Na hora da Mudança

Depois de apresentações em Aveiro (na Biblioteca Municipal com Márcia Souto, Filinto Silva, Joaquim Filipe e Francsco Vaz da Silva...) e Lisboa (no Grémio Literário com Márcia Souto, Filinto Elísio e ... ) no mês de Julho,


vamos apresentar-nos, neste mês de Setembro, ao Porto Campanhã no MIRA Fórum
com Márcia Souto, Filinto Silva, Fernando Pereira e José Paiva..

compreender a beleza

Ele  sempre disse que o pior está por vir. Tanto podíamos  acreditar como não acredi­tar. E eu habituei-me ao meio da ponte.

Ele sempre disse qualquer coisa.  E nós, os outros, só tínhamos que o ouvir (e falar se disso fossemos capazes). Todos nos diziam isso mesmo. Mas não me lembro de som algum que tivéssemos produzido ou que, mesmo que vagamente, se ouvisse no cimo do monte onde acampá­mos à espera do inimigo que nunca chegou.

A beleza?  Foi para aqui chamada e faltou. Não a compreendo.

nada me serve

havia o vigésimo quinto de abril e o primeiro de maio  para me apagar, mais um na multidão, sendo  parte do que não se pode apagar por ser um dos que faz a multidão não querendo ser visto só como mais um sem desafinar as palavras de ordem  com um toque de desordem escolhia bem sempre  sector diferente de manife para manife pensando animar ao  somar-me  como desconhecido novo até que um dia ao meu lado alguém disse mais um não faz do finito o infinito o que é verdade

vai e volta

eu quis encontrar-te num verso sem avesso
que fosse o teu e o meu regresso

ao canto da casa onde a voz se solta
uma vez e outra vai alegre e logo volta

até que me e te reconheço

onde

amanhece

onde pelas paredes
te deitaste
para dormir


com as mãos medes
o que contaste

para me fazer rir.

pela via dos outros



1.
Viemos pelas ruas de lama
até

aqui

chegados

pendurámos os casacos
no mesmo gancho
em que pendurámos

os passados


2.

Tínhamos tomado a forma
das pessoas
e seguíamos rigorosamente
a norma
de rotinas da outra gente
tal qual
como víamos.

Saíamos de casa
manhã cedo
e voltávamos imitando
até o medo
que não tínhamos.

3.
A pessoa mais popular
do bairro produzia sons
que desagradavam
a quem ao falar
docemente
dizia bom dia
como a cantar

hesitámos em imitar
em escolher os desagradáveis
mas populares
ou os que trauteavam bom dia senhor

até descobrirmos que havia
quem nada nos dizia

4.
Também fingíamos ler
os livros da biblioteca local
onde chegámos seguindo outros

até que alguém de tanto ler connosco
fez a pergunta natural

está a gostar?
ainda não aprenderamos
as perguntas sem resposta
e olhámos um para o outro
saindo ao mesmo tempo.


5.
O mesmo acontecia com o resto
das coisas que fazíamos
como os outros
faziam repetidamente

até pensarmos que isso era o normal
fazer.

E à medida que fomos ficando parecidos
com a outra gente do bairro

sossegámos e baixámos a guarda.

Afinal éramos como toda a gente

até deixarmos de saber quem éramos

ou quem somos
afinal.

o que ele dizia não devia ter sido escrito

Ela:
ele repetia um livro sobre a bondade e sobre a maldade
sobre a amizade sobre o ódio sobre o amor
e sobre a violência da paz contra a guerra
Vocês, os rapazes, só tinham que o ouvir falar se disso fossem capazes.


E todos vocês repetiam o que ele dizia

Só não me lembro de som algum que tivéssemos nós produzido
muito menos
que se ouvisse no cimo do monte onde acampá­mos junto à fonte
à espera do inimigo do amigo

que nunca mais chegou

esse dia nem ele.

onde amanhece

amanhece

onde pelas paredes
te deitaste
para dormir


com as mãos medes
o que contaste


para me fazer rir.

daqui ao antípoda daí

Daqui até ao antípoda daí,
Tudo está cercado por fronteiras
que podem ser os fiapos colados
o mapa contentor da projecção de Tudo:
uma planta de curvas de nível
onde o que importa é nada
e o que nos assombra é a cor
do incolor,
o cheiro do inodoro,
o ruído do inaudível
,…, o Nada de Tudo.

