raremente escrevo sobre algum assunto que deseperte o interesse de muita gente nem o interesse de pouca gente que seja importante nem sirva para alimentar algum diz que disse que valha a pena seguir nos dias imediatos a ter sido escrito.
também raramente escrevo sobre os assuntos importantes ou ajudo à discussão de assuntos importantes com as frases importantes para a circunstância dos assuntos importantes e fico sempre nas margens da importância.
de facto, eu gostava de ser o verso em branco de uma página com uma linha que me tivesse marcado e a mais ninguém até eu ficar convertido a ser a página seguinte do verso irrepetível mas desconhecido por todos os anos do resto da minha vida.
raramente penso na minha vida como a página em branco que ela é para continuar a ser uma oportunidade perdida por mim e por ter escolhido uma forma simples de ser feliz não sendo coisa alguma mais que olhos capazes de ver o invisível ar quando ele passa por perto e se ri com aquelas gargalhadas que nem eu ouço.
postal
De há uns tempos a esta parte, os postais dos correios têm código de barras na página da escrita ou de desenho. Ainda não me habituei.
Crítica da razão vazia
A avaliação de um ou outro programa de acção e de uma dada situação sectorial ou do desempenho global de uma dada classe ou sector trazem para a ribalta alguns especialistas. Como autores de estudos que (cor)respondem a encomendas de entidades e organizações é que os cientistas sociais são apresentados à generalidade dos cidadãos. Para apoiar alguma decisão controversa é que se realizam estudos. Para as encomendas, estes especialistas escolhem um quadro de referência, indicadores de resultado e de impacto, etc, e, como é óbvio, raramente chegam a conclusões diferentes daquelas que interessam às entidades que pagam o estudo. Estes trabalhos científicos de encomenda feitos com e sem a necessária seriedade têm um efeito devastador sobre a credibilidade do trabalho científico, lançando a suspeição sobre tudo o que seja ciência como método de apoio à decisão social, económica e política. Estes cientistas sociais estão a conformar o discurso político, impregnando-o de terminologia científica desnecessária que oculta retrocessos para a consideração da individualidade humana, de tal modo que ao analisar fenómenos como o desemprego fazem desaparecer cada pessoa concreta até ela ser uma unidade estatística ou um dano colateral de alguma guerra decretada pelo mercado livre.
Para gerir escolas (ou hospitais), para decidir e avaliar programas de acção escolar e até a acção dos professores, encontram-se pessoas que não têm qualquer experiência das escolas ou do ensino da disciplina que vão gerir ou avaliar. Estas não têm que saber coisa alguma sobre contexto e conteúdo em concreto, porque tudo sabem sobre teorias e práticas de gestão, técnicas de análise de conteúdo e de estudo de casos, etc. Equilibram-se numa corda esticada sobre o abismo de um aterro de palavras.
Trocam as pessoas por miúdos, pelas palavras que enchem os relatórios. E, na sua infinita ignorância citacionista, defendem como única síntese possível, a sua leitura vazia de experiência e de conhecimento, a leitura interessante para o dono da encomenda. E são a voz do dono.
Nota-se demais quando algum deles muda de dono. Os estudos estão publicados para nunca serem lidos por pessoas.
[o aveiro; 08/06/2007]
Para gerir escolas (ou hospitais), para decidir e avaliar programas de acção escolar e até a acção dos professores, encontram-se pessoas que não têm qualquer experiência das escolas ou do ensino da disciplina que vão gerir ou avaliar. Estas não têm que saber coisa alguma sobre contexto e conteúdo em concreto, porque tudo sabem sobre teorias e práticas de gestão, técnicas de análise de conteúdo e de estudo de casos, etc. Equilibram-se numa corda esticada sobre o abismo de um aterro de palavras.
Trocam as pessoas por miúdos, pelas palavras que enchem os relatórios. E, na sua infinita ignorância citacionista, defendem como única síntese possível, a sua leitura vazia de experiência e de conhecimento, a leitura interessante para o dono da encomenda. E são a voz do dono.
Nota-se demais quando algum deles muda de dono. Os estudos estão publicados para nunca serem lidos por pessoas.
[o aveiro; 08/06/2007]
os ciúmes
Abandonadas por seus amantes, duas mulheres almoçam sandes, num banco do jardim público. A solidão era tão forte que pensam viver juntas. A que primeiro oferecera a sua casa, ao preparar-se para dormir, sentiu a outra tão atraente que desejou fazê-la adormecer no lado do leito que, habitualmente, ocupava, tomando para si o lado do homem que amava. E ao perceber que olhava para a sua amiga como ele a teria olhado, sofreu com os ciúmes.
Tonino Guerra.
Tonino Guerra.
a arte de voar
como desenhar fronteiras
entre dois mundos?
planto laranjeiras
carregadas de frutos e de ninhos
carregados de aves prontas a voar
entre mim e ti e em ti
voam ligeiras as minhas mãos
fáceis alvos para atiradores furtivos
de primeira linha
de fronteira
entre dois mundos?
planto laranjeiras
carregadas de frutos e de ninhos
carregados de aves prontas a voar
entre mim e ti e em ti
voam ligeiras as minhas mãos
fáceis alvos para atiradores furtivos
de primeira linha
de fronteira
a arte de voar
Nos ombros da mulher de pedra e pranto
repousam os cabelos da árvore caída
e enquanto a ave de granito
de asas partidas
ensaia o voo de um grito,
da minha mão levanta voo a pedra.
repousam os cabelos da árvore caída
e enquanto a ave de granito
de asas partidas
ensaia o voo de um grito,
da minha mão levanta voo a pedra.
a arte de voar
Filtro os sons da água e a água
e mergulho uma folha rabiscada
para que se dissolva a sagrada
escritura da minha mágoa
e a tinta forme então a pomba
que bate as asas e desenha um voo
como um risco branco contra o céu.
e mergulho uma folha rabiscada
para que se dissolva a sagrada
escritura da minha mágoa
e a tinta forme então a pomba
que bate as asas e desenha um voo
como um risco branco contra o céu.
tisana 17
(...)
Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caíu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.
(...)
Ana Hatherly.
Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caíu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.
(...)
Ana Hatherly.
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