partida

Eu vou ver o branco dos olhos magoados
as madrugadas onde elas estiverem na preguiça
e em alguns dias dos mais desesperados
cantarei, pela salvação da minh'alma, uma missa

Se alguém sossegar a um canto da minha igreja,
gozando a solidão do fresco da nave lateral,
farei do meu canto um tal silêncio feito em cal
até não ser mais que estátua o que de mim se veja.

Modelos financeiros

O desenvolvimento económico e social coloca à disposição dos cidadãos uma enorme variedade de produtos e serviços. E, de cada tipo de produtos, a rentabilidade das cadeias de produção é assegurada pela produção de enormes quantidades que precisam de ser escoadas por serviços de distribuição eficazes. Dito de outra forma, as sociedades industriais desenvolvidas produzem cada vez mais (em diversidade e em quantidade) e criam serviços capazes de criar a necessidade social (soma de necessidades individuais) dos diferentes produtos para alem da sua distribuição por todos os lugares da terra.

Em sociedades como a nossa, para se garantir um acesso generalizado aos bens disponíveis (muitos ainda antes de haver deles necessidade real e sentida) criam-se outros tipos de serviços (por exemplo, serviços financeiros, banca, seguros) que antecipam meios, por via dos empréstimos (crédito), aos cidadãos para que eles comprem os produtos a todo o custo.

Os ciclos infernais de produção são acrescentados pela obtenção de lucros rápidos baseada também ela na rápida e brutal a exploração da mão de obra. A necessidade de vender é acelerada pela concorrência e por sistemas de rotação de produtos que os tornam rapidamente obsoletos. Esta necessidade de vender transforma-se em pressão sobre o conjunto dos consumidores que são cidadãos por terem acesso aos bens essenciais ao seu bem estar e são vítimas sem direitos logo que se deixam cair na passadeira rolante financeira de marcha mais rápida do que a marcha dos reais rendimentos do seu trabalho. O que há mais nas sociedades de consumo é má gestão de expectativas. E há os donos de tudo que precisam de ter cada vez maiores lucros e, de uma só vez, chegam a sacrificar produtores e consumidores. Cada produtor é consumidor e um desempregado não produz nem consome.


Os problemas sociais a este nível são de tal ordem e têm tal influência na vida pessoal, familiar e social, que os sistemas educativos tratam estes assuntos sob os mais diversos aspectos. Por exemplo, em alguns programas de Matemática portugueses, já aparecem os modelos financeiros e não só para que cada pessoa possa agir de forma mais responsável (e logo mais livre) quando recorrer ao crédito e para evitar o endividamento excessivo, mas também para participar nas decisões sociais sobre o endividamento das autarquias, dos governos, etc.

Estou em crer que poucos jovens se inscrevem em cursos com Matemática Aplicada às Ciências Sociais e continuaremos com uma população juvenil sem formação em modelos financeiros. Nem de propósito. A formação nestes aspectos é uma exigência da cidadania. Mas na falta dela, podíamos contar com o exemplo das autoridades e das instituições que mostrassem, pela sua acção, em palavras e em actos, que utilizam os seus conhecimentos sobre os modelos financeiros para fazer uma boa gestão da coisa pública. A sua imagem valeria mais que mil palavras dos professores.

Mas ... a manipulação contabilística e o manobrismo financeiro, praticados pelos governos e pelas câmaras, não ajudam a educação do povo. A Câmara de Aveiro é também um mau exemplo. Cobrar aos munícipes 3 milhões por um serviço de distribuição de um bem essencial (como é a água potável) sem pagar o que quer que seja ao fornecedor do produto acrescenta maldição de má-educação financeira genuína a tudo o que já condenámos como miséria politica em matéria de buracos negros para onde foram atraídos todos os fundos e todas as frentes da nossa ca(u)sa colectiva.




[o aveiro; 29/7/2004]

Fico parado a olhar

Creio que podia regressar e viver com os animais, são tão plácidos e autónomos,
Fico a olhar para eles longamente.

Não se impacientam, não se lamentam da sua condição,
Não jazem acordados no escuro e chorar os pecados,
Não me maçam com discussões sobre os seus deveres para com Deus,
Nenhum está descontente,
Nenhum sofre da mania de possuir coisas,
Nenhum se ajoelha perante outro, nem ante os antepassados que viveram há milénios,
Nenhum é respeitável ou infeliz à face da terra.

Revelam a sua relação comigo e aceito-a,
Trazem-me sinais de mim, provam claramente que contêm em si mesmos,
Pergunto-me onde terão adquirido esses sinais,
Será que em tempos remotos por aí passei deixando-os negligente cair?

Avançava então e avanço agora e sempre,
Juntando e mostrando sempre mais e depressa,
Infinito e de todas as espécies sou, e igual a elas sou,
Não escolho demasiado aqueles que me recordarão,
Elejo aquele que amo e fraternalmente com ele vou.

Um garanhão de beleza imensa responde logo às minhas carícias,
A alta fronte, os olhos afastados,
Os membros reluzentes e flexíveis, a cauda longa varrendo o chão,
A ferocidade nos olhos cintilantes, as orelhas finas, com elegância se move.

As narinas dilatam-se quando os meus calcanhares o apertam,
Os bem torneados membros estremecem de prazer enquanto galopamos e regressamos.

Só te uso um minuto, garanhão, e já te deixo,
Para que preciso do teu galope quando o meu te ultrapassa?
De pé ou sentado sou mais veloz que tu.



[Whitman; Canto de Mim Mesmo.
J. A. Baptista]

Homem ao mar!

