ainda os muros

Ainda há muros altos protegidos dos salt(e)adores por uma mão de cacos dos vidros dos óculos partidos a quem abriu as asas e voou para entrar e ver.
Os que entraram, não conseguiram ver porque lhes partiram os óculos. Os outros foram abatidos pela barragem da aritlharia anti-aérea que sopra metralha às ordens da desconfiança dos sensores apontados a todo o comprimento e para o alto das muralhas.
Os sábados juntaram-se todos para falar disso e da necessidade de uma conferência do desarmamento de ambos os lados do muro, bem como da proibição de levantar voo e violar o espaço aéreo do muro que se transformou num país registado.
Não vimos qualquer interesse na cartografia dos países. E nos mapas só as fronteiras contam: 1, 2, 3, 4, 5, ...

missa cantada

Hoje levantei-me cedo como em todos os outros dias.

Gosto de ver aparecer a aurora quando ela quer aparecer e não só quando a minha imaginação a convoca por precisar dela. A claridade rósea que antecede e anuncia o nascer do sol dá-me a luz que me levanta e anuncia-me a luz que me guia os passos até ao dia claro.

E lembra-me alvoradas estremunhadas, o pé adolescente a explorar a nesga fria aberta entre a enxerga e a coberta pelo clarim da minha mãe, a hesitação da cara a aproximar-se do espelho do tanque de água para onde as enérgicas camponesas da minha vida lançavam em golfadas a água puxada do mais íntimo do poço.

Em cada dia, repito o arrepio estremunhado de quem acorda como quem nasce para sobreviver. Em cada dia da semana, domingo incluído, ouço os mesmos ruídos para me refazer até ao dia em que vivo. Como se eu fosse uma memória que se refaz infatigavelmente, um novo dia que é novo porque é feito de todos os dias que o antecederam. Se não ouvia a requinta da boca da minha mãe ou de alguém por ela, já ouvia o sino quebrado sobrepondo-se à neblina espessada na tentação do silêncio. Chamando o povo para a missa da alva, chamando-me para os braços da aurora, reclamando o furor da gente da terra até tudo se desfazer no falsete da alegria que é prova de vida da aldeia e vingança do tempo sobre o dia de ontem.

Algumas raparigas apressavam-se e, ainda antes da missa, já se confessavam das noites mal dormidas. Logo depois, mal refeitas da penitência e das juras de não repetir pecados confessados, mas agradecidas pela absolvição dada a todo o bem que lhes soubera, langorosas piscavam os olhos ao dia claro, aos namorados, aos amantes, ao desejo. Para que a vida se repetisse e dela sobrasse sinal de vida. Desta corrida dos dias, destas alvas estremunhadas, muitas memórias são esbatidas fotografias antigas, adivinhações, o que não se fala e o que se cala, o que se desmancha, o que é sem ser, o que foi confessado e absolvido para não mais ser visto nem achado e até o que foi morto e enterrado como uma pena ou um anjo antes de ser a alma. Se nos distraíssemos, ecoava na nave desses dias passados o sermão que contava a história inteira na voz do padre a encenar cobrança do perdão.

Fui mais poupado aos sermões da aldeia que aos sermões da televisão de hoje. Ainda ontem nem sabia que existiam e hoje há claustros de igreja que são notícia e alerta geral ao que dizem pelo que dizem sobre o aborto. E nem uma palavra sobre a absolvição, a misericórdia divina ou a misericórdia do estado!

Hoje levantei-me para mudar de país ou foi sempre assim?

[o aveiro; 11/01/2007]

a história

para eu não me preocupar com o que a história vai dizer sobre os nossos tempos,
sussuraram-me que
a história vai ser escrita sobre o que for publicado nos jornais
e que cada jornalista escreve sempre a quatro mãos
e piscaram-me o olho enquanto me perguntavam se eu sabia
de quem eram as outras mãos do jornalista

e eu não sabia

a coisa estranha

Não dei pela passagem dos dias. Amanhã, que é quarta feira, recomeçam as aulas e eu estive bem desperto para isso. Para todos os efeitos da escola, hoje foi claramente a terça feira. Para tudo o resto não foi terça feira. Só me resta pedir desculpa a quem esperava que fosse terça feira para mim. Nem sempre sei os ordinais dos dias que passam. Que coisa estranha esta! Há muitas maneiras de nos perdermos.

para começar, a bátega

durante o dia, copiei laboriosamente os poemas que o josé carlos soares reuniu e publicou sob o título Bátega. Para publicar na escrivaninha