o meu pai nem voltou

Numa pequena falha de chão do Brasil
parte da minha alma caíu do norte alto até morrer.

E se sobra alma ainda, ela vagueia roendo palavras
e cuspindo as cascas das últimas sílabas de despedida.

Porque alguém incendiou um pavio em petróleo barato
e ferveu o vidro da chaminé
A alma arde como ardem as asas da borboleta
traída pela luz

Pelo instantâneo clarão, pelo soluço da noite e pelo cano do susto,
o que sobrar da alma cai na vertical
até ao ígneo centro da terra

onde o inferno estava no tempo em que o diabo
me segredava ao ouvido.

O estado da arte

Encontrar um português que não tenha um familiar emigrado é praticamente impossível. Na minha aldeia, falava-se de pessoas no Brasil, nos Estados Unidos, na Venezuela, na França e na África, claro. Famílias inteiras ou pessoas isoladas, a salto, de comboio, de barco a vapor, de avião, com carta de chamada, com contratos e sem contratos, com documentos e sem documentos,... eles lá iam. Para nós, iam iguais no segredo das partidas, das dolorosas e medrosas aventuras. Muitos deles não voltavam ou voltavam tanto tempo depois que nem os conhecíamos e ouvíamos falar de cidades estrangeiras onde havia mais portugueses que nas nossas cidades. Encontrar um português que não tenha tido um familiar e amigo indocumentado em terra estrangeira é encontrar uma alma estranha, um extra-terrestre, um desmemoriado.

Por isso é que me é tão estranho ouvir como falam alguns responsáveis a respeito dos imigrantes e das políticas de imigração. Soam mal aos meus ouvidos todos os maus tratos e toda a sobranceria com que se fala das autorizações de residência, do trabalho sem garantias, etc, ou se fazem observações judiciosas sobre pedidos de asilo e sobre o estatuto de refugiado que, sem outra esperança, os imigrantes (económicos) chegam a pedir.

Vimos como muitos trabalhadores estrangeiros, ao serviço das grandes construtoras, saltaram de um para outro estaleiro escapando de uma inspecção incapaz e cúmplice. Sabemos que muitas obras públicas foram feitas com trabalhadores estrangeiros, indocumentados, em situação irregular. Muitos patrões e também responsáveis políticos acharam esta situação muito conveniente: mão de obra barata e não reivindicativa, trabalho sem garantias, trabalhadores descartáveis de que se livrariam com ameaça de deportação. Ilegais! Os trabalhadores ou os mandantes?

Damos pouca importância aos tratamentos degradantes a que sujeitamos os nossos imigrantes. E todos os dias, há pequenas notícias de incidentes de legalidade, de intervenção despropositada de autoridades, agentes e serviços, em choque com trabalhadores imigrantes.

No Canadá, há portugueses que chegaram a pedir o estatuto de refugiados. Leram bem: refugiados! O governo conservador do Canadá não cedeu aos pedidos e deportou os portugueses. Um jovem veio dizer que o seu governo tinha outros problemas, outras prioridades. Os nossos jovens velhos conservadores fariam o mesmo se pudessem. Enquanto vão dizendo que isso não se faz... a portugueses. Não?

[o aveiro; 30/03/2006]

em 1947

em 1947, em duas abriu-se minha mãe para que eu passasse por ela até fora dela e continuasse o meu caminho. algumas vezes depois disso, lembrei-me de ter feito esse caminho. e também me lembro de arrepender-me de o ter feito, de não ter voltado para trás. faço as vezes, às vezes. em que ano nasceste? ainda pequeno, como sempre fui, respondia: 1948. porque nasci estava 1947 a acabar e acabar com ele ainda vá, agora começar com ele pelas horas da morte!...
há encontros ou recontros que nos separam do passado e nos fazem desejar não ter nascido ou insinuam o desejo de desnascer ou o desejo de nascer para outro desejo... de nascer ou morrer. para outra forma de ser. para outra maneira de ser. para ser noutra forma, noutro molde. para ser de outra maneira. para ser de outra. para ser outro. para ser ou. para ser. para. p.
em 1947 abriu-se minha mãe em duas. deu-me à luz e a luz não me aceitou. quando abri os olhos para a luz, foi a luz quem me cegou. é por isso que faço sempre os mesmos caminhos, rente aos muros, guiado pelo cheiro das sombras.
ouço à minha frente, um tac-tac, o tacto da sombra da bengala de sombras.

com a idade

É verdade que custa bastante levantar-me depois de me ter baixado para procurar o meu lado direito. Ando a esforçar-me para simplificar a coisa e é por isso que desaparecem da nossa vista algumas partes. O que me aparece num computador, noutro não aparece.
Eu? Nem triste, nem alegre. Resignado.

com a idade

Ao contrário do que dizem que acontece, é o meu lado direito que desaparece (ou cai lá para o fundo) enquanto ando para velho.