Quem defende a vida, ama a natureza! - esta é a frase mais forte que Paulo Portas encontrou para justificar a nomeação de Nobre Guedes para ministro do ambiente. Não precisava. O povo sente que entrando Nobre Guedes, o ambiente logo se torna "chic" e mais "in". Sentimos isso na sua magistratura superior no conselho da dita. Telmo Correia especializou-se na promoção de viagens a destinos ideológicos duvidosos e é por isso e muito legitimamente ministro do turismo de um dia de verão, de preferência na quinta do lago.
Estes dois casos são dos que têm mais piada, logo a seguir ao Santana, promotor de missa simbólica e visita guiada ao cemitério, no primeiro dia de papel de primeiro! Benza-o Deus! que ele já esqueceu como é que se faz!
E há o problema da cultura que foi feita em cacos de Roseta para ser património à altura da tia Bustorff.

Eu não acho que um professor ou um pedagogo ou um cientista da educação, etc seja forçosamente melhor ministro da educação que outro qualquer cidadão politico que se interesse pelo tema e sobre ele (sobre o sistema educativo) tenha trabalhado e produzido opinião politica. Mas acho que é muito difícil defender a ministra da anacom. Sabemos que andou nas escolas e talvez conheça uma ou outra criança a frequentar um colégio deste reino unido por um primeiro mais ungido que indigitado. Ungido por Durao e indigitado por Sampaio!

Não há educação que resista a tanta falta de educação. Porque brincar aos ministros é falta de educação, estamos à espera que nos provem que isto das nomeações de Santana não foi uma brincadeira de mau gosto. Tem de haver alguma lógica nisto.

O que mais me intrigou nesta semana que passou foi o pedido de benefício da dúvida para o governo. Ora eu, não tenho nada além de dúvidas a respeito do dito. Podem contar as minhas dúvidas todas se isso melhorar a média do benefício.

O que me conforta é a "criação" segundo Santana. Para criar um homem é necessário barro e sopro divino. Para criar um ministro, basta que o sopro de Santana toque o nada.

[o aveiro; 22/07/2004]

verdade do amarelo





Parto para vilarinho das perdizes. Nunca vi amarelo mais perfeito que o amarelo das flores de tojo daqueles montes.

intervalo

quando me cansa a frase seguinte
do relatório que folheio
venho até aqui como pedinte
pedir esmola às pessoas em passeio

...

uma esmola, duas pepitas de memória
peço por uns instantes a mais de sossego
como se reclamasse o salário do cego
que canta uma lengalenga sem história

outras vezes canto tão alto um fado à janela
aquele que aconteceu ao pintor que assassinou
à facada o auto-retrato da sua última tela
esse rio de tinta para onde se atirou.

Passe-me o sal!

Entrámos na casa de pasto, quase ao mesmo tempo. Faz favor! O senhor primeiro! - disse eu, enquanto segurava a porta entreaberta. Muito Obrigado! - ouvi-o, numa voz sumida.
Quando habituei os olhos à sala e dei uma vista de olhos pelas mesas, comecei a arrepender-me de o ter deixado entrar primeiro. Nada que possa ser considerado indelicadeza; o facto é que eu tinha mesmo pressa e ele parecia-me um sujeito reformado, pacato e cheio de tempo ali a ocupar a mesa que tinha sobrado para um de nós. Durante uns momentos em que hesito - saio, não saio - fico a olhar para a mesa invejada. Quando ele levantou os olhos do papel rabiscado que passa por ementa, viu-me. E chamou-me com um gesto da mão.

Lá fui eu até à mesa, já aborrecido por ir perder o meu tempo. Mas, afinal, ele não fez mais do que convidar-me para almoçar. Em resposta às suas insistências, não mais que murmuradas, acabei por sentar-me à sua frente.

Que vai ser? - perguntou o empregado de mesa. Esperei que ele murmurasse: - Bacalhau, por favor! e água - para eu pedir - Tripas! e vinho -, claro, em voz alta. Ainda atirei: - Rápido! Com gás? - perguntou o empregado ao meu companheiro de mesa, que se riu levemente quando eu levantei a voz para dizer: - Agora têm gás na canalização ?

Enquanto esperava, pus-me a conversar. A conversar nem é bem o termo. Eu comecei a falar da vida, das ruas , do trânsito, do tempo, de futebol, ... enquanto ele me ouvia pacientemente e com atenção. Com tal ouvinte até me esqueci da pressa que tinha e continuei a falar ao mesmo tempo que comia. De vez em quando, ria-me das minhas próprias graças com a boca cheia, para que ele soubesse que era para rir. E ele sorria. Eu nem precisava de mais. Sentia-me bem.

A única vez que ele falou, na sua voz sumida, disse: Passe-me o sal! Eu bem o ouvi e logo lhe passei o sal, sem deixar de falar um só momento. Entre as coisas que disse, também pedi a conta e exclamei: à moda do porto? E, sem parar, passei para a politica. Aí foi um tal falar dos gajos de Lisboa e da pouca vergonha dos políticos, dos tachos, das reformas à nascença, dos filhos da ... Acabei a falar no Santana que era o indigitado do momento e andava a formar governo. Não podia faltar! Ainda a conta não tinha chegado e já eu estava a mandar bocas sobre aquela ideia de um ministério da economia no porto. E ri-me a bom rir. Quase me entalava com as minhas piadas. Para finalizar, ouvi-me a dizer: Tinha piada!

Você acha? - atreveu-se ele a perguntar. Então não acho! - respondi eu. O que é preciso é uma economia à moda do porto! Já estávamos à porta da tasca.

Um Mercedes encostou-se ao passeio. O condutor fardado saiu e veio abrir a porta mesmo ao meu lado: "Faz favor, senhor ministro!"
Ainda ouvi um murmúrio de boa tarde, antes de ficar sozinho na berma da rua.

[o aveiro; 15/07/2004]

a uma sombra

(...)
À volta da tua cabeça até o pó tapar os teus ouvidos,
A hora de provares essa aragem salgada
E escutares às esquinas ainda não chegou:
Dor que baste tiveste antes de morrer -
Parte! Parte! No túmulo estarás mais seguro.

[Yeats,
J. Agostinho Baptista]

os lados

o lado esquerdo de quem olha.

