outras vezes desenhamos uma escada no verso


às vezes faz as vezes da pintura o verso das coisas


(…)

cego de amor
por ter disposto
as pedras todas
dos meus olhos
no teu rosto.

(…)

em teu corpo
precedem sempre a obra
pequenas demolições
a que, na sombra,
só o coração assiste.

(…)



in AS IMAGENS DOMINANTES de luis miguel queirós

O desejo do eclipse

Na noite de sábado para domingo próximos, será visível em Portugal o segundo eclipse lunar total do ano. A Lua esconde-se atrás da Terra e deixa de ver o Sol durante três horas e trinta e dois minutos, mergulhada num cone de sombra. Já em Maio deste ano, a Lua se tinha escondido do Sol atrás da Terra. Quando isso acontece, dou comigo a olhar para o céu na esperança de não ver, na esperança desse momento mágico em que deixo de ver a Lua enquanto a Terra a esconde do Sol. Não espero outra coisa senão a escuridão onde antes via a Lua. Como se a Lua procurasse a minha sombra para se esconder de mim. Preparo-me para a cerimónia. Sem abrir o jogo, sem mostrar os detalhes do vestido dos meus olhos, me preparo para o momento da escuridão. Com a cabeça na lua.

Há momentos em que pedimos a Lua como refúgio. Outras, como ponto de observação. Já imaginaram o sossego de quem tenta ver e ouvir, a partir da Lua, o debate sobre o Orçamento de Estado no nosso parlamento? Nem víamos o parlamento por mais que nos esforçássemos, nem ouvíamos o que por obrigação (e um pouco de temor, porque não dizê-lo?) temos de ouvir. Muito menos víamos ou ouvíamos o governo. Já imaginaram? Tão longe disto tudo, até podíamos fingir que o orçamento não nos afectava. Claro que perdíamos aquelas fases delirantes das trocas de galhardetes entre os deputados da maioria e o governo a respeito das maravilhas que uns produzem e os outros nem imaginariam possíveis e, por isso, tão embasbacados agradecem aos seus maiores. Eu sei que há disfarces para o ridículo, como há formas de disfarçar as rugas ou as brancas. Não me passava pela cabeça que os deputados da maioria no poder, no seu esforço de agradar ao governo, tivessem tanto orgulho em dar voz à vénia apatetada. Assumem-se no seu ridículo como outros se assumem para outras coisas. Há muito tempo que não misturava a vontade de rir com a piedade por essa humanidade bajulante. Se calhar sempre andou por aí nestes debates mais formais em que o governo jura que há chuva no nabal e sol na eira e eu é que me tenho dispensado de ouvir em pormenor.

Cada governo foi (antes de o ser) governo sombra de outro. Chegam mesmo a fazer sombra uns aos outros. Crescem à sombra uns dos outros. Tentam discursos brilhantes para iluminar o pais. Só que onde há luz, há sombra. Alguns ficam inundados de luz. Ao povo sobra sombra.
A Lua vai viver um eclipse aos meus olhos. O governo diz que não vai sofrer qualquer eclipse nos próximos tempos. Que pena! Um eclipse total de governo teria o seu encanto.

[o aveiro; 6/11/2003]

AInda a entrevista a Jorge Sampaio.

