Amar perdidamente!

Hoje lá recebi mais uma fotografia em que apareço a dormitar. De há uns tempos a esta parte, os meus amigos não resistem a tirar-me fotografias ao sono solto que solto nas circunstâncias mais variadas e também mais inconvenientes. É da idade.

Algo parecido querem que aconteça à revolução do 25 de Abril. Há quem diga que a revolução está velha e há mesmo quem diga que está a morrer. Outros até dizem que não foi revolução. Há quem diga que foi uma revolução do passado do seu tempo. Há quem diga que mais valia que tivesse sido de outra forma e que podia ter sido de outra forma.

A revolução portuguesa de 1974 apanhou-me na tropa, depois de ter sido militante estudantil anti-fascista e a ser ou em vias de me tornar militante activo de organizações de extrema esquerda. Sempre a militar! E que desastrado militar! Depois da revolução de 1974, continuei a viver a pura e livre euforia da vida. Com o 25 de Abril perdi muito… medo. E mortos. E guerras sujas. Só isso? Nem queiram saber o que mais ganhei!

Não quero resmungar contra o passado. Se eu soubesse então o que sei hoje, outro galo me cantaria? Não, eu não quero incorporar no passado a sabedoria do futuro. Quero continuar a saborear a liberdade tal como ela me foi apresentada, nua tal qual a amei. Quanto mais sentia a falta dela, mais desesperadamente a amava. Quando ela chegou, dei comigo sem saber como lidar com a nossa relação e o máximo que consegui foi dar-lhe a mão e convocar uma manifestação para cada primeiro dia do resto da minha vida. À liberdade fiz juras, promessas de amor eterno e desejei-lhe vida eterna no meu pais, até que os mais novos não imaginassem um tempo sem ela. Tantas vezes lhe gritei o nome que há uma voz gravada nas paredes das ruas a sussurrar-me o seu nome: liberdade.

Estou velho e dormito amiúde. Adormeço mais vezes para acordar feliz mais vezes. Vou morrer um dia e não haverá sinal da minha passagem. Já a revolução de 1974 vai estar por aí acordada no novo tempo que, sem ela, não seria o mesmo e seria triste.

E, à sua passagem, como efeméride, aguço a minha atenção para sentir os sinais dos homens e das mulheres livres, que isso é sentir o que senti quando carregava às cavalitas os filhos para sermos a multidão do 25 de Abril. O 25 de Abril de sempre!


[o aveiro, 22/4/2004]

bouro

abrir os olhos para ver

bouro

abrir os olhos para ver

vilarinho de perdizes

abrem as janelas para eu ver

vilarinho de perdizes

abrem as janelas para eu ver

Camus proposto

Rien n'est donné aux hommes et le peu qu'ils peuvent conquérir se paie de morts injustes. Mais la grandeur de l'homme n'est pas là. Elle est dans sa décision d'être plus fort que sa condition.

Camus, Actuelles, I, p.24

O José Carlos Soares disse, numa carta em papel pautado, que se pudesse "postava" isto num "blogue". Eu "posto" por ele.

a visita

Recebemos a visita de Manuel Arcêncio da Silva - um murtoseiro . Já tínhamos saudades dele, largo e sorridente. Demos uma volta pela escola e levámo-lo a visitar a biblioteca escolar. Rimo-nos. Deu-me dois caderninhos - um para anotar o estado do tempo, outro para o desenhar. Quem é que fez anos?

a biblioteca parada.

A tragédia está sempre em iluminar a personagem em vez da pessoa. A tragédia é uma coisa de personagens, quando as pessoas já viveram demais e a sua vida pode ser reconhecida num palco sem emoções que não sejam as fingidas emoções dos actores.

A fragilidade das formas

Olho para o que ouço. Não preciso de ver. Sinto que estão ali perto do meu mundo, no meu mundo, as sombras de uma loucura que dança. A loucura anda à solta e salta à corda por aqui e por ali. De vez em quando, ergue-se uma forma humana e fala uma razão cristalina, como se a água tivesse regressado ao seu curso de rio interrompido pela enxurrada de sangue da loucura que salta à corda feita dos meus nervos.