O abandono da poesia

Olha para mim! - disse ela, como se não falasse para mim. Até porque eu olhava para ela fixamente sem poder desviar o olhar.
No momento, eu não disse coisa alguma.
Então ela cuspiu uma frase assassina que me atingiu em cheio num ouvido. Não aguentei e disse: Porra! Ainda fico surdo.
Ela deu meia volta sobre si mesma e sussurrou-me um murro que, passados quinze anos, ainda me dói nas mudanças de tempo. Perdi-a nesse intante em que aceitei o murro como quem aceita um ponto final numa frase mal escrita e não acabada.
Foi ela mesma quem me disse que me dedicasse a outra coisa. Não usa moços de recados para o trabalho sujo.

Uns anos mais tarde, como se dobrássemos uma esquina, cruzámo-nos ao dobrar uma página do livro que eu tentava escrever contra o tédio.
Recomendo-te o descanso eterno! - foi o que ela me disse então. Lembro-me agora da nítida frase. E começo a arrepender-me de não ter seguido à risca o seu conselho. Também me lembro de lhe ter prometido que escreveria um pedido de resignação ou demissão, ao que ela respondeu secamente - Acho bem! Ao menos isso! - enquanto se afastava para a página anterior aonde eu teria vergonha de voltar, como muito bem ela sabia. Foi assim que eu soube que ela não queria mesmo voltar a ver-me.

Depois disso, ainda lhe telefonei, sabendo que telefonava para o meu passado. Em vão.

espírito aberto

exílio

eu vou cá para fora lá dentro de mim
deste canto exporto olheiras e maus olhados
e óleo de pavão que é dos mais importados
no país onde ninguém se importa antes do fim.

para deleite da canalha

como um palhaço fazes a pirueta
que te faltava para seres o país da treta
e saltimbancando um pouco mais para a direita
adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita

o facto preto das cerimónias

finalmente tenho razões
para chorar e rir como só eu sei
há uma procissão de figurões
e no andor vai santana nua feita rei

Em segundo lugar...

Em primeiro lugar, a união nacional em torno da selecção nacional (de futebol). Todos juntos, vibrámos com as vitórias suadas da selecção e ficámos só ligeiramente desiludidos com a derrota perante os gregos. Comemorámos o segundo lugar e a vitória de uma alegria que parece de todos contra a alegre tristeza de cada um.

Em segundo lugar, ficou tudo o que não foi futebol. Para segundo lugar, foram os problemas e até o Durão Barroso que, de gravata verde e vermelha, para dar sorte!, apareceu nas tribunas vip sem as monumentais vaias que o brindaram antes.

E é assim que, calmamente, Durão Barroso pode sair de fininho a meio do mandato de um luso para um euro cargo, transformando o tal seu governo de salvação nacional de coligação num governo de gestão da coligação até que alguém aceite o coelho que o psd sempre teve na cartola, embora em segundo lugar. Em nome de uma Europa carente do Barroso, este deixa a salvação da nação a meio. Mas tudo se passa em nome da pátria, da honra da pátria ou dos interesses da pátria. Constatemos que há uma pátria particular deles que vai enriquecendo, embora a pátria em geral vá empobrecendo. Começo a acreditar que estes políticos são movidos pelos interesses particulares da pátria.

No meio desta confusão toda, tentam mesmo passar o presidente desta república para o segundo lugar. Tudo no maior respeito, claro. Enquanto esperam que ele cumpra o seu dever de fazer o que eles querem que seja feito pela estabilidade do país, da Europa toda e até das alianças que cabem nos dedos deles.

O segundo Santana que viu, nos astros, esta sua subida a primeiro, faz pose de estado e votos firmes de emenda daquilo que todos sabem. Diz ele que de outros grandes estadistas se disse no fim que eles tinham sido isto ou aquilo. Com Santana, as pessoas poderão condenar o que ele foi, garantindo ele que deixará de ser quem é, em nome dos altos interesses da nação, da pátria, da salvação... até da sua alma. Quem pode resistir a salvá-lo da má vida e a ajudá-lo a encontrar o bom caminho? Se o deixarem salvar a pátria, a pátria salva-o!

Isto é mesmo tudo a sério?

Em segundo lugar? Não há melhor lugar para chegar a primeiro... ministro. Neste circo, aceita-se um cargo como quem engole o trampolim para o próximo.


Nota final:
Últimos na lista da Europa desenvolvida, primeiros no futebol, Portugal e Grécia apresentam-se a concurso dos melhores organizadores de eventos desportivos a que tudo sacrificam. Será este o caminho do desenvolvimento que nos traçaram?


[o aveiro; 8/7/2004]

a cadeira da casa

entras
e sentas-te nos meus joelhos:

a última cadeira da casa que ainda não espatifei por cobardia.

brando

vi-te nas telas: nas planícies incendiadas
és o bisonte que desafia com os cornos
a nuvem levantada pelos próprios cascos.

Sophia

No ponto onde o silêncio e a solidão
Se cruzam com a noite e com o frio,
Esperei como quem espera em vão,
Tão nítido e preciso era o vazio.

(Sophia)

Sophia

Intacta memória - se eu chamasse
Uma por uma as coisas que adorei
Talvez que a minha vida regressasse
Vencida pelo amor com que a lembrei.

(Sophia)

Estrela Rego

Ele deve gostar de saber que eu penso que tenho um amigo, agora e para sempre. Para ele, neste tempo em que morreu para esta vida, começou o tempo de uma outra vida. Ele acreditava nisso e nós, por sabermos dele, acreditamos de outro modo e damos-lhe vida na caixa da memória, essa em que guardamos os instantâneos de encontros felizes. Morreu José Estrela Rego e eu já sinto falta dos "respingos salvíficos do atlântico azórico" com que ele nos brindava nas despedidas.
Há quem se espante com a possibilidade de algum dia termos podido falar um com o outro sem escolher as ideias (para esconder algumas delas das conversas). Um dia estive com ele nas casas da sua vida e guardo a nossa conversa em viagem como "a obra impossível" a que prova como o mundo dos humanos bem podia ser perfeito.




vi(r)agem


Num dia como os outros
solta-se entre as palavras
um fumo enrolado pelos açores

e o brinde tinto lava uma terra inteira:
como uma trave na arquitectura da casa da calheta
a gargalhada comum voa nos corredores

até se enterrar no sagrado chão
onde o chão não existe
porque uma mansa vaca pasta a nossa passagem
pelo mundo.

