a vida

A vida não persegue o cão que ladra,
nem esfola os gatos em que tropeça:
Uma mão que não seja a mão de deus
de nada serve quando se trata de matar.

Um ministro pode dar ordem de marcha
a um exército inteiro de escravos sem soldo:
Mas todos sabemos que a culpa do ministro
vai ser carregada em ombros por cada soldado.

Todos pagamos as dívidas por saldar  ou saldadas
russas também pagamos um pouco cada um não custa:
E  ministros feitos banqueiros sussurram bem alto
que pelo bem que fizeram bem merecem  a sua sorte

assobiando a medo

Assobiava como se o canto
de nenhum outro modo pudesse ouvir

a palavra como  um sopro entaramelado
só assim tem mais que um sentido
e tem o sentido
sentido.

Quando lhe perguntavam para quê assobiar
se podia falar
o velho contava a história em que era proibido
assobiar

contar essa história de memória
é pensar o que não pudera fazer antes

assobiando a medo.

as pessoas nas coisas

a fábrica

o tempo da decisão

Há muito tempo que não uso relógio
de bolso e de pulso também não
mas vou coleccionando relógios baratos
máquinas  elementares tão perecíveis
quanto o são as pilhas de origem.

Ao lado da cama, relógios parados
e marcando horas diferentes
tornam-se montras estáticas

das horas em que fui abandonado
por cada uma das pilhas.

O tempo que passou
nunca foi para aqui chamado.

Só sei que por escrever a palavra tempo
repetidamente
me vai aparecer um anúncio
de .
ou outro conforme instruções à máquina.

Algum algoritmo e não o acaso 
nem o fado dita a escolha.

Acaso  o que escrevo será fado. 


a mágoa

quando não me responde
é porque se esconde

e eu, ... sem saber onde
procurar

uma mágoa que se esconde
sem deixar de magoar

Empilhando lenha

O homem costuma recolher do bosque
os troncos caídos com a tempestade.
Empilha-os nas traseiras da casa.
De cada um recorda
o que o fez cair e onde o recolheu.
Nas noites frias, a contemplar as chamas,
vai queimando o que resta do que ama.



Joan Margarit. A casa da misericórdia. (trad. Rita Custódio e e Àlex Tarradellas). Ovni. 2010.

cada vez que

1
cada vez que o ministro das finanças
vai ao confesso da europa
dar de barato as nossas esperanças

aquela tropa

diz-lhe que o tuga vai no bom caminho
mas na volta  inda antes da desgraçada notícia
já eles estão a duvidar e com jeitinho
recomendam mais aperto e se precisa! mais polícia

2
e por cá quem sempre defendeu a flexibilidade
das leis laborais
coisas finas  de social-mediocricidade
diz agora que a crise não deixa esperar mais

ao menos durante a crise! clamam lá do altar
enquanto ensaiam mais uma volta ao  garrote
ao povo tire-se pão e água qu'inda lhe sobra o ar
há sempre quem esteja pior! não é esse o mote?

3
o teixeira de todos os santos anticonstitucionaliza
manda para o prego da crise as leis e o direito
que vencerá a crise quem antinacionaliza e privatiza!
- pró prego já e  a desbarato tudo o que estiver a jeito

quem dá mais? um patrão feito rico pela flexibilidade
compra e mostra o seu estadão com retrete  e catedral
comprará muçulmanos, cristianos,  igrejas e até a caridade
se fará fundação espírito santo  onde antes houve nome portugal


4
e a gente?

mais submarino
enquanto parece que tudo aguenta
menos submarino
quando passar para as mãos o pelo da venta

será de repente?

diário

um dia destes, mais tarde ou mais cedo(?),
arrumo os meus papéis

[que os há aos montes em volta do computador
o nada da promessa  de ser
sendo em vez dos papéis]

e vou dactilografar um livro de poemas resignados
bastantes para acender uma fogueira
e aquecer as mãos no inferno

até que estas fiquem prontas como garras
capazes dos versos mais ferozes

gravados em lâminas de facas voadoras
prontas a abrir livros antigos que ficaram por ler

e, bem afiadas pelo uso, prontas a degolar
o temporal que  falta
da montureira do tempo já visitado

nem lembra ao diacho

e já nem te lembras da reunião onde

de quem te lembras, ...?

