verdade do amarelo





Parto para vilarinho das perdizes. Nunca vi amarelo mais perfeito que o amarelo das flores de tojo daqueles montes.

intervalo

quando me cansa a frase seguinte
do relatório que folheio
venho até aqui como pedinte
pedir esmola às pessoas em passeio

...

uma esmola, duas pepitas de memória
peço por uns instantes a mais de sossego
como se reclamasse o salário do cego
que canta uma lengalenga sem história

outras vezes canto tão alto um fado à janela
aquele que aconteceu ao pintor que assassinou
à facada o auto-retrato da sua última tela
esse rio de tinta para onde se atirou.

Passe-me o sal!

Entrámos na casa de pasto, quase ao mesmo tempo. Faz favor! O senhor primeiro! - disse eu, enquanto segurava a porta entreaberta. Muito Obrigado! - ouvi-o, numa voz sumida.
Quando habituei os olhos à sala e dei uma vista de olhos pelas mesas, comecei a arrepender-me de o ter deixado entrar primeiro. Nada que possa ser considerado indelicadeza; o facto é que eu tinha mesmo pressa e ele parecia-me um sujeito reformado, pacato e cheio de tempo ali a ocupar a mesa que tinha sobrado para um de nós. Durante uns momentos em que hesito - saio, não saio - fico a olhar para a mesa invejada. Quando ele levantou os olhos do papel rabiscado que passa por ementa, viu-me. E chamou-me com um gesto da mão.

Lá fui eu até à mesa, já aborrecido por ir perder o meu tempo. Mas, afinal, ele não fez mais do que convidar-me para almoçar. Em resposta às suas insistências, não mais que murmuradas, acabei por sentar-me à sua frente.

Que vai ser? - perguntou o empregado de mesa. Esperei que ele murmurasse: - Bacalhau, por favor! e água - para eu pedir - Tripas! e vinho -, claro, em voz alta. Ainda atirei: - Rápido! Com gás? - perguntou o empregado ao meu companheiro de mesa, que se riu levemente quando eu levantei a voz para dizer: - Agora têm gás na canalização ?

Enquanto esperava, pus-me a conversar. A conversar nem é bem o termo. Eu comecei a falar da vida, das ruas , do trânsito, do tempo, de futebol, ... enquanto ele me ouvia pacientemente e com atenção. Com tal ouvinte até me esqueci da pressa que tinha e continuei a falar ao mesmo tempo que comia. De vez em quando, ria-me das minhas próprias graças com a boca cheia, para que ele soubesse que era para rir. E ele sorria. Eu nem precisava de mais. Sentia-me bem.

A única vez que ele falou, na sua voz sumida, disse: Passe-me o sal! Eu bem o ouvi e logo lhe passei o sal, sem deixar de falar um só momento. Entre as coisas que disse, também pedi a conta e exclamei: à moda do porto? E, sem parar, passei para a politica. Aí foi um tal falar dos gajos de Lisboa e da pouca vergonha dos políticos, dos tachos, das reformas à nascença, dos filhos da ... Acabei a falar no Santana que era o indigitado do momento e andava a formar governo. Não podia faltar! Ainda a conta não tinha chegado e já eu estava a mandar bocas sobre aquela ideia de um ministério da economia no porto. E ri-me a bom rir. Quase me entalava com as minhas piadas. Para finalizar, ouvi-me a dizer: Tinha piada!

Você acha? - atreveu-se ele a perguntar. Então não acho! - respondi eu. O que é preciso é uma economia à moda do porto! Já estávamos à porta da tasca.

Um Mercedes encostou-se ao passeio. O condutor fardado saiu e veio abrir a porta mesmo ao meu lado: "Faz favor, senhor ministro!"
Ainda ouvi um murmúrio de boa tarde, antes de ficar sozinho na berma da rua.

[o aveiro; 15/07/2004]

a uma sombra

(...)
À volta da tua cabeça até o pó tapar os teus ouvidos,
A hora de provares essa aragem salgada
E escutares às esquinas ainda não chegou:
Dor que baste tiveste antes de morrer -
Parte! Parte! No túmulo estarás mais seguro.

[Yeats,
J. Agostinho Baptista]

os lados

o lado esquerdo de quem olha.