Sobramos nós, por nós; para NÓS?

sei que nunca fui esquecido


Eu sei
e toda a gente sabe que quando fui
fui bom para toda a gente
- disse o dito ou cujo.
E parece-me que tem razão porque ele foi
embora quando foi embora.
- disse  o coro.

uma sagrada família deambula



andamos por aqui e tão
coloridos que não há  quem
não repare no que somos:
uma família de cromos
um pai + uma mãe
e + um pequeno senão







o ofício de riscar papel


Se não fosse por acaso,
outra razão me levaria forçosamente  a riscarbr> o papel que me cerca. 
Se fosse ilha e a água me cercasse,
a água riscaria com o dedo fora de borda
como se eu fosse um barco.

Exactamente para romper o cerco.
 


agarra-te bem

Como consegues fazer isso de viver no ar?  
As mãos seguram  dois paus  ou seguram-se  neles?
E os pés? Parecem presos a duas linhas que não parecem tensas cordas. 
Será  que te seguram no  ar?
Pareces contente. Não te dói? Pensas em ti quando te moves? Pensas?



O cabelo de mãos nos bolsos






Tempos houve em que sonhava que os meus cabelos se confundiam com as costas e as mangas de um casaco coçado e as barbas me serviam de agasalho ao pescoço e ao peito. E, uma vez por outra, podia seguir fascinado um homem que era como nos meus sonhos. Até cheguei a dar título ao meu sonho - O homem de cabelo com as mãos nos bolsos. Nesse sonho de vida apareci sempre grisalho aos meus olhos e é, por isso, que compreendo bem que me digam - Estás sempre na mesma, pá! Só eu sei que vivo sainda o mesmo sonho de sempre





o que eu vejo tu não vês


O que eu vejo não é o que tu vês, o que eu ouço não é o que ouves, o que eu desenho ou digo não é o que lês. 
Escrever palavras que ninguém ouvirá é o que eu sempre procurei. E que as palavras que eu venha a dizer nunca sejam escritas. 
Porque as palavras escrevem-se para serem lidas e dizem-se para serem ouvidas. Não são as mesmas ainda que iguais pareçam, como me acontece ao não me reconhecer na minha voz gravada.
E o que eu escrevo não é o que tu escreves mesmo que sejam mesmas as letras das palavras que escrevemos, elas são entendidas de modos diferentes se atribuídas a mim ou a ti e mais diferentes ainda se as dissermos simultaneamente ou se eu as mesmas disser em momentos diferentes ou olhando para quem ouvê ou ouvive instantes diferentes.

a quem não se conhece

Houve tempo para escrever um epitáfio a cada um dos conhecidos  mas a pensar em todos os que não reconhecemos, assinalámo-los com uma  cruz sobre o chão onde descansavam, procurando tornar claro que os considerámos da nossa comunidade religiosa mesmo sendo pobres e não nos merecerem outra memória senão uma cruz por cada um. Para que não se pensasse que não os tratávamos como iguais, todas as cruzes eram iguais entre si e, não levando em linha de conta os adornos, mesmo iguais como cruz às cruzes que se espalhavam por todo o cemitério dividido em linhas e colunas separadas por caminhos de saibro as linhas e por pavimentos coloridos as colunas. Mas nada de palavras e datas que os pudessem identificar como fizemos com os que reconhecemos como sendo os nossos. Os estranhos curiosos que visitavam o cemitério louvavam o gesto mas não deixavam de perguntar quem seriam os mortos que não tinham nome e porque diacho ali tinham vindo parar e porque ali ficavam enterrados naquele esquecimento de tipo particular: procurávamos tornar públicos que ali havia ossos enterrados mas ossos de ninguém.
Porquê? - perguntavam. Enquanto os visitantes fizeram perguntas às pessoas da geração que criou o cemitério e a regra, tudo parecia natural e a nossa comunidade foi considerada solidária e respeitadora para com os seus visitantes do passado desconhecidos na comunidade.
Mais tarde das perguntas feitas a pessoas que não sabiam por não terem ouvido palavra a respeito desse estranho hábito em cada cruz a marcar a existência dos ossos de algum visitante desconhecido passaram a ouvir outras explicações. Alguma coisa se quebrou a dada altura do que resultou uma grande época sem visitas até que sobraram duas pessoas da comunidade e nem mais uma visita de fora nem de dentro. As duas pessoas que ainda lá vivem não se conhecem e por isso ainda existem como guardas às portas das duas entradas que a comunidade tem: uma à entrada para cobrar a vida de quem entra e outra à saída para garantir que a vida fora cobrada como mandava o hábito mais antigo e conduzida até à entrada do velho cemitério.

