os outros




de ti tu sabes tudo pensas tu de ti tudo ou nada de ti é o que parece de ti:
é como tudo na vida de ti tu de ti sobram nenhuns outros, estes.

no oriente

No Oriente, a matemática está na sua pátria.
Na Europa, degenerou em simples técnica.

Novalis

A culpa dos simples

Olho as tuas mãos enquanto lês. Vejo nítidos os tendões dos dedos que batem furiosos as teclas do piano sensível da mesa. E até há pouco a mesa parecia a lisa praia em que as tuas mãos descansavam. Sei que tentas reconhecer a voz de quem escreve o que agora lês. Vejo-te incrédulo, enquanto tentas controlar uma revolta que os dedos nervosos não escondem.

O que te perturba é sentires-te parte do grupo dos simples que, sabendo da imperfeição das pessoas, não deixam de se revoltar contra os erros, as injustiças, a corrupção, ... O que te perturba é leres o que os teus amigos não se cansam de escrever, acusando-te do crime de denunciar uma crise geral de valores do ponto de vista da moral, da ética e da justiça. Chegam mesmo a ameaçar-te com a possibilidade de se virarem contra ti os teus escrúpulos morais e éticos, já que estão convencidos que não és senão um náufrago mais entre outros em cruzeiro pelo mar da lama num barco de luxo. Tu estás perplexo porque eles pensam isso de ti. Será que, por não aceitares as manobras dos crimes financeiros e a contabilidade imaginativa, virás a ser um criminoso de colarinho branco? Será que, por usares colarinhos brancos, vais acabar por lucrar com algum negócio menos limpo ou com acesso ilegítimo a cargos ou favores?

E começas a rever o filme do passado da tua vida para descortinar alguma coisa menos correcta ou mesmo reprovável que tenhas feito sem pensar e que eles dirão que é da mesma natureza e gravidade de actos criminosos.

Estás a sentir que alguns dos teus amigos estão quase a convencer-te a não criticar a acção política do ponto de vista da moral e dos bons costumes, dizendo-te que sabem que tu sabes não ser perfeito.

Os dedos tensos batem na mesa. Quando a batida dos teus dedos se torna solta, sei que venceste a batalha interior contra quem usa a tua imperfeição simples e a ignorância do futuro como argumento para desculpar os crimes deste passado presente..

Há adeptos que gritam. Mais pelas derrotas dos clubes que não podem nem sabem perder do que pelas vitórias dos que nem sonham ganhar. Descansarão quando degolarem algum bode expiatório. E tu?

Escrevo por ti e por mim. Sobre futebol? Ou sobre política?


[o aveiro; 21/10/2005]

Perder e... achar.

1.
"Trata-se de uma mulher que perdeu uma agulha na cozinha e a procura na varanda da sua casa. Acorre então o jovem que pretende ajudá-la, e pergunta: Que procura? - Uma agulha. Caíu-me na cozinha. Logo o inexperiente jovem se espanta muito e quer saber porque a procura ela na varanda. - Porque na cozinha está escuro - responde a mulher."

Citada por Herberto Helder, esta parábola vem ter comigo uma e outra vez. Há muitos anos, encaminhou-me a desaprender o que se tinha tornado incompreensível e insuportável para que aprendesse outras coisas e retomasse a respiração vital que tinha sido interrompida por uma dúvida do tamanho da vida.

Nestas últimas semanas, a parábola voltou a instalar os seus arraiais na minha cabeça e a guiar os meus passos e decisões. A necessidade de procurar alguma verdade perdida pareceu-me a busca de agulha perdida em palheiro escondido por um manto artificial de escuridão política. E dei por mim a procurar uma nascente de luz numa varanda virada para a vida comum. Em vez da verdade? Não. Como verdade humana que importa.

2.
Num livro de divulgação matemática, Paulos refere-se ao espanto de um jovem perante um Rabi que tem sempre uma parábola adequada para cada assunto, para cada pergunta ou inquietação.

E é verdade que Paulos põe na boca do Rabi uma parábola muito interessante para reagir ao espanto do jovem. Trata-se da surpresa de um guerreiro recrutador que, ao percorrer as ruas de uma aldeia, dá com uma sucessão de alvos desenhados nas portas dos celeiros. O espantoso é que em cada alvo há uma seta espetada exactamente no seu centro. Quando procura o extraordinário atirador (certamente para o recrutar), descobre que se trata de um jovem muito especial que atira setas às portas e depois desenha em volta uma roda centrada na seta espetada.
Depois de mais essa parábola, o Rabi da história de Paulos conclui para o seu jovem admirador que não é verdade que tenha uma parábola para cada assunto, mas que distingue os assuntos para os quais conhece uma parábola. E só fala desses.

3.
Sem mais lições do que essas, mais uma semana passou. E tudo que era bom querer, para sabermos e saborearmos como verdade de todos e para todos, soube a pouco.


[o aveiro; 13/10/2005]


Nota:
Um amigo enviou-me uma mensagem a lembrar-me que eu lhe tinha apresentado o livro em que a segunda parábola aparece e que eu me tinha enganado. O autor que eu identifiquei como Halmos, na minha citação de cabeça, é de facto Paulos. Já encontrei o meu livro: Era uma vez um número de John Allen Paulos, editado em português e em Portugal pela Bizâncio, em 2002. Obrigado.

Tenho de procurar o texto completo do Herberto Helder para confirmar. Essa eu sei-a de cor mesmo. Saberei? A velhice não perdoa. Fiquei para aqui a tentar lembrar-me de um soneto do Antero e já não veio todo. Mudei e levei de vencida um longo poema de Gonçalves Crespo (?). Não está tão mal como ameaçava.

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...