hesitámos em propor-lhe que aceitasse a nacionalidade portuguesa honorária. A hesitação acabou por vencer e salvámo-nos da vergonha de o ver sujeito a responder sobre a linha sucessória dos vice-reis da Índia e dos cognomes atribuídos aos infantes da nossa sétima dinastia constitucional e à vergonha de não conhecer os nomes de família dos heróis que, no regresso das batalhas entre os teutões, muito justamente se batem pela isenção do imposto sobre os prémios, condecorações e lucros da venda de bandeiras.
Para cada trabalho de verificação patriótica, havia um juíz a preparar-se para o pior e para o melhor. Conta-se mesmo à boca pequena que havia quem estivesse a decorar os versos da septuagésima estrofe da Portuguesa para atirar à cara de Antón Fernán, quando ele, reconhecendo humildemente a falta dos saberes requeridos, se dissesse pronto a recitar a tabuada, uma estrofe d'Os Lusíadas ou d'Os 12 de Inglaterra.
E nem um pontapé? Inaceitável! - disseram-lhe. Na gramática? Posso tentar? - perguntou ele.
[o aveiro;13/07/2006]
Também é verdade que ninguém sabe muito sobre a nacionalidade de Antón e há mesmo alguma confusão a respeito da atribuição desta ou daquela nacionalidade a um cidadão da Península Ibérica. Se há quem diga que ele é catalão, outros dizem que descende de um vilão fenício dado à costa durante uma viagem marítima efectuada entre os dois pólos que, por culpa dos achatamentos polares, ficou menos celebrada que o extraordinário cruzeiro de Fernán de Magalhães, essa outra celebridade entre os ibero-mundanos.
Há mesmo quem insista que Antón é galego, talvez mesmo português. Quem tal pensa, não sabe explicar porquê. Muitos pormenores de todos os dias aumentam para o dobro a dificuldade em aceitá-lo como português. Numa das suas últimas visitas a Portugal, país de onde raramente saiu, hesitámos em propor-lhe que aceitasse a nacionalidade portuguesa honorária. A hesitação acabou por vencer e salvámo-nos da vergonha de o ver sujeito a responder sobre a linha sucessória dos vice-reis da Índia e dos cognomes atribuídos aos infantes da nossa sétima dinastia constitucional e à vergonha de não conhecer os nomes de família dos heróis que, no regresso das batalhas entre os teutões, muito justamente se batem pela isenção do imposto sobre os prémios, condecorações e lucros da venda de bandeiras.
Para cada trabalho de verificação patriótica, havia um juíz a preparar-se para o pior e para o melhor. Conta-se mesmo à boca pequena que havia quem estivesse a decorar os versos da septuagésima estrofe da Portuguesa para atirar à cara de Antón Fernán, quando ele, reconhecendo humildemente a falta dos saberes requeridos, se dissesse pronto a recitar a tabuada, uma estrofe d'Os Lusíadas ou d'Os 12 de Inglaterra.
E nem um pontapé? Inaceitável! - disseram-lhe. Na gramática? Posso tentar? - perguntou ele.
[o aveiro;13/07/2006]
desenharam, logo existe
os estudantes desenham e eu não me canso de lembrar como desenham bem.
© Escola José Estêvão
todos os dias
abro a caixa de correio
e dói tanto
não encontrar as tuas linhas
das mãos que ninguém sabe quanto
as quero minhas
mas está bem assim que já receio
encontrar o meu desejo
despedido com um bocejo
ou pior ainda... com um beijo
e dói tanto
não encontrar as tuas linhas
das mãos que ninguém sabe quanto
as quero minhas
mas está bem assim que já receio
encontrar o meu desejo
despedido com um bocejo
ou pior ainda... com um beijo
a pegada
14
O buraco destrói-se é branco
ou sal
Nos joelhos da rua me aconchego
Esqueço-me e digo: a pele é um vestido
macio manhã cedo
Maria Alberta Menéres; A pegada do yeti
O buraco destrói-se é branco
ou sal
Nos joelhos da rua me aconchego
Esqueço-me e digo: a pele é um vestido
macio manhã cedo
Maria Alberta Menéres; A pegada do yeti
as portas da solidão
se desisto, as emoções saem comigo pela porta
que dá para a noite de um abismo... aberto para o lugar oco
com asas roubadas, as minhas!, tu voas para longe
dentro de mim, por mim adentro
sei que sou eu o que parti sem olhar-te no vidro:
a ausência ao espelho que já nem magoa por não haver volta a dar
que dá para a noite de um abismo... aberto para o lugar oco
com asas roubadas, as minhas!, tu voas para longe
dentro de mim, por mim adentro
sei que sou eu o que parti sem olhar-te no vidro:
a ausência ao espelho que já nem magoa por não haver volta a dar
um pouco mais de azul
1. Temos o direito de comentar todas as decisões e comportamentos das figuras públicas, mais ainda quando as suas acções influenciam directamente a vida colectiva. Não achei descabidos os comentários sobre actos de Freitas do Amaral enquanto Ministro dos Negócios Estrangeiros. Nem achei desproporcionadas as reprovações feitas em alguns momentos e os pedidos de remodelação ministerial a partir de algumas declarações do Ministro ou deste ou daquele acto.