Estive recentemente num ano de passado

quem se levanta para ver se
num labirinto abre um olho
mostra depois como o labirinto
o visita tanto quanto o desejo
de alugar a sua cabeça de amores
por um estranho corpo de gato
assustado por ser
sendo
um outro labirinto feito de restos
do corpo impossível de classificar

inerte na mesa do tempo

os pés pelas mãos


Os fungos e outros parasitas habituados a habitar o corpo de Amarildo Vinagre sobreviveram vários anos comendo as pernas do Amarildo. Quando as pernas acabaram, os parasitas provaram os pés de Amarildo e não gostaram. Também não gostaram de continuar a comer subindo sempre como até aqui onde passaram algum tempo feliz a mastigar o pernil de Amarildo. Um dos parasitas deu um pequeno salto e achou-se numa das mãos e no caminho de um dos braços de Amarildo de que gostou. Não tendo ele voltado para trás, outros parasitas tentaram o mesmo salto. Um a um, até a família toda subir na vida a pulso de Amarildo. O Amarildo que até aí tinha andando a temperar as pernas com o seu Vinagre, passou a temperar com Vinagre os seus braços. Ao terem acabado com as pernas do Amarildo, os membros da família dos parasitas descansaram sobre o caminho a tomar. E num impulso trocaram os pés pelas mãos quando as mãos de Amarildo se coçaram em vez de serem as pernas a fazê-lo.

se ainda tens os dentes todos

lembro-me de ti muito vagamente
mas não sei - como posso saber? -
se ainda tens os dentes todos
o que pouco me interessa e só me intriga

poder viver pendurado pelo desejo de saber
dos teus dentes que talvez nunca tenha visto
porque, disto lembro-me bem, reagias lentamente
a cada parvoíce minha e o instante feliz

nunca mereceu mais que um meio sorriso
que eu sempre soube, de fonte segura,
não era mais que um disfarce da amargura

sobre o nível actual da minha falta de juízo
ou as nódoas que eu não via mas viviam
comigo bem visíveis na gravata que eu não vestia

ainda há quem resista à chuva prevista

volto ao lugar do tempo em que saltei
por impulso para o ar da varanda
levado pela tempestade anunciada
por meteorologistas amadores
como eu

aqui espetando o ar no céu
de chuva
e eu poder acertar na previsão:

agora aqui sim chove
como eu preciso.

há sempre um insuspeito de serviço para dizer o que…

por estes dias houve notícias provenientes de espanha sobre uma escapadinha ao fisco de milhões acrescentada da incompreensão por não ter daí vindo alguma prisão de encontro ao suposto escapista.

na mesma altura vieram as novas sobre as obras de museu do escapista filantropista e do seu talento para além da cor de algumas das suas botas e a desculpa contra os contabilidosos nome desde agora atribuído a cada um e  a todos os contabilistas de escapistas.

eu não sou dado a bisbilhotar a vida dos outros e muitas vezes nem dou pelas manobras de contabilidosos e  governos dados a riquinhos que em tempo de grandes fugas de dinheiro para idílicos bancoraísos e fugas de impostos para os braços da riqueza excessiva negoceiam na base do perdão de dois terços muito religiosos do roubo caso o gentil ladrão se dê por apanhado e devolva ao menos um terço do seu divinal roubo por que se trata de gente que por tanto merecimento nos combates da extravagância na  moda das figuras públicas publicitadas pela publicidade e pela socialite da merda que une os merdosos sem vergonha alguma ….. sei lá o quê.

mas desta vez choquei com umas considerações de um qualquer a julgar-se tão nsuspeito cidadão que até eu cheguei a tomá-lo por isso e já nem me lembro de quem é

dizia ele ser uma vergonha permitir algumas informações a acompanhar essa notícia e a garantir que com certeza não houve qualquer fuga de impostos e que tudo tinha sido resolvido de acordo com a lei e só por maldade podia pensar-se que o génio riquíssimo pudesse ter fugido aos impostos e ainda menos que ele não tivesse pago tudo o que algum cocabichinhos judicioso lhe mandasse pagar tanto é o dinheiro que tem e detém……


de outro modo ficamos a saber que nenhum riquíssimo pode ter interesse em não pagar impostos já que os impostos são as ninharias para os riquíssimos isto é representam tanto quantos os amendoins que damos aos elefantes na prisão do zoo ou a alpista que o riquinho dá à sua passarinha presa na gaiola dourada cuja única obrigação é cacarejar bom dia ao seu dono e senhor sempre que ouve notícias da bolsa.

um português minimamente atento sabe é que os mais ricos dos ricos notáveis incluindo velhas rainhas e riquinhas não fogem aos impostos e que são exageradas as notícias dos que aceitam o perdão do crime e da prisão por devolverem religiosamente um terço do crime lavando dois terços que é considerado regresso a casa do dinheiro tornado apátrida por acaso.