Num dia como os outros
desistimos de olhar para longe
olhando para dentro.

O beija-flor

Desde pequeno que me habituei a chamar a atenção. Faço biquinho como se fosse chorar quando não me ligam ou como se fosse o mais inteligente de todos e tivesse acabado de descobrir a pólvora, quando os outros fixam os olhos para o pedestal em que me inventei como estátua.

Depois aprendi que vale a pena aparecer ao lado dos mais poderosos, ainda que seja a servir-lhes café, pontuando as suas observações com OK, ámen ou KO. Na televisão, claro. Havia já muitos programas de televisão que tinham tornado famosas pessoas até por serem capazes de passar meses fazendo nada por encomenda. Havia mesmo um menino homem que se tinha tornado famoso por aparecer sempre atrás do repórter-mira do operador de câmara que filmava multidões. Sem perder um plano das câmaras que filmaram multidões do psd, cheguei a primeiro ministro! E não é que fiz chefe das tropas quem nunca tinha sido sequer soldado raso. Não é "nice"?

Convenci-me que podia ser notícia maior, alvejando com desemprego os meus concidadãos e critica os que não tiveram pontaria para isso. Perdi o norte da consciência social e passei a defender o salve-se quem puder. Quando se afogava alguém nos naufrágios sociais por não ter dinheiro nem bóia, sossegava a minha consciência garantindo que deviam ter tido cautela e pago seguros em vez de comer, já que o estado não pode ser uma imensa bóia. Ai, a forma liberal como participei ao lado dos poderosos cabos de guerra! A insensibilidade máxima para com os náufragos culminou com a eliminação e penúria de todos os institutos de socorros a náufragos, deixando naufragar no mar liberal, a saúde, a educação e a ciência, para alem de outras que nem me lembro. Mas que espero não ter esquecido nesses exaltantes momentos de pacovice financeira em que percebi que o produto interno bruto não tinha a ver com o produto interno de matemática secundária, essa que troquei pelo direito para depois me ultrapassar pela direita.

E não é que chego a chefe dos comissários europeus! Com um pais inteiro a falar da honra que é ter-me como testa de ferro do mundo dos poderosos, não podia ser melhor! É a glória.

Para a glória ser completa, preciso de ficar nos livros de história como o tipo que ganhou o euro 2004 e ganhou muitos euros enquanto subia ao pico da Europa dos 25 que me convidaram. E que a história não fale dos ranhosos que não conseguem ver a auréola de santo padroeiro de Portugal em peregrinação e teimam em ver uma auréola da nódoa que sai de Portugal para se espalhar em volta, na Europa.


[o aveiro; 1/7/2004]

Os profissionais patriotas

Precisamos de uma vitória ou outra, uma vez por outra, numa coisa ou noutra. De vez em quando, uma selecção de trabalhadores de um dada especialidade é formada para se defrontar com selecções de trabalhadores da mesma especialidade de outros países.

Quando acontece a necessidade de selecção, não hesitamos em procurar os portugueses que mais se destacam mesmo que eles estejam emigrados. Há casos em que procuramos no estrangeiro os portugueses que desprezámos e empurrámos para o estrangeiro por termos dificultado a sua vida por cá. Do mesmo modo, tem acontecido estranharmos a diferença entre o tratamento que damos aos que querem imigrar quando o querem, daquele que é dado aos que entram com contratos milionários ou que, depois de entrarem, acabam por mostrar uma competência profissional de excelência, capaz de ombrear com profissionais de outros países. Quando tal acontece, nem é raro que aceitemos que esses imigrantes passem imediatamente a ser portugueses.

Assim tem acontecido especialmente com os atletas e as selecções de atletas. Assim, de repente, lembro-me de dezenas de emigrantes e um ou dois imigrantes. E dou por mim a ficar todo contente. A nação do futebol e das selecções não é uma coisa de pessoas, muito menos da sua naturalidade ou residência. E a pátria do futebol é só uma coisa de tão diminuta razão como é a adesão irracional a um clube.

Como explicar a minha alegria com as vitórias da selecção nacional de futebol neste Euro 2004? E a bandeira que se agita na minha varanda?

Fico maravilhado com o bailado, com os passes de bola que vão de um pé até outro e parecem tabelar naturalmente para ir para outro pé de onde parte para algum sítio certo. Algumas das coreografias mostraram-se esplendorosas aos meus olhos. É claro que tal não é propriedade da selecção portuguesa e dos profissionais portugueses. Algumas vezes, fico com a sensação que até é mais bonito o baile mandado das outras selecções de folclore. Também não é pois a prática profissional do grupo de baile mais bem pago do país que me leva a esperar só as vitórias da selecção. Até porque às vezes damos por nós a querer a vitória mesmo quando jogamos pior que os adversários.

Desisto! Sem pôr em causa a noção de nação e sem destruir a pátria, é a irracionalidade que na minha alma festeja as vitórias da selecção de Madaíl e Scolari e outros jogadores desta bolsa (ou a vida!) que não me são simpáticos e até podem ser de outra nação que não é a minha. E talvez por isso haja quem não me considere patriota e nacionalista. Dos seus pontos de vista, devem ter razão.

Viva Portugal!

[o aveiro; 24/06/2004/]

pequena diferença na europa.



Nem um BEijo de feira em Aveiro. E, no distrito, o Bloco de Esquerda triplicou o número de votantes, afirmando-se como "terceira" força política na maioria dos concelhos, tão pequena quanto potente nas diferenças. No concelho de Aveiro, assim é: pura força das ideias e seu movimento.