Os super-heróis americanos tiraram as fotografias todas à alegria que os tinha invadido enquanto invadiam o Iraque, sem resistência digna desse nome. A guerra procura as vitórias. Nestes últimos tempos a guerra tem tido as suas vitórias contra a humanidade que usa palavras como armas pela paz. Armados até aos dentes, os americanos e os seus aliados mostram os dentes brancos e brilhantes nos dias das vitórias. Depois, o tempo encarrega-se de sujar os dias que se seguem às vitórias dos super-heróis. Quem não tem razão é louco. Sabe-se hoje que os super-heróis estavam sem razão, loucos. A areia amarela do deserto sem emoções está colada aos dentes dos que morrem. A dança é macabra - os dois lados ensaiam um passo de dança, a um passo da morte.

O super Ariel cospe bombas como quem cospe as pevides de uma melancia podre que é a sua cabeça em vez da cabeça. Ás vezes, temos a sensação que, sempre que acontece ser acusado de corrupção ou outra minúcia de loucura, dispara para uma notícia maior que a sua própria notícia. Ao mesmo tempo, cerca-se quando cerca os outros, separa com um muro os vizinhos. Super Ariel está em Israel - dentro ou fora de si mesmo? Não sabemos de qual dos lados do muro se está preso. E é por isso que as fronteiras que se erguem como muros fazem dos povos prisioneiros, vizinhos da loucura.

Duas favelas. Duas misérias maiores que a miséria. Dois bandos de narcotraficantes do Rio de Janeiro lutam pelo controle do negocio. Matam-se uns aos outros. E a policia tenta controlar ou contornar a onda de violência. O que disto interessa é a resposta à proposta de isolar as favelas da violência com um muro alto. A resposta do eleito da cidade é um rotundo não. O melhor é quando diz que não quer criar um parque temático da droga.

Há sempre os que se matam uns aos outros. A loucura toma uma forma sem dentro e fora. Cada morte é tanto uma vitória como uma derrota. Quem se separa com um muro, é preso e prende, está dentro e está fora. Ninguém está livre. A luta entre os traficantes das favelas do Rio e da polícia contra os bandos reduz a pouco as guerras do mundo dos loucos e faz de Ariel mais do que um construtor de um muro, um construtor de parque temático.

Desenho um muro a toda a minha volta. E descanso.

[o aveiro; 15/04/2004]

As folhas amarelas que sobrevivem.

Sem sair de casa, a árvore da minha varanda perdeu as folhas. Não sei para onde voaram as folhas. Não há rastos da fuga e nem uma ficou para trás que pudesse denunciar o lugar das outras. Fico por aqui à espera que a árvore da minha varanda se reconstrua no seu modo cuidado e lento. Todos os anos é a mesma coisa. Chego a convencer-me que morreu, para depois me espantar com a precisão da reconstrução. As novas folhas parecem-me sempre melhores que as dos anos anteriores. Também é verdade que a imagem que guardo delas é sempre a última e isso é memória de folhas velhas amarelecidas.

Hoje, na Pública, há uma viagem pelos alfarrabistas - Os Sacerdotes do Livro- HISTÓRIAS DE LIVREIROS-ALFARRABISTAS de Paulo Moura. Gostei das intercalares histórias falsas e verdadeiras contadas pelos alfarrabistas aos alfarrabistas. Lá aparece, citado repetidamente, um tal Tarcísio Trindade de que tive um livro de poemas (se for o mesmo!). Havia um poema que sabia de cor, penso que sobre nados-mortos, aqueles que viram o que os esperava e não quiseram passar para o lado de cá. É uma memória vaga. Vou ter de procurar o livrinho. Lembro-me que era um livrinho.

Se o encontrar, há-de ter folhas amarelas. De que me lembro eu?

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...