é com o dinheiro assim lavado que os riquinhos podem receber a absolvição no confessionário judicioso e fiscalizodioso para acompanhar como padrinhos descendentes e parentes à comunhão solene ou ao casamento forrado com dinheiro lavado.

aqui há homens e mulheres e não há gatos

muitas notícias que leio não têm homens nem mulheres.

o leitor pode colocar as virgulas onde quiser para obter a leitura que lhe interese ter ou dar a ler. refiro-me sem virgulas algumas a notícias de investigações judiciais e tribunais com referências a corrupção de gabarito roubo descarado ao estado que nós todos formamos crimes de bem vestidos amigos de seus amigos de colarinho branco e mãos sujas bem cuidadas que mexem na merda com luvas etc.

muitas delas nem nomes de pessoas referem por segredos vários a começar pelo segredo da justiça quando convém pelo segredo devido ao filho da mãe ou pelos problemas que levanta ver pessoas muito importantes e ricas envolvidas em situações que nunca parecem o que são e nunca são o que parecem e postas em público poderiam criar um alvoroço tal que para além dos pobres até os riquinhos perderiam a vontade comer e de má nutrição inundariam as consultas de psiquiatria.

noutras são referidos nomes de pessoas inefáveis que aparecem como se estivessem voando sem nunca deixar marcas em átrios brilhantes nem em papéis que nunca chafurdam apesar de porcos com porcarias bem limpas penduradas em todos os fatos sendo algumas delas comendas e encomendas das almas em seu redor. as pessoas sabem que eles não existem porque quem passa por eles e os vê não acredita na sua existência ou porque aparecem limpos demais de um mundo de muitas porcarias asssertivos a falar baixo e doce com as palavras bem silabadas e salivadas tanto quanto precisam e nem mais uma gota disso. estamos convencidos que elas não existem para além das palvras que as cercam porque nunca são condenadas e nenhumas palavras as comovem e elas continuam a aparecer naquelas revistas cor de rosa ou cor de laranja ou cor de burro que não precisa de fugir ou mesmo na televisão a comentar sobre a foram como o estado é ladrao ou os defeitos da ralé que enfim é o que é. nestes casos há nomes de pessoas mas não há pessoas. mesmo quando sonhamos com os nomes e lhes atribuímos corpos eles aparecem-nos como osgas mais ou menos transparentes agarradas aos tetos dos palácios (ou das vacas que os pariram) e isso torna as notícias com nomes de homens corruputos e mulheres corruputas sem homens nem mulheres.

quando vamos para velhos só nos resta tentar compreender e aguçar os sentidos ao mesmo tempo que perdemos a memória essa desgraça que nos lembra a necessidade de nos levantarmso para ler as notícias sobre isso e o lixo.

guarda-roupa

Desde que passou a usar recipientes para a roupa suja no lugar das orelhas, nunca mais teve tempo para fazer cera.

ventira

O moço falava com dificuldade e trocava as letras ao falar.
Na minha terra toda a gente dizia baca em vez de vaca e não era bergonha.
Mas no caso do moço, escrevo assim para manter o anonimato do moço, que coitado já se fez falso tímido.
De facto, o problema de fala do moço talvez seja mais parecido com aquelas pessoas que não sabendo soletrar o rre diz le, de tal modo que quando queria dizer burro dizia vule atraindo a condescendência das senhoras distraidas que esperavam o chá bendito e não palavras mal ditas por um qualquer.
Mas não era bem estas trocas de letras, nem era como aquelas pessoas incapazes de pronunciar o quê.
Ouvi um amigo meu contar a história de um barbeiro de aveiro

(eu preferia pronunciar ábeiro, como também prefiro ibalho a ílhavo, mas tudo bem! se querem aveiro, ouçam aveiro quando eu falar de ábeiro)

a quem isso acontecia e se tornava difícil entender quando ao pronunciar contem lhe saía ontem, não sei se estão a seguir-me e a ver o verdadeiro problema do barbeiro?

Eu troco tudo, também troco as letras e até as sílabas dentro das palavras, mas é possível que mais tarde ou mais cedo me entendam porque posso repetir corrigindo até que se perceba.
A família não compreende esses "dislates" e me perguntam-me porque faço eu o papel de belhinho

(que outro papel pode fazer um velhinho daqui?)

e já me ralharam uma ou outra vez, em público e na presença do moço, quando me saíu alguma parvala fora do sítio, chegando a chamar-me tótó!