Acompanhei parte da campanha das eleições para o parlamento europeu e participei num painel sobre o tema aqui mesmo em Aveiro. Afligiu-me que nunca sobrasse tempo aos políticos para explicar que politicas vão defender no parlamento europeu. As campanhas partidárias ficaram marcadas mais pelas quezílias e questões de baixa politica interna e menos pelas diferenças politicas. Bandeirinhas, saquinhos, beijinhos, ? e papagaios a imitar aves de rapina que voam alto demais e fingem estar a ver o que de nós escondem.
Fiquei convencido. Os grandes partidos PS e PSD não esclarecem as diferenças, porque têm politicas europeias mas não têm diferenças e sobra-lhes não mais que diferenças de estilo de mandador no baile da alternância. A julgar pelo que bradam aos céus, ao poder não interessa muito que os portugueses escolham entre diferentes politicas europeias, preferem que se pronunciem sobre o governo da nação e a astúcia no negocismo dos fundos estruturantes do Portugal feito à sua medida.

A noite dos resultados não podia ser mais consistente com a campanha opaca!
A coligação PSD/PP, que quer amarrar Portugal à sua força, descobre que entre os abstencionistas estão muitos dos que apoiam a coligação e lamenta que os indicadores da ?retoma?, publicados pelo INE, não tenham sido suficientes para convencer o eleitorado a retomá-los (Assim mesmo!?!) Garantem que vão para a Europa trabalhar por Portugal e esperam que os outros deputados eleitos façam o mesmo. Do outro lado, a aritmética conduz toda a gente ao mesmo: o governo que começou a legislativa com maioria agora está reduzido ao apoio de um terço dos votantes e deve tirar lições da maior derrota de sempre infligida a uma coligação de direita e extrema-direita.

Convenhamos que, para o que estava em jogo, é mais sério somar os votos do PS aos do PSD do que somar os votos do BE aos do PS. Sem dizer o quê, Durão disse o essencial: ?As nossas ideias(?) de Europa ganharam e vamos fazer o melhor por Portugal?. Não se estava a referir a outra coisa senão aos 19 deputados PS+PSD. Para dar valor ao voto, ao BE bastava ter falado na plataforma europeia para a sobrevivência mínima e do reforço das seguranças sociais mais débeis, da luta contra o liberalismo selvagem nos sectores essenciais (a água, energia, etc) , na paz?. Dizem-me que as pessoas não votaram em politicas para a Europa e o que percebem e esperam é aquilo que lhes disseram.

Até quando vamos fugir da Europa?

[o aveiro; 17/06/2004]

Votar pela EUROPAZ

Eu não tenho os mesmos interesses dos senhores Barroso, Paulo Portas e dona Manuela. Por isso, não vejo que os meus interesses possam ser representados pelo senhor de Deus Pinheiro. Não tenho os mesmos interesses dos senhores tipo Sousa Franco, até porque ele já disse que os seus interesses, não sendo os mesmos da coligação de direita, são os mesmos do PPD.

Eles querem que eu, peixe-miúdo ou arraia-miúda, acredite que meus são os seus interesses de tubarões. Não se cansam de repetir que defendem a mesma europa que eu e que a sua europa é boa para mim. Tentam mesmo dizer-me que os deputados que eu eleger, se forem de algum cardume de não tubarões, não podem fazer senão política de tubarões e deixar-se comer.

Ora isso não é verdade. Toda a gente sabe que não há um só Portugal e que o portugal de quem cai no desemprego hoje não é o de quem cria e justifica cada lugar de desemprego e o respectivo precário subsídio português. O portugal armado até aos dentes com a mentira e na vassalagem aos senhores da guerra não é o meu. Os negócios privados na água, na energia, na educação, saúde e solidariedade social são do país deles. O portugal xenófobo e do trabalho sem direitos é o portugal de "durão & portas, s.a". É um portugal selvagem e de vassalagem que eles exportam para fora, nos seus sorrisos bajuladores. Para dentro, são cobras cuspideiras de tranquilizantes fundos estruturais, canalizados para portugal que enriquece por a esmola ser grande e empobrece enquanto subsidia o "pato-bravo-novo-rico".

Quantas Europas diferentes cabem na Europa? Os nossos ?construtores? portugueses passam a vida a colocar-nos no pelotão da frente. Alguém acredita que os países que realizaram referendos e votaram contraditorios sobre diversos aspectos da adesão e do desenvolvimento da Europa comunitária estão atrás de nós? Há mais Portugal para além do "Portugal, S.A.". Há outra Europa e é por essa que vou votar: Europa com políticas de paz e contra a guerra; dos serviços públicos europeus com defesa do emprego e pela imigração com direitos, do co-financiamendo dos sistemas de protecção social dos mais débeis, do equilíbrio ecológico e de poupança da energia. Eles falam dos fundos estruturais como quem agita um cheque-brinde. E pedem-nos cheques em branco, enquanto se disfarçam de palhaços mal educados com piadas sobre a vidinha de cada um e se calam sobre a vénia que fazem.

A Europa não é só uma fortaleza ou empresa multinacional. Há a Europa dos cidadãos e eu voto pelas políticas da cidadania europeia livre e solidária com o mundo. O meu voto tem a direcção e o sentido do bem comum.


