o outro

Por muitas razões que não vêm ao caso, António Florentino poderia ser considerado o outro. Não se sabe bem porquê, mas várias vezes ele declinou essa identidade e profissão. Da lista de mil nomes que lhe apresentaram à data de nascimento, ele assinalou a última linha correspondente a Outro. Quando, no nono ano, lhe pediram que assinalasse a profissão que escolheria entre as trezentas páginas de profissões presentes no cat?logo do orientador profissional, ele escolheu Outro. No estado civil, ele não escolhe solteiro, nem casado, nem viúvo, nem divorciado, nem separado de facto. Ele escolhe Outro. No que respeita ao sexo, incapaz de optar pelo M de masculino ou pelo F de feminino, ele desenha cuidadosamente um novo quadradinho, onde escreve a sua cruzinha e por cima Outro. Quem não o conhece, deve pensar que António Florentino não se enquadra nesta sociedade e é completamente marginal. Mas não é verdade. Ele é sociável, não morde e parece-nos feliz à vista desarmada.
Um psicoterapeuta, que o queria ajudar, deu-lhe a escolher um de entre os diagnósticos: "problemas na infância", "problemas na adolescência", "problemas na puberdade", "problemas na hipófise", "problemas na mão direita de deus". E ele, depois de muito pensar, escolheu Outro.

António Florentino é um caso. Dual é o caso do Outro, mas para este muito mais difícil. Sempre que Outro tem de efectuar uma escolha, escolhe António Florentino.

[pretextos 56; 1993]

embora

embora vibre
o dourado junco está morto:
à malícia do vento ainda obedece

o dourado vegetal é uma cor de moribundo
que se despede numa falta de ar e ao ar se esquece.


onde os cabelos são juncos e o meu corpo apodrece
a água parada transparece

tonino guerra

26. La dmènga specialmént

La dmènga specialmént
quant ch' u n gn'è niséun ad chèsa
e a sémm a là vérs la fóin ad zógn,
a vagh ad fura se teràz
par stè a sintói che adlà di méur
la zità la sta zétta.

26. La domenica specialmente

La domenica specialmente
quando non c'è nessuno in casa
e siamo là verso la fine di giugno,
vado fuori sul terrazzo
per stare a sentire che al di là dei muri
la città sta zitta.


41. La farfàla

Cuntént própri cuntént
a sò stè una masa ad vólti tla vóita
mó piò di tótt quant ch'i m'a liberè
in Germania
ch'a m sò mèss a guardè una farfàla
sénza la vòia ad magnèla.

41. La farfalla

Contento proprio contento
sono stato molte volte nella vita
ma più di tutte quando mi hanno liberato
in Germania
che mi sono messo a guardare una farfalla
senza la voglia di mangiarla.


[tonino guerra; il poverone]

Os olhos de Madrid.

Entraram nos comboios da madrugada dos trabalhadores e estudantes dos arredores de Madrid e neles abandonaram as suas mochilas carregadas de bombas. Que viram eles nas caras sonolentas daqueles filhos da madrugada no instante em que lhes encomendavam a morte? Na sossegada manhã das rotinas das multidões de trabalhadores, os assassinos disfarçam-se como peças humanas das mesmas rotinas.
O que o terrorismo tem de mais terrível é ser prova de que o homem, sentado no banco em frente ao meu sorriso confiante, pode ser o assassino da multidão de que faço parte. É a sua humanidade (ou a falta dela) que nos aterroriza. Porque é que voltamos sempre atrás, como se perseguíssemos a nossa própria sombra? Com que olhos olhamos por cima dos ombros?

De nacionalidades, culturas e religiões diferentes, duzentos inocentes foram sacrificados em Madrid, muitos deles imigrantes ilegais na fortaleza europeia. Todos morremos um pouco na manhã da última quinta feira de Madrid. E todas as pessoas vulgares se sentiram madrilenos feridos pela incerteza dos dias do ódio e das guerras sujas.

A frieza nas mentiras do governo de Espanha sobre os factos e os autores dos atentados dão uma medida do que é hediondo na luta politica pelo poder ou pela sua manutenção. Ficamos também a saber como os órgãos de comunicação social podem ser controlados pelos governos no poder.

E resta-nos a esperança da mobilização dos povos de Espanha. Já se tinham rebelado contra a participação da guerra no Iraque. E agora, nas ruas, esse mar de mágoas, exigiram a verdade ao governo do Partido Popular sobre o que se tinha passado de tal modo que se sobrepôs à manipulação do governo, tendo alterado o sentido de voto e derrotado o partido da guerra. A luta pela verdade derrotou o partido do governo e da manipulação mentirosa.

Aos nossos ouvidos, soam familiarmente (mas estranhas) as vozes de alguns analistas a estranhar que Zapatero do PSOE venha confirmar que vai cumprir a sua promessa eleitoral de retirar as tropas espanholas do Iraque. Dizem que é um perigo, já que tal gesto pode ser interpretado como uma cedência ao terrorismo e pode ser um incentivo a novos actos de terror. Devotados ao estilo de vida do consumo das suas ideias, achariam perfeitamente natural que a democracia fosse indiferente ao voto do povo. A sua sabedoria leva-os a pensar que só é democracia aquela que confirma, no plano do poder, a sua opinião, que é, espanto dos espantos!, a mais servida à mesa dos mais poderosos.

Somos todos madrilenos nestes dias. Tanto na mágoa e na radical oposição ao terrorismo como na oposição ao jogo sujo e à mentira como armas politicas. Contra quem somos madrilenos?

[o aveiro; 18/03/2004]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...