... quando tentas lembrar-te de alguém em especial. E se não comparece à 
chamada dos dedos?
Não te amofines. Se não é quem tu pensas, é alguém que começa então...
a existir.

As cinzas que posso carregar comigo

Como comentário a uma entrada sobre a fala dos olhos que brincam com o fogo de um forno cremátorio, a minha amiga Maria Pedro escrevia, a despropósito, o seguinte:
Caro Professor,
a questão das figuras equivalentes na PAF do 6º ano está mal formulada. O rectângulo e o quadrado não são equivalentes. Se efectuar as medições e calcular a medida ada área, poderá verificá-lo.

Melhores Cumprimentos,
Maria Pedro
Dei-me então ao trabalho de ir a
http://www.gave.min-edu.pt/np3content/?newsId=7&fileName=Provas_2ciclo_mat.pdf
e, cuidadosamente copiar o quadrado e o rectângulo da questão 8 da prova de aferição do 6º ano (que convenhamos só por muita sorte teriam exactamente a mesma área depois de passarem por várias máquinas de desenho e cópia) e dei-me ao trabalho de as juntar num só desenho de cinza

para concluir que o lado do quadrado é a média geométrica das dimensões do rectângulo, como se mostra numa construção (geogebra) que é o melhor que se pode pedir para dizer que não é disparatado esperar que alguém as escolha como figuras equivalentes. As restantes escolhas não seriam colhidas por quem sabe da impossibilidade da quadratura do círculo ou que um triangulo que parece o quadrado dobrado a meio não é equivalente ao quadrado.

Acharia já pouco natural, mas enfim não disparatado, que me colocassem uma dúvida dessas no
http://geometrias.blogspot.com

Natural é que coloquem todas as dúvidas e reclamações ao GAVE, gabinete do ME do governo do meu país democrático, sendo certo que o meu voto não contribuíu para tornar possível esse (des)governo.
Não percebo eu porque mereço comentários destes a uma reflexão melancólica sobre as minhas próprias cinzas no lado esquerdo para onde me virei no intuito de esmagar o meu coração. E fico triste.
Ou mereço e só eu não percebo porquê. Até porque não me pronunciei sobre qualquer questão em particular desta ou doutra prova de aferição. Há professores para fazer esses comentários detalhados sobre as questões referidas ao que fazem na sua arte de ensinar. Eu sou professor do 3º ciclo e do secundário e muito honradamente me esforço nesse sentido, sem me arrogar a mais que isso.
De qualquer modo, aqui fica uma ilustração interessante: duas pás de cinza sobre o assunto das minhas cinzas.

A fala dos olhos que brincam com o fogo

Ele levanta os olhos para dizer:
- A continuar assim, ainda vais morrer sozinha!
Ela, sem olhar, disse:
- Porquê? Vais deixar-me?
Ele concluíu:
- Não! Morro  antes de ti e tu é que vais despejar-me as cinzas.

E, sem mais palavras, deitaram-se rindo como de costume.

olhar para o chão

dei por mim a olhar para trás e não quero ser o que olha para trás de si que é o lugar do rasto, de rastos. de resto, a vida que interessa está presente. ou não está e nem existe. quando dou um passo em frente dou um passo em frente e nada mais que isso. ainda agora passei pelo que vejo a olhar para trás. ou já lá não está o que fui e olhar para trás significa ver o que não esperava ver? não olho para trás, não olho para a frente. hoje decidi olhar para o chão à minha frente. ando nisto há muitos anos e não vejo mal algum nisso a não ser a frustração de não achar o que resta depois da passagem dos outros. ou será que os que passam nada deixam que possa ver-se? a minha mãe também olhava para o chão meticulosamente e também não achava a passagem dos outros nem seguia rastos ou qualquer pista. por vezes via que ela parava e cuidadosamente arrancava do chão ervas daninhas para que secassem e fossem passadeiras dos passos seus e dos outros. eu não sei quais são as ervas daninhas e o chão não me devolve mais que um eco do meu olhar ignorante e

asilo

lá fui vivendo enquanto as mais vulgares
palavras entretanto expulsas dos versos
pediam asilo em línguas estrangeiras

canto da véspera

não projectei o plano do passado e não projecto o plano do futuro:
sobrevivo num separador plano de presente
qual brinquedo macambúzio

em vez do canto do tempo ouço
a tempestade longínqua
vinda da véspera como um tremor

nos alicerces

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