rabisco

o que nos falta saber

Entre um ano e outro, apetece falar do que foi feito de nós e logo de quem gostávamos de vir a ser em vez de nós. Alguns de nós, os que fazemos propósitos firmes de emenda, ficamos contentes quando nos convencemos que uma versão melhorada do que fomos é possível. Outros, os que fazemos juras de vingança do passado, não nos satisfazemos com menos que uma mutação que nos faça vedeta da rádio e da tv. E, a alguns de nós, aos que desistimos todos os dias, satisfaz-nos escrever pequenas prosas em que não assumimos a culpa a seguir-nos para todo o lado, solteira e desengonçada desculpa para um retrato infeliz, triste e sem cura.

Gostaria de pensar em mim como versão melhorada pela idade.

Ser isto ou aquilo, assumir uma ou outra daquelas posturas na viagem de um ano para o outro, influencia as nossas decisões e isso é tanto mais importante quanto elas podem influenciar a vida de outros. Se eu acreditar que a minha humanidade pode ser melhorada, avalio os outros de forma consistente com essa ideia e a minha avaliação é feita com o único fito de consagrar o que está bem e indicar o que pode ser melhorado e isso é também em parte fazer luz sobre o que deve ser deixado para trás. Quem ensina, modifica e participa das mudanças individuais e, logo, de lentíssimas mudanças sociais. Quem aprende, muda.

A ninguém se pede que ame abstractamente a criação. Nós crescemos quando nos incorporamos no que os outros em potência são e quando lhes fornecemos a energia que os faça livres e diferentes e capazes de criar outros. Quando amamos, os pequenos vincos e as fundas rugas têm nomes de pessoas. Uma grande parte do esforço vem do exemplo, da forma de estar, do riso de vivos com a força da fragilidade, da recusa do absoluto, da fraqueza que é a crença vital de que podemos ser melhores amanhã e que podemos educar para o bem.

Acreditem ou não, por estes dias somos forçados a olhar para o espelho para nos vermos de frente. Na aparência, descrevemos os estudantes que apreciamos mesmo quando os julgamos. Na realidade, rabiscamos notas que, todas juntas, formam afinal um retrato - o nosso. O que nos falta saber é quem se esconde do outro lado do espelho à nossa frente.

[o aveiro; 21/12/2006]

o natal dos guarda-costas

" Já poisou toda a poeira que tinha de poisar sobre a capa do livro. Já ninguém se lembra e todos se lembram daquele natal em que os patrões da indústria do bem rebolado acabaram todos presos. Depois de alguma agitação, o silêncio caiu como chuva miudinha sobre todo o bem e todo o mal. Para o bem e para o mal, uma nuvem de sossego ficou a pairar sobre o país. Como se fosse uma nuvem de algodão doce, a nuvem de sossego foi lambida pelos meninos que até aí tinham sido comprados e vendidos pelos patrões da indústria e mercadores do bem bolado. Sossegados, os meninos começaram a jogar à bola e, tão bem jogaram alguns deles, que houve jornalistas a ir ver, para dar notícia sobre as suas habilidades, e não, como antigamente, sobre as cotações no mercado dos meninos ou sobre os escândalos bovinos dos bacanalneários adjacentes aos relvados, pastos e repastos."

Nas histórias do bem, há sempre uns homens velhos e umas mulheres novas. Estas nunca dormem para ganhar a merecida fama de dormir com os velhos. Um dia, tendo sido espancada e despedida da profissão de dormir com o velho capitão da indústria, uma mulher jovem viu-se livre para a memória sobre a sua passagem pela claque da indústria do bem bolado. Gostava de falar alto sobre a sua participação para combater a solidão tricotada por guarda-costas. Uma mão atenta da indústria do bem impresso deu à estampa em livro uma encomenda de terror mesquinho, de amor mesquinho, de humor negro mesquinho. O lançamento do livro atingiu em cheio a letargia que acordou e, ainda estremunhada, mandou começar uma instrução qualquer sobre a melhor maneira de escrever velhos recados amorosos não comprometedores.

Pequenas estátuas da jovem mulher que apita aos velhos foram vendidas como balas ou gomas para grandes batalhas entre claques do deixa estar, do deixa andar e do desleixa. A mulher jovem apita arrependimento sobre o bem que encomendou contra este ou aquele e há quem disfarce a sua capacidade de fazer o bem com declarações não declarativas enroladas em sorrisos afiados como facas.

Eu só estou preocupado com a escritora. Antes de ser despedida da vida difícil para se dedicar à escrita fácil, a jovem vivia rodeada pelos que guardavam as costas dos velhos. Agora anda pelas sessões de autógrafos rodeada de guarda-costas dos centros comerciais ou da indústria do bem impresso de sucesso. Quando é que me deixam ver as costas da rapariga? Quando é que me deixam vê-los a todos pelas costas?

Defendo que lhes seja indicado o caminho da salvação e que sejam ajudados a procurar e a ir com as suas armas e bagagens para algum paraíso... Fiscal, como lhes convém. Pode ser longe?


[o aveiro; 14/12/2006]

a bátega caindo

(...)

Acordo
com um som de lágrimas
nos braços. É a aventura

vestida da cinza fria
do cansaço. Bebo
o atrasado veneno da espera, um lagarto

passeando-se na boca.


(...)

José Carlos Soares; Bátega. Porto 2006

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...