Da entrevista a Jorge Sampaio , transcrevo de O Público


(...)
P. - Os empresários portugueses estão à altura desse desafio?
R. - Tenho feito o percurso, tão criticado, de mostrar as coisas boas. O meu combate à lamúria vai continuar. Sei que há pessoas que fazem milagres, que há gente nova extremamente bem preparada, multinacionais que decidiram fazer os seus centros de excelência em Portugal. Não podemos render-nos à ideia de que "a malta não sabe matemática", precisamos é de travar uma batalha de vida ou morte para que escolas básicas acompanhem a matemática. É por aí que podemos vencer.
(…)
P. - Alterações do subsídio de desemprego?
R. - Não do subsídio de desemprego, mas o subsídio de doença preocupa-me. Não conheço nada para além do que vi nos jornais, não quero assustar ninguém, mas há uma coisa que é preciso dar a este país: segurança. As pessoas têm medo do desemprego, a vida da maior parte dos portugueses é muito dura, começa às sete da manhã e às vezes acaba às dez, onze da noite. Os portugueses normais, os que são empregados por conta de outrem, os que fazem as fábricas, têm de ter algum carinho. Porque é que são sempre os culpados de tudo? Até porque em Portugal há pobreza, há exclusão. Não vamos dramatizar, mas temos de trazer as pessoas aos mínimos de desenvolvimento, quando o crescimento é negativo temos de lhes assegurar o mínimo...
(…)
Agora se me perguntar onde é que eu gastaria dinheiro, digo-lhe francamente onde gastaria, independentemente de achar, como comandante supremo, que as FA têm de ser reequipadas.
P. - E onde seria?
R. - Nas escolas do ensino básico e secundário. Aí sim, é que iria muito além do que se faz. E pediria voluntários: há tantas pessoas reformadas, com 50 e tal anos, que têm cursos, porque é que não vão dar uma ajuda aos estudantes à tarde nas escolas? Os sindicatos não gostam muito desta ideia, mas sou amigo deles e tenho-lhes dito isto com franqueza. Esta é a grande causa nacional: aumentar a qualificação dos portugueses. Se não aumentarmos, seremos sempre periféricos. Apesar da situação geográfica do país, serão o nosso talento e a nossa capacidade que nos colocará no centro da Europa.
(…)

Louvor e crítica da serenidade.

Nos tempos que correm, eu não preciso de ouvir falar quem fala de acordo com o que penso. Não concordo com muitas opiniões e posições de Jorge Sampaio. E, no entanto, tenho de confessar que, depois de o ter ouvido, fiquei com a sensação de que tinha ouvido o que precisava.
Jorge Sampaio não foge a responder às perguntas. Pronuncia-se calma e normalmente, sem ceder à pressão dos assuntos. Não deixa de dar a opinião pessoal, mesmo quando a decisão presidencial pode não ser concordante em sentido estrito com ela. Aproveita para separar os diversos níveis, as competências e as responsabilidades das diversas instâncias.
Temos sempre a tentação de ter o Presidente da República do lado das nossas leituras e interpretações da Constituição e, no uso das suas competências, de dar sequência aos processos em acordo com o que achamos melhor como legítimo e plausível. É verdade que ele não se decide pela inibição em promulgar algumas leis que, do nosso ponto de vista, desafiam a Constituição. Estamos a pensar em diminuições dramáticas nas responsabilidades do Estado, particularmente na educação e na saúde. Somos contra a transformação dos hospitais em empresas e contra o desinvestimento na educação pública e o afastamento relativamente à gratuitidade dos serviços (obviamente conjugada com a responsabilização dos utentes e o rigor na cobrança fiscal para suportar a prestação social). Achamos mesmo que as últimas leis deste governo para estes domínios vão contra a Constituição. Assim não entende Sampaio. Mas é verdade que Jorge Sampaio combate as tendências liberais representadas pelos entrevistadores, não deixando de chamar a atenção para as obrigações do Estado num serviço nacional de saúde e em serviços públicos de educação e ensino, desde o pré-escolar até ao superior.
Damos particular ênfase às declarações de Jorge Sampaio em favor dos trabalhadores pobres e desprotegidos, a favor dos desempregados e contra as politicas que permitem às empresas tomar iniciativas selvagens contra a estabilidade de emprego e os direitos dos trabalhadores.
Os tempos vão tão difíceis que uma intervenção serena, ainda que humana, contraditória e muito aquém do que seria desejável em criticas à actuação do governo, me ajuda a viver neste tempo e neste lugar. E a ganhar confiança de que vale a pena ser pessoa, ter opinião e princípios.
Precisava de alguma coisa assim em contraste com a histeria tola dos últimos tempos. Não tive o que queria, mas precisava do que tive.

[o aveiro, 30/10/2003]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...