Mas não posso concordar com a exploração que foi feita sobre a figura de Freitas do Amaral quando foi consumada a sua substituição objectivamente por razões de saúde. Acrescentar desnecessariamente cansaços políticos ao cansaço físico ao momento da exoneração, para além de rumores, é baixa política a roçar a baixa vingança sobre a diferença de opinião. Temos de reconhecer que, a partir do momento em que é clara a doença e se consuma a substituição, as fotografias da debilidade e os comentários oportunistas servem para diminuir os jornais que aceitam brincar sobre a glória dos vencidos... pela doença. Para mostrar força e estabilidade do governo e apesar da doença de Freitas do Amaral, Sócrates insistiu em mantê-lo como Ministro? Se isso tiver acontecido, Sócrates merece as mais duras críticas, como merecem as mais duras críticas todos aqueles que insistem em aproveitar estes acontecimentos para vender papel e alma.
2. Descalcei os sapatos do inverno para olhar e escutar o vaivém das ondas uma a uma, uma depois de outra depois de outra. O verão aparece-me como uma borda que separa a luz da sombra, o calor do frio, a areia da água,... Muitas vezes dou por mim a pensar que o verão me aparece de noite. Imagino-me a descalçar os sapatos do inverno numa noite escura e estrelada, Ainda sinto por dentro dos pés a água gelada, mas sinto que passei para o meu verão. Nada disto me acontece. Nada disto me acontece, mas falo disto como se pudesse ter acontecido.
Posso fazer a passagem de uma estação para outra em S. Jacinto, onde a bandeira azul se agita. Damos a cara à brisa salgada e, à queda da estrela cadente, acrescentamos um desejo à boa sorte que a bandeira azul é. Que a bandeira azul não apague as estrelas que precisam da escuridão para se acenderem lá no alto. Se perdermos a visão dos luzeiros no céu, o que nos resta?
[o aveiro; 6/7/2006]
Mas não posso concordar com a exploração que foi feita sobre a figura de Freitas do Amaral quando foi consumada a sua substituição objectivamente por razões de saúde. Acrescentar desnecessariamente cansaços políticos ao cansaço físico ao momento da exoneração, para além de rumores, é baixa política a roçar a baixa vingança sobre a diferença de opinião. Temos de reconhecer que, a partir do momento em que é clara a doença e se consuma a substituição, as fotografias da debilidade e os comentários oportunistas servem para diminuir os jornais que aceitam brincar sobre a glória dos vencidos... pela doença. Para mostrar força e estabilidade do governo e apesar da doença de Freitas do Amaral, Sócrates insistiu em mantê-lo como Ministro? Se isso tiver acontecido, Sócrates merece as mais duras críticas, como merecem as mais duras críticas todos aqueles que insistem em aproveitar estes acontecimentos para vender papel e alma.
2. Descalcei os sapatos do inverno para olhar e escutar o vaivém das ondas uma a uma, uma depois de outra depois de outra. O verão aparece-me como uma borda que separa a luz da sombra, o calor do frio, a areia da água,... Muitas vezes dou por mim a pensar que o verão me aparece de noite. Imagino-me a descalçar os sapatos do inverno numa noite escura e estrelada, Ainda sinto por dentro dos pés a água gelada, mas sinto que passei para o meu verão. Nada disto me acontece. Nada disto me acontece, mas falo disto como se pudesse ter acontecido.
Posso fazer a passagem de uma estação para outra em S. Jacinto, onde a bandeira azul se agita. Damos a cara à brisa salgada e, à queda da estrela cadente, acrescentamos um desejo à boa sorte que a bandeira azul é. Que a bandeira azul não apague as estrelas que precisam da escuridão para se acenderem lá no alto. Se perdermos a visão dos luzeiros no céu, o que nos resta?
[o aveiro; 6/7/2006]
Subscrever:
Mensagens (Atom)
-
Nenhum de nós sabe quanto custa um abraço. Com gosto, pagamos todos os abraços solidários sem contarmos os tostões. Não regateamos o preço d...
-
eu bem me disse que estava a ser parvo por pensar que só com os meus dentes chegavam para morder até o futuro e n...