[o aveiro; 10/06/2004]

A Câmara Escura

No dia 25 de Março de 2003(!), a Cooperativa Chave entregou na Câmara um projecto de arquitectura para o lote 21, último na Urbanização Chave. Passou a ser o processo 110/2003, para os serviços da Câmara e para a Chave. Até ao fim de 2003, não há no dossier da Chave qualquer ofício ou papel da Câmara. Tem-se uma lista dos telefonemas à Câmara (ou para nada) feitos pelo arquitecto. No dia 26 de Janeiro de 2004, há um pedido de informação da Chave sobre o andamento do processo, com referencias aos Decretos-Lei 555/99 e 177/2001. A 30 de Janeiro de 2004, sem ter recebido qualquer resposta ou despacho, a Cooperativa vai enviar aos Serviços Municipalizados a especialização de água e esgotos, e, a 9 de Fevereiro, trata das aprovações do projecto de electricidade junto da EDP/CERTIEL, que, a 6 de Abril, entram na Câmara. Sem qualquer despacho sobre o processo da arquitectura, em 25 de Fevereiro, são entregues projectos das especialidades. No dia 20 de Março, o Presidente da Câmara participa no lançamento da primeira pedra deste empreendimento(?). Em 6 de Abril, a Cooperativa requer informação, o que volta a fazer no passado dia 21 de Maio. Também me disseram que a Comissão de Coordenação da Região Centro respondeu a um pedido de parecer sobre o processo e os prazos.
Passou mais de um ano e nem um papel a Câmara produziu sobre o processo 110/2003. Pelo menos, a Cooperativa não recebeu coisa alguma.

Há 25 anos, a Cooperativa aguentou anos e anos sem ter conseguido construir uma casa. Todos sabem que a existência da Cooperativa depende da vontade dos cooperadores e só nós, cooperadores, a podemos matar. Mas,... o processo de construção da Urbanização Chave exigiu que fosse levantada uma pequena empresa cooperativa. E sabemos, nós e o Presidente da Câmara, que a empresa cooperativa pode ser assassinada pela incúria impune dos serviços públicos. A falta de resposta e despacho asfixia a empresa cooperativa e, quem sabe?, algumas outras empresas. A favor de quem?

Não posso acreditar que tenhamos eleito a Câmara para isto. Não pedimos qualquer excepção; só pedimos razão para a nossa razão. E clemência! Nunca fui em futebóis, mas, se vier resposta, prometo ir ver um jogo de futebol. É obra!

[o aveiro, 27/05/2004]

Dormideira

Vestida de negro, uma avó embala o neto cantando baixinho: "o meu menino tem sono, ai, ai / tem sono o meu menino, ai, ai / ó, ó lhe vou cantando / até que ele perca o tino, ai, ai". Posso lembrar-me do tempo em que podia perder o tino, confiando a um colo protector a minha existência. Do outro lado da rua, ainda sobrevive uma leitaria ou um café que não destruiu as mesas e cadeiras antigas. Posso lembrar-me do tempo em que esperava a camioneta para voltar a uma aldeia protectora de onde não queria e queria sair. Do lado da paragem da camioneta, olhava as mesas redondas com cercaduras de metal e imaginava-me no degrau que separava as duas diferentes salas de estar da leitaria. Por alguma razão, conforta-me lembrar os lugares que dormem e sonham sem mudar de cara. Por alguma razão, conforta-me pensar nesse lugar do tempo em que podia perder o tino ao colo da minha mãe. Sei que fui criança a cabecear, no embalo da ladainha em latim da igreja da minha aldeia, embrulhado no xaile da minha mãe. Descanso.

Recebo, na minha caixa de correio, um panfleto de um 'comité por um Portugal livre - free Portugal' que reza assim: "Tem compaixão de Nossa Senhora. Com o teu voto não permitas que o Seu Filho seja posto fora da Europa" No verso, há um alerta. Diz-se que o Parlamento Europeu tomou a "inquietante decisão" de chumbar "uma proposta do PPE, na qual se pedia que se fizesse uma referencia explícita às raízes cristãs da Europa no texto da Constituição Europeia". E, a seguir à frase: "É triste ver como os da esquerda votaram contra", um quadro esclarece o sentido do voto de cada deputado português, sem esquecer de colar ao PSD e ao CDS a sigla da coligação para as europeias "Força Portugal". Eles (quem são eles?) não aceitam outras opiniões, outra fé ou falta dela, nem as raízes mais fundas. Estarão dispostos a uma cruzada? Fico para aqui a tremer de medo (tenho razões para isso) e a torcer-me de riso com o ridículo da grandeza de alma cristã dos euro-deputados do PSD e do CDS-PP. Oh, Cristo, vem cá abaixo ver isto! - diria a minha mãe.

Assim se estraga uma boa recordação da infância que me tinha embalado no fim de semana. Veio-me à memória o retrato do retardado fascista Américo de DEUS Rodrigues Thomaz exposto nas paredes interiores da igreja da minha infância.

Em liberdade, algumas almas penadas querem as nossas depenadas. E, por isso, não posso deixar-me embalar, adormecer e perder o tino. Confiar a minha alma a esta malta de capitalistas liberais maoístas e maus cristãos é condená-la às penas do inferno, seja o que isso for.

Como um Cristo (que sempre fui - é o que dizem!) e acordado, vou votar contra.


[o aveiro; 20/05/2004]

Trackback?

Tinha instalado o "trackback" ou lá o que é, na altura, das comemorações do 25 de Abril, para fazer ligações ao "Posto de Comando". E estava a preparar-me para desactivar a coisa. O companheiro d'O Prego no Sapato falou-me do Professorices e do artigo Como usar o "trackback".
O argumento a favor do "trackback" é bom. O professor é bom. Estou a experimentar. Caso funcione, aqui fica o agradecimento e a recomendação para uma visita a outro mundo. Esse blog e a página pessoal do autor constituem um bom ponto de partida para entrar no debate sobre o ensino superior em mudança.

Lei de Bases de barro.

N'O prego no sapato escreve-se sobre a "Lei de bases do sistema Educativo". Isto mesmo:


Passando pelos intervalos da chuva e praticamente sem discussão pública vai ser votada a lei de bases do ensino, apenas com os votos da maioria. Deve tratar-se da medida mais absurda e demagógica das muitas a que temos assistido na vigência deste governo. Choveram apelos à discussão, à busca de consenso, a alterações pontuais de aqui e dali, mas o governo não ouviu nada. Fossem elas vindas dos partidos da oposição ou de instituições de ensino, o governo preferiu manter-se no mais profundo autismo político e fazer aprovar uma coisa que terá a validade do executivo. Ou seja, nenhuma. Passaremos os próximos anos debaixo de uma avalanche diluviana de problemas até que se perceba que a lei de bases é para esquecer. E o pior disto tudo é que nesta enxurrada irá o que ela tem de bom e o que tem de mau, sendo previsível que para o ensino sobrará o caos que já é visível. Lamentável.



