talvez dormir

Quando chega o Natal, dou por mim a seguir com redobrada atenção os anúncios. Recorto anúncios de bonecas quase vivas, as roupas, as casas para elas viverem, as máquinas, os heróis repetidos das bandas desenhadas e da televisão, os telemóveis, os jogos, as consolas, etc. Não, não os recorto dos jornais e revistas. Recordo-os da televisão que vejo e ouço. A televisão mostra o mesmo e mais qualquer coisa que o rádio, o mesmo e mais qualquer coisa que os jornais, etc. A televisão mostra mais.

E a televisão esconde mais que todos os outros meios juntos. Cada um dos três canais populares mostra-se a si mesmo, mostra o que afirma, mostra as suas meninas e os seus meninos feitos modelos, locutores, apresentadores e actores nos seus papéis e depois como actores que representam as suas próprias vidinhas, para voltarem como as personagens dos anúncios publicitários que tudo pagam e tudo compram e nos compram. Os três canais populares fazem de tudo para nos convencer que não há vida fora da vida que nos mostram. São a escola que finge vidas de sonho quando cria o vazio, quando levanta o biombo a separar a realidade... do sonho que comanda a vida.

Talvez seja por isso que a indústria se desdobra em canais e mais canais na obsessão doentia de chegarem a todos e a cada um, sem excepção. Os últimos anúncios para o estertor do mundo que conhecemos, dizem-nos que qualquer de nós deve ter acesso a 65 canais por toda a casa para que cada um faça a sua escolha de solidão em família. Acrescente-se isto aos telemóveis dos fala-sós pela rua e em casa, os computadores que nos ligam ao mundo virtual e nos separam do real, as consolas que fazem da nossa vida um jogo de guerra,... Tudo e em todos os lugares onde cada um possa grunhir a sua individualidade, até que o egoísmo supremo do desconhecimento dos outros transforme em nada as pessoas tipo pai, mãe, irmão, avó,...

Os mandantes destas indústrias e deste estado de coisas enchem a boca de declarações a favor da família e dos altos valores, enquanto vendem trincheiras que fazem das casas das famílias campos de batalha onde ninguém fale para se entender. Sem sabermos como, velhos e jovens aceitam o que antes era individualmente inaceitável - a tortura do sono e o isolamento em quartos minguantes.

De dia, as escolas abrem as salas de aula para jovens. Os jovens comparecem, uns para dormir, alguns para não despertar, outros para desesperar. Se isto é um pesadelo, é melhor acordar. Ou dormir?

[o aveiro; 7/12/2006]

a cor



se não há mais que uma cor, a cor que resta
está embalsamada e morta como o portador
que nos espreita

nós sabemos que o morto está lá tão confundido
com o castanho geral: a umbra coada é sombra,
a cor toda, a cor de tudo o que já não apodrece



onde não sobra a vida, a cor é o que permanece.

corpo humano



os alunos de artes do 11º ano da escola josé estêvão refazem a beleza interior do corpo humano.

os dias seguintes

De todas as coisas simples que fiz na vida, uma há que, quotidiana, me enchia de prazer e até alguma vaidade estética, confesso! Chegava a preparar-me para essa actividade com alguma demora mental e espreitava o espectáculo antecipadamente, criando momentos para deixar respirar a minha obra ou demorando este ou aquele aspecto para contemplação do meu público.