O abandono da poesia

Olha para mim! - disse ela, como se não falasse para mim. Até porque eu olhava para ela fixamente sem poder desviar o olhar.
No momento, eu não disse coisa alguma.
Então ela cuspiu uma frase assassina que me atingiu em cheio num ouvido. Não aguentei e disse: Porra! Ainda fico surdo.
Ela deu meia volta sobre si mesma e sussurrou-me um murro que, passados quinze anos, ainda me dói nas mudanças de tempo. Perdi-a nesse intante em que aceitei o murro como quem aceita um ponto final numa frase mal escrita e não acabada.
Foi ela mesma quem me disse que me dedicasse a outra coisa. Não usa moços de recados para o trabalho sujo.

Uns anos mais tarde, como se dobrássemos uma esquina, cruzámo-nos ao dobrar uma página do livro que eu tentava escrever contra o tédio.
Recomendo-te o descanso eterno! - foi o que ela me disse então. Lembro-me agora da nítida frase. E começo a arrepender-me de não ter seguido à risca o seu conselho. Também me lembro de lhe ter prometido que escreveria um pedido de resignação ou demissão, ao que ela respondeu secamente - Acho bem! Ao menos isso! - enquanto se afastava para a página anterior aonde eu teria vergonha de voltar, como muito bem ela sabia. Foi assim que eu soube que ela não queria mesmo voltar a ver-me.

Depois disso, ainda lhe telefonei, sabendo que telefonava para o meu passado. Em vão.

espírito aberto

exílio

eu vou cá para fora lá dentro de mim
deste canto exporto olheiras e maus olhados
e óleo de pavão que é dos mais importados
no país onde ninguém se importa antes do fim.

para deleite da canalha

como um palhaço fazes a pirueta
que te faltava para seres o país da treta
e saltimbancando um pouco mais para a direita
adormeces na cama de visgo onde a canalha se deleita

o facto preto das cerimónias

finalmente tenho razões
para chorar e rir como só eu sei
há uma procissão de figurões
e no andor vai santana nua feita rei

Em segundo lugar...

Em primeiro lugar, a união nacional em torno da selecção nacional (de futebol). Todos juntos, vibrámos com as vitórias suadas da selecção e ficámos só ligeiramente desiludidos com a derrota perante os gregos. Comemorámos o segundo lugar e a vitória de uma alegria que parece de todos contra a alegre tristeza de cada um.

Em segundo lugar, ficou tudo o que não foi futebol. Para segundo lugar, foram os problemas e até o Durão Barroso que, de gravata verde e vermelha, para dar sorte!, apareceu nas tribunas vip sem as monumentais vaias que o brindaram antes.

E é assim que, calmamente, Durão Barroso pode sair de fininho a meio do mandato de um luso para um euro cargo, transformando o tal seu governo de salvação nacional de coligação num governo de gestão da coligação até que alguém aceite o coelho que o psd sempre teve na cartola, embora em segundo lugar. Em nome de uma Europa carente do Barroso, este deixa a salvação da nação a meio. Mas tudo se passa em nome da pátria, da honra da pátria ou dos interesses da pátria. Constatemos que há uma pátria particular deles que vai enriquecendo, embora a pátria em geral vá empobrecendo. Começo a acreditar que estes políticos são movidos pelos interesses particulares da pátria.

No meio desta confusão toda, tentam mesmo passar o presidente desta república para o segundo lugar. Tudo no maior respeito, claro. Enquanto esperam que ele cumpra o seu dever de fazer o que eles querem que seja feito pela estabilidade do país, da Europa toda e até das alianças que cabem nos dedos deles.

O segundo Santana que viu, nos astros, esta sua subida a primeiro, faz pose de estado e votos firmes de emenda daquilo que todos sabem. Diz ele que de outros grandes estadistas se disse no fim que eles tinham sido isto ou aquilo. Com Santana, as pessoas poderão condenar o que ele foi, garantindo ele que deixará de ser quem é, em nome dos altos interesses da nação, da pátria, da salvação... até da sua alma. Quem pode resistir a salvá-lo da má vida e a ajudá-lo a encontrar o bom caminho? Se o deixarem salvar a pátria, a pátria salva-o!

Isto é mesmo tudo a sério?

Em segundo lugar? Não há melhor lugar para chegar a primeiro... ministro. Neste circo, aceita-se um cargo como quem engole o trampolim para o próximo.


Nota final:
Últimos na lista da Europa desenvolvida, primeiros no futebol, Portugal e Grécia apresentam-se a concurso dos melhores organizadores de eventos desportivos a que tudo sacrificam. Será este o caminho do desenvolvimento que nos traçaram?


[o aveiro; 8/7/2004]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...