E eu estou de acordo.

a educação da vida

A violência das torturas nas prisões do Iraque e à sua volta e a instrução do caso Casa Pia ocupam os noticiários de toda a semana que passou. Mas, para mim, foi uma semana da educação.

Por um lado, uma bronca nos concursos de professores estalou e, com ela, o delírio politico e o cheiro a irresponsabilidade vieram para a boca de cena e tomaram conta de tudo. Já não bastavam os problemas de fundo da educação. O Ministério decidiu acrescentar desgraças várias à colocação dos professores que, para além do problema técnico, pode significar insegurança persistente. Já não é a primeira desgraça. Certas medidas do Ministério, que exigiriam prova de competência técnica e bom senso, têm cheirado a incompetência e deixam marcas negativas. Foi assim, no passado recente, com a imprudência da ingerência no sistema de exames e é agora com as mudanças desastradas nos sistema de concurso dos professores. Lá se foram alguns louros que, no campo da educação, o governo procurara ganhar com a campanha politica da luta contra o abandono escolar.

A semana da educação, da iniciativa do Presidente da República, pode ter sido prejudicada por estas provas dadas pelo Ministério. Mesmo assim, sempre se escreveu alguma coisa sobre o estado da educação e sobre as mudanças necessárias. Para alem das visitas a instituições escolares de vários níveis e um pouco por todo o pais, o Presidente da República promoveu algumas sessões em que especialistas europeus puderam falar do problema da educação nos países da Europa comunitária, apresentaram e discutiram possíveis caminhos das politicas de educação. Portugal tem atrasos relativamente aos restantes países da Europa comunitária que parecem mais graves na Europa dos 25.

A escola pública é, nestas alturas, centro de atenções. Todos esperam da escola pública que ela seja a garantia da educação e ensino para todos e, com tais condições e qualidade de serviço, que ninguém a queira abandonar e onde todos queiram aprender e ficar motivados para estudar ao longo de toda a vida. A escola pública é escola de massas e, apesar disso ou por isso mesmo, tem de ser uma escola exigente para pessoas exigentes. Desenvolver valores da educação e o interesse pela aprendizagem junto das famílias em todos os sectores da população é fundamental para a escola pública.

A escola pública não pode ser um reduto assistencial, disse um especialista espanhol. E tem de ser escola para todos e garantindo que todos adquiram as competências básicas necessárias ao mesmo nível, disse um especialista francês. Eduquemo-nos para acreditar nisso até que seja realizado, estudando cada dia da vida enquanto nos aproximamos do futuro. Sem medo.


[o aveiro; 13/05/2004]

Os ultra-sons(os) do apito.

A semana passada foi marcada pela crispação do primeiro ministro do nosso governo. Numa intervenção, decidiu desvalorizar os argumentos dos Verdes pondo em causa a sua existência como grupo parlamentar, na base de que nunca teriam concorrido sozinhos a eleições. Argumentar assim é a irracional reacção de quem não tem razão e sabe disso, mais ainda da parte de um dirigente de partido coligado. Noutra intervenção, perdeu as estribeiras quando questionado sobre um empréstimo do banco do estado a uma multinacional, em Portugal representada por um (?ex-)embaixador e(?ex-)membro do governo, para uma operação de privatização de capital da petrolífera nacional.
Porque é que estala o verniz (e com tanto estrondo) a este primeiro-ministro? Eu compreendo-o. Para este momento de glória, já sobrava, em estridência, o apito dourado que compromete altos responsáveis do partido do governo, autarcas e patrões do negócio do futebol. Alguns deles têm tantos cargos (no público e no privado) que devem baralhar tudo. Não há novidades especiais nos casos em disputa. O primeiro ministro diz que estas denúncias (sem provas) enfraquecem a democracia. Será?
É verdade que os cidadãos podem e devem ser livres de ter actividades em sectores de negócios e devem manter intactos todos os seus direitos e deveres políticos. Mas o centrão (ps e psd) da alternância tem vindo a demonstrar um apetite insaciável por ganhar no público a influência (e a competência?) que lhe falta para partilhar negócios privados. Suspeitamos que o que se está a passar é que a passagem pela política e, em particular, pelo governo ou pela administração de empresas públicas, se tornou um meio para atingir fins privados no privado. Em cada grande negócio de empresas de capitais públicos vimos sempre, do lado do privado interesse, alguém conhecido da politica. Em algumas destas personalidades não suspeitávamos especiais competências para a gestão e administração empresarial, mas parece que afinal não há gestores ou administradores nas sociedades privadas. Que dizer do antigo ministro da economia do ps que está à espera do fim de um prazo qualquer para assumir a administração de uma multinacional que ganhou uma candidatura numa privatização decidida no tempo em que era ministro e árbitro no negócio? Estes árbitros estão a passar-se. Quem defende os interesses do Estado?
O silêncio não defende a democracia.

[o aveiro; 6/5/2004]

Nasce! Grita comigo!

Nasce outra vez! Grita
comigo engole
todo o ar do meu mundo.

No rio de ar nascido
do teu choro de asfixia
morra eu ao teu primeiro segundo.

revolução que canta

O 25 de Abril é sempre o centro de uma certa gravidade. No intervalo de tempo centrado no 25 de Abril, multiplicam-se as iniciativas comemorativas a favor (ou contra) da presidência, da assembleia, do governo, dos partidos e da sociedade civil desta República de Abril. Contam-se histórias, faz-se a história, cria-se história.