Mal eles sabem que eu, sempre numa boa, distribuía pelos meus alunos mais jovens a palavrinha tótó

e carinhosamente

E foi assim, por isso, que eu não estranhei quando ouvi, o que é raro, o falso tímido falar

ventira!

em minha defesa.

Andar de vespa

Cabeça tronco e membros. Perde-se a cabeça e os membros e sobra o tronco que deve ser capaz de rodopiar autónomo em torno do eixo das pernas. Estudei o assunto durante muitos anos, partindo desse princípio e concluí que o tronco só podia ser um sólido de revolução - uma revolução. Mais tarde concluí que teria de ser um pião e ainda mais tarde vim a inclinar-me para que podia haver dois piões rodando independentes. Foi então que percebi que o mundo das vespas era a perfeição para modelo feminino e fiquei de rastos quando compreendi que toda a gente aí tinha chegado antes de mim, sem precisar de literatura nem de matemática ou física. Era só química a não exigira qualquer esforço intelectual. A frase “ela tem uma cinturinha de vespa” era um condensado das minhas hipóteses e das minhas teses a respeito da revolução e dos seus sólidos. Muitos anos após a desilusão científica, ouvi um amigo queixinhas, que tinha dedicado toda a sua vida ao estudo de vespas, queixar-se que já não havia cinturinhas de vespa e já não cantava “oh minha vespa rainha, faz de mim … o instrumento do teu prazer …e da tua glória, sim oh sim! “ e que começava a acabrunhar toda a gente em redor incluindo as obreiras (à rainha nunca tinha visto cintura) com a sua lamúria repetida: “já não há cinturinhas de vespa”. Foi ele que me levou de volta à observação pertinaz até que os meus olhos de fundo de garrafa me mostraram uma cinturinha de vespa a deambular, entre nós em passeio de tristes, com dois movimento de rotação que a levaram para longe de nós que ficamos a rodar por ali como dois cilindros tontos e enjoados. Não conseguindo travá-la para uma conversa e, reduzidos à categoria de cilindros, nem de uma fotografia fomos capazes. Em casa, de memória cilíndrica, desenhei um esboço que mostrei ao meu amigo. Nunca mais falou comigo e amontoou todos os seus piões numa gloriosa fogueira. Ao longo da sua vida tinha comprado com afinco piões para oferecer aos netos que nunca pudera entregar por haver sempre alguém a gritar que era perigoso brincar com piões. Da fogueira sobraram os bicos metálicos dos ex-piões, de diversos feitios mais ou menos afiados, mais ou menos rombos. Guarda-os numa caixinha e todas as tardes, enquanto outros jogam a sueca ou ao dominó, ele faz passar entre os dedos, um a um, os bicos metálicos dos ex-piões. dividindo e separando, sem descanso, os bicos dos ex-piões de cima dos bicos dos ex-piões de baixo. Eu guardei o meu esboço e pedi-lhe autorização para o publicar no facebook. Ele não disse nada, como sempre, e eu, como quem cala consente, dei a conhecer a minha ideia de cinturinha de vespa. Que o meu amigo me perdoe se estas palavras lhe doerem.

de como fué la creación

Érase una vez
un mundo en el que no había nada.

Nada.
Nada de cuanto es conocido,
ni siquiera un viento que soplara,
ni un sol que calentara,
ni el agua para beber,
ni el frio para hacerte estremecer.

Nada.

Nada de verdad!



Ph.Lechermeier & R. Dautremer.
una bíblia - antiguo testamento.
edelvives. Espanã:2017
Livraria Gigões e Anantes, Aveiro

sair de casa

eu saio de casa para ir em redor da casa sempre pelas mesmas ruas, cumprindo rotinas que não sei de onde vêm e são por isso não rotinas. espero as pessoas que quero ver todos os dias no outro passeio que não o meu e aproximando-se pela minha frente ou sej am sentido contrário ao meu. as pessoas que eu quero ver nem as conheeço e elas nem sabem que eu existo, simplesmente me cruzo com elas e elas sorriem ao meu assobio que varia muito dependendo das música s que vou ouvindo e sobre alguns temas conhecidos a partir dos quais são os assobios improvisados. para mim, basta-me as pessoas que passam em sentido contrário ao meu e sem me reconhecerem. esta rotina permite-me caminha depressa e não parar. às vezes um conhecido trava-me e tece considerações sobre a música, o tempo e a família e eu disparo disparates como se precisasse de falar muito que é uma forma de não ouvir o que ainda não sei por ser actual ou que não quero saber de novo. há dias em que penso mesmo que sou feliz e já ouvi pessoas que me conhecem há muitos anos garantir que eu sou um tipo muito feliz e de bem com a vida. assobio a isso.

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