o douro


de muitos lugares se pode olhar um rio sentado num banco qualquer
ou feito criança ao colo de uma estátua de mulher
mesmo que os outros não vejam a estátua como nós a vemos
nem vejam o mesmo rio nem leiam o livro que nós lemos

ali naquele lugar se leio a página certa deixo o livro inteiro
menos uma certa página a única que ficou minha para sempre
amarrotada no meu bolso que a guarda e ao sonho que deixei de sonhar
para a ler repetidas vezes como um amante que hesita em despedir-se.

rua de todos os dias


todos os dias várias vezes ao dia passo por ela sem ver os amigos que nela moram
o acaso esconde-nos uns dos outros é o que vos digo por experiência
só vejo o martim que é um cão daquela rua tal qual como eu fiel à manhã
e à tarde

descanso


quando estou cansado e os braços me doem em negação
dou-lhes o gesto de varrer a melancolia de uma tela
tapando com nova paisagem a paisagem que lá estava
assim olhando em dias diferentes pela mesma janela

um amigo em visita pensa que um varredor deixa de ouvir
enquanto varre o pó do seu corpo para debaixo do tapete
e em cada instante procura o instante certo para partir
no fim de uma frase em que cai um . de silêncio

os meus olhos que não cabem na minha cabeça olham
a minha boca que refaz o dia pelo verso do arrependimento
e piscam o código sincero letra a letra para que a boca o soletre

obrigada.

não há semana sem senão

Ouvimos um novo bastonário e temos a vaga sensação de que o que ele diz não carece de prova nem carece de refutação. A sensação vaga de que todos sabem do que se está a falar sem que seja possível concretizar, a sensação vaga de que, por isso, se trata de um mal social qualquer que não se pode cortar pela raíz, porque a sua raíz está no poder e no estado actual das cosias. A vaga sensação de que falamos do inevitável, de uma quadrilha de males menores a quem temos de pagar protecção para que as coisas possam continuar a funcionar.
Lemos as públicas notícias dos truques nas câmaras em que os técnicos de uma delas assinam de cruz os projectos dos técnicos da outra onde podem aprovar os projectos que fazem, embora não possam assinar os projectos que aprovam. Temos a vaga sensação de que em todo o país, em cada uma das câmaras, pode acontecer isso mesmo e não podemos fazer coisa alguma contra isso, porque é assim que as coisas funcionam e, se não fosse assim, nem as casas do desenvolvimento cresciam para cima e já há muito todo o progresso se tinha afundado num mar sem betão. Temos a vaga sensação de que sem esses factos consumados não tínhamos construído as casas em reservas naturais, agrícolas, de orla marítima,... nem tínhamos direito a ver a especulação do oito que se faz oitenta para que alguém ou algum grupo num só dia enriqueça por ter sabido um dia antes o que podia ser feito mais por obra e graça de um técnico do que de outro qualquer nosso senhor do planeamento. Temos a vaga sensação de que não vem mal ao mundo por cada um de nós fazer o mesmo que todos os outros fazem ainda que seja errado e até, por vezes, crime. A vaga sensação de que há coisas que se repetem.
Lemos as letras gordas das brincadeiras de corredor em que cada um dá corda aos seus sapatos e fala sobre educação e sobre professores e sobre o que deve e não deve ser e até sobre a melhor forma de atropelar o parlamento e o bom senso como se houvesse uma autoridade com autorização para atropelar as próprias leis, os próprios prazos, a própria sombra. Lemos as letras gordas e nem acreditamos. Sobra a vaga sensação de que tudo está a acontecer só porque está a acontecer e contra isso nada, porque sabemos que o mal está em tudo o que lemos e ouvimos e contra o céu da boca nos bate, porque não sabemos as regras deste jogo de faz de conta, a conta que fazemos ao rosário que rezamos sem sabermos que oração nem a quem.
Não há semana sem senão? Antes isso que um tiro no escuro?


[o aveiro; 14/02/2008]

fátima



levado pelo vento vaguearás pelos corredores
descobrindo o homem e o filho do homem
a quem dedicaste um último verso
uma oração assobiada num anfiteatro
cheio de peregrinos tão atentos

que não ouvem mais que os dentes
mastigando o pão, a alface, o bife panado

fátima



Ao lado da cruz, para onde sobem os olhos, há um fantástico guindaste
que te eleva ao céu assim tu o queiras.

Só precisas de atenção para veres o guindaste na fotografia
e, depois, subir ao céu não é um problema de fé.

fátima

fátima

fátima

fátima, mesmo!

fátima, mesmo!

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...