Os comentadores mais inteligentes e letrados podem até dizer-nos, para nosso deleite intelectual, que os tipos que fizeram a revolução eram uns cretinos que liam o Marx de véspera, que os documentos da época eram umas coisas mal amanhadas que nem valiam o papel em que eram escritas, que isto e mais aquilo. E gostamos mesmo de ler aquelas coisas. Quem é que, agora a esta distância temporal e prenha de experiências vividas, ao visitar o passado e ao reler o que foi escrito há 30 anos não tem vontade de rir e não se espanta como é que aquelas coisas puderam ter tanta força? A força na circunstância!
As mais belas análises dos nossos sociólogos e historiadores, colunistas de hoje, que tão bem detalham pensamentos profundos, não valem mais que o momento da vingança na escrita e na leitura. É injusto. Profundamente injusto. O pior de tudo é que os “comentadores” até sabem como tudo se passou e como aquilo tudo foi uma sucessão de coisas menores, de actos medíocres motivados por pequenos egoísmos e cobardias de soldados e capitães que não queriam combater, seguidos de jogos de bastidores em que os políticos faziam mais manobras de coristas que de estrategas, levando o pais ao desastre.
Portugal foi incapaz de uma verdadeira revolução capaz de encher as medidas aos “valentes” e polidos pensadores de hoje. Era de esperar. Raio de país. Desgraça de povo, zé povinho sempre manipulado. Como sempre, como todos. Não é? A revolução não é coisa bonita, nem inteligente. E ainda por cima, sem mortos nem feridos, e pessoas do mais vulgar que há a mandar nos momentos mais decisivos! Palavra de “tia”!
De outro lado (ou do mesmo?), o nosso empresariado (o que é nacional existe?) a fazer as suas propostas de compromisso, nestas alturas. Que as partes cumpram com os seus compromissos, para que possamos todos exigir em conformidade. Eles cumprem? Há uma revolução ou contra-revolução sempre em curso, conduzida pela inteligência p-saltitante (entre público e privado) que está a esganar (pela fraude) o estado social, ao mesmo tempo que apresenta, no melhor papel, um caderno de (des)encargos ao governo. Afinal, eles estão no governo contra o estado. Conselhos de “tia”!



Eu vivi muitos anos antes e muitos anos depois de 1974. Já cá cantam os anos que passaram e uma revolução entrou a cantar para dentro da história da minha vida. Continuo a ouvi-la, mesmo enquanto leio as reprovações e as provas da sua não existência.


[o aveiro; 29/4/2004]

o andar do corpo

se assim fosse o abismo
o que eu vejo quando olho para a rua da varanda
do teu andar

a arte entre os dias

se ensinas uma teoria sem teoremas não tens que dominar a arte e a técnica da demonstração

podes ver que os teus aprendizes crescem contigo
se eles abrem no corpo da tua companhia um postigo por onde coam raios de luz e por onde disparam
ou certeiras formas baças contra os dias mais calmos
ou rigorosas cores brilhantes para os corações das inquietantes e esguias árvores que se movem por dentro dos dias mais húmidos

ou balas tão perfurantes como verdadeiras para uma cisterna de sede

os aprendizes nada te exigem: nem demonstração nem resposta

eles são aprendizes e sabem que as tuas respostas vão esvair-se como se esvai o sangue vermelho da nuvem desfeita em lágrimas ardentes por dentro da ausência de uma armação sem tela

eles são aprendizes e sabem que para ti as mais intuitivas de todas as respostas são sobre a cor do vento e a forma do ar


eles são aprendizes e sabem que o espírito deste lugar habita nesse que mostra e não demonstra

re(des)encontros de abril

re(des)encontros de abril

re(des)encontros de abril

caridade.

a separação
entre a terra e o céu
tem de ser registada em cartório notarial
para valer

Amar perdidamente!

Hoje lá recebi mais uma fotografia em que apareço a dormitar. De há uns tempos a esta parte, os meus amigos não resistem a tirar-me fotografias ao sono solto que solto nas circunstâncias mais variadas e também mais inconvenientes. É da idade.

Algo parecido querem que aconteça à revolução do 25 de Abril. Há quem diga que a revolução está velha e há mesmo quem diga que está a morrer. Outros até dizem que não foi revolução. Há quem diga que foi uma revolução do passado do seu tempo. Há quem diga que mais valia que tivesse sido de outra forma e que podia ter sido de outra forma.

A revolução portuguesa de 1974 apanhou-me na tropa, depois de ter sido militante estudantil anti-fascista e a ser ou em vias de me tornar militante activo de organizações de extrema esquerda. Sempre a militar! E que desastrado militar! Depois da revolução de 1974, continuei a viver a pura e livre euforia da vida. Com o 25 de Abril perdi muito… medo. E mortos. E guerras sujas. Só isso? Nem queiram saber o que mais ganhei!

Não quero resmungar contra o passado. Se eu soubesse então o que sei hoje, outro galo me cantaria? Não, eu não quero incorporar no passado a sabedoria do futuro. Quero continuar a saborear a liberdade tal como ela me foi apresentada, nua tal qual a amei. Quanto mais sentia a falta dela, mais desesperadamente a amava. Quando ela chegou, dei comigo sem saber como lidar com a nossa relação e o máximo que consegui foi dar-lhe a mão e convocar uma manifestação para cada primeiro dia do resto da minha vida. À liberdade fiz juras, promessas de amor eterno e desejei-lhe vida eterna no meu pais, até que os mais novos não imaginassem um tempo sem ela. Tantas vezes lhe gritei o nome que há uma voz gravada nas paredes das ruas a sussurrar-me o seu nome: liberdade.

Estou velho e dormito amiúde. Adormeço mais vezes para acordar feliz mais vezes. Vou morrer um dia e não haverá sinal da minha passagem. Já a revolução de 1974 vai estar por aí acordada no novo tempo que, sem ela, não seria o mesmo e seria triste.

E, à sua passagem, como efeméride, aguço a minha atenção para sentir os sinais dos homens e das mulheres livres, que isso é sentir o que senti quando carregava às cavalitas os filhos para sermos a multidão do 25 de Abril. O 25 de Abril de sempre!


[o aveiro, 22/4/2004]

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