Estou a falar de antigas aulas de matemática falada, mas principalmente da escrita em quadros negros de ardósia. Desde a primária que cuidava da escrita, mas só muito tarde dei por mim a acrescentar a emoção da matemática manuscrita à escrita. Eu sei que o que escrevia era pré-determinado pela transmissão desta ou daquela ideia ou conceito, pela demonstração, pela técnica, ... Só que o que me dava prazer era a letra, os símbolos, as figuras limpas - brancas sobre o negro - que constituíam o quadro (igual e diferente dos outros dias) cheio de palavras, de expressões, ... cheio de gestos que me pareciam irrepetíveis. Houve mesmo alturas em que dava por mim a atribuir-me o papel de mestre escola que, pelo exemplo, pede imitação e pede autorização para ser exemplo de organização e pede admiração para aquela estrutura de andaimes seguros por nexos lógicos, humor emprestado e poesia. Se fosse hoje, teria fotografado muitos quadros antes de os apagar para todo o sempre. Do mesmo modo, tarde demais, tantas vezes desejei fotografar a memória da poesia que guardava em gavetas (de memória mesmo): a que tinha lido e a que improvisava cantando entre dentes ou discursando ao vazio.

A preocupação em sair desse palco para dar cada vez mais a ribalta aos aprendizes, felizmente ou infelizmente distantes da aprendizagem por pura imitação e memorização, fez com que fosse abandonando os gestos treinados para o quadro negro. Sem mágoa, fui substituindo o modelo que era por outro e por outro e por outro, na tentativa, talvez vã, de ser o caminho. Com nostalgia, vejo-me a voltar atrás num desejo absurdo de voltar ao tempo em que me pendurava nas paredes para colar o cartaz das minhas mãos treinando o quadro que viria a ser.

Ontem sentei-me a ouvir o debate sobre a universidade de hoje em diante. Acabei por adormecer e voltar a outra universidade onde crescia por dentro para fora de mim. Quando acordei, desenhado no quadro negro, olhava a nostalgia desenhada ao meu lado.

[o aveiro; 30/11/2006]

a exacta medida

Aquelas caras não me são estranhas. Aquelas caras não me são estranhas! A mulher repetia a frase como se estivesse a falar com os seus botões. As vozes não me soam estranhas. As vozes não me soam estranhas! A mulher repetia a frase como se precisasse de falar para si mesma para reconhecer o som da sua voz e, quem sabe?, identificar as vozes gordurosas, suadas pelos poros da televisão ligada.
O homem esticava a sua atenção para tentar perceber aquelas contas que se faziam com um grande número de pequenas quantidades, soma milionária de parcelas pequeníssimas. Vinham-lhe à memória as histórias dos golpes de bancários vigaristas que tiravam um cêntimo a cada conta de cada um de milhares de clientes do banco. Sempre se tinha deixado fascinar por esses golpes e chegava a imaginar caras patuscas para os seus autores. Acordou para olhar com atenção para aquelas caras. Os seus golpistas eram uns vigaristas simpáticos parecidos com o Robin dos Bosques que roubavam os banqueiros ou os clientes dos banqueiros para si mesmos ou para um grupo de amigos ou mesmo para uma seita de pobres tipos que de pouco precisavam. Tinha começado a perceber que o golpe tinha sido feito legalmente pelos próprios bancos sob as ordens daqueles senhores.
Não! Ouviu-se a dizer em voz alta, falando para a mulher. Estas caras que estás a ver não podes lembrar-te delas das nossas conversas sobre os heróis que associámos ao golpe dos centavos. Continuou ele. Também duvido que te lembres das caras e das vozes por serem banqueiros. Dos bancos nunca conhecemos mais do que o pessoal dos balcões.
Está bem. Tens razão. Eu nunca ouvi falar um banqueiro dos nossos dias. Concordou ela.
O homem e a mulher calaram-se para continuar a ouvir os senhores. Ouviram os senhores defender que é legítimo o que é legal, que, enquanto o vigarizado não reclamar, o vigarista não pode ter culpa nem remorso, até porque isso seria perda de iniciativa e eficácia. Ao determinar um fio de irracionalidade sem vergonha nos discursos dos senhores, a mulher virou-se para o homem para lhe dizer: Não estranho as caras e as vozes destes senhores e nem estranho o que dizem. Eles e as suas ideias devem ter passado por algum governo português ou pela administração de alguma empresa pública portuguesa.
Só pode! Concordou o homem.
E calaram-se.

[o aveiro; 23/11/2006]

depois vieram tambêm cá