a ópera do fantasma

Aqui há muitos anos atrás, escrevi contra exames como se disso dependesse a salvação da humanidade. Atribuía aos exames a maldade absoluta, um último e derradeiro trunfo da reprodução das desigualdades sociais. E tinha razão. Nas minhas tiradas de ira, não precisava de pensar no que era o exame, só pensava no que pensava serem os seus efeitos em termos de selecção social operada pela escola. Contava meticulosamente os jovens oriundos das classes trabalhadoras que chegavam ao ensino superior e os números provavam o meu ponto de vista. Com razão contra o exame, ainda que os meus amigos de infância nem chegassem ao exame.

Mais tarde, professor e em democracia, achava que os exames atenuavam a perturbação social da falta de vagas nas escolas e nas universidades e criavam bolsas de trabalhadores infantis, juvenis e baratos. Reclamava contra os exames e reclamava mais escolas e mais jovens a estudar e menos jovens no mundo do trabalho. E tinha razão. Não me preocupava qualquer noção de exame. Os números do trabalho infantil entre os desfavorecidos existiam para me dar razão. Impossibilitado de me referir a todos os aspectos do sistema social responsável pelo mal, concentrava toda a ira nos exames clamando contra os problemas sociais da juventude. Os exames eram o pretexto. Claro que tinha razões para ser contra.

Tudo foi mudando. Aprovados novos programas de ensino, com base em amplas discussões sociais, muitos problemas persistiam. Havia cada vez mais jovens na escola até me parecerem que já podiam andar por lá todos os que quisessem. Sem haver professores para tanta gente. Estudantes em condições muito diferentes eram submetidos a um mesmo exame nacional? Era contra os exames e, na falta de melhor, aceitava que se compensassem as faltas imputáveis ao sistema nas notas dos exames. Como aceitar perguntas sobre assuntos que podiam nunca ter sido leccionados numa dada escola? Contra os exames nacionais, sempre! E tinha razão. O exame era o momento chave para denunciar a falta de professores, as desigualdades mantidas e criadas.

Na falta de melhor, aceito o corte e costura dos programas para tentar que o essencial chegasse a cada uma das partes do todo nacional. Com professores espalhados por todo o território e programas mínimos exequíveis, podia aceitar-se um exame de perguntas que se pudessem fazer a toda a gente. Isso fazia mau o exame por ser mau e curto o programa. Pior ainda: professores não ensinavam o que estava prescrito, só treinavam para o exame, enquanto outros desistiam da liberdade de trabalhar os temas do programa mais formativos por não os verem reflectidos nos exames. Contra o exame. Com razão.

De certo modo, tinha começado a ser verdade que o exame respeitava o programa de ensino: questionava aprendizagens de todos os temas, sem esquecer verificação de competências necessárias para acções futuras. Ninguém reclamava qualquer compensação, mas ainda persistiam desajustamentos culturais e de linguagem, contextos e práticas dos professores. E tinha razão em ser contra os exames para exigir que o sistema tornasse acessível ao todo nacional textos com modelos de perguntas possíveis e modelos de respostas esperadas para diminuir os desajustamentos. Muitos professores, se feitos para ensinar, não ensinam mais que um discurso seu como resposta em vez de dar livre curso ao pensamento e à iniciativa.

E continuava a ser contra os exames, para pedir mais tempo para pensar sem pressão, para ler melhor, para responder melhor, cada um a seu tempo. Não pedia mais tempo para mais perguntas e mais difíceis ou inesperadas. Nada disso. Contra os exames, pois claro.

Ao longo da minha vida, o exame não foi mais que o nome do momento propício para reclamar e exigir. E nunca houve o exame porque ele sempre foi variável dependente, espelho de mudanças exigidas e consentidas.

Sem saber nada de particular sobre o exame, reconheço este fantasma sem forma na obra colectiva. Cada vez mais complexa e exigente, a obra. Olho para o pormenor do exame: intrigante nada feito tudo, um tudo nada.


[a página da educação; Agosto de 2008]

a revelação

A última semana revelou-se difícil de viver. Sabemos da morte inevitável para cada um de nós e sabemos da possibilidade da morte dos que nos são próximos em qualquer dia do ano. Mais sabemos da elevada probabilidade de que os nossos doentes morram a qualquer momento. Mas nunca encaramos a separação física definitiva, mesmo quando sabemos que ela já está realizada em sofrimento mais que na morte real. O sofrimento separa-nos uns dos outros mais que a vida. Costumo dizer que a vida manda que nos movimentemos para nos afastarmos uns dos outros. O movimento autónomo é sinal de vida e é sinal de separação. Andamos sempre a procurar elementos separadores enquanto crescemos. Só nos consideramos adultos quando nos separamos. Ansiamos pelas separações. Mas não aceitamos a morte como separação e resistimos-lhe. Agarramo-nos aos vivos enquanto estão vivos. Porque a morte serve para efectuar um corte doloroso, uma separação distinta. Doces separações aquelas que a vida opera no seu curso natural - temos consciência disso quando a morte vem separar com um abismo vazio.

Na última semana não deixei de pensar nas separações. As pátrias, as religiões, os ódios e desprezos, as explorações e violações separam em vida pessoas umas das outras e de tal forma que cada uma delas pode operar a morte de outra sem sofrer a dor de separação vazia que a morte é. E vimos as famílias a precisar dos cadáveres dos familiares como condição para a separação entre a vida e a morte provocada pela guerra, embora não estranhem a separação que dá origem à guerra e que está antes da morte dos soldados. Dizem-me que é preciso encontrarmo-nos com o corpo ou o que dele nos derem para fazer o luto, para aceitar a separação. Não compreendo.

Ainda menos compreendo a atitude dos nossos banqueiros e financeiros que conduzem a guerra financeira, abusando e usando o dinheiro de outros para operações que, por não serem controladas, podem gerar lucros fabulosos. Eles não querem saber de onde vem o valor acrescentado ao dinheiro em movimento. Mas sabem que esse valor significa lavagem de dinheiro sujo, venda de armas e material bélico a bandidos, governantes e senhores da guerra, exploração sem limites, ... Eles sabem, na sua santidade aparente, eles sabem que as suas operações matam, que são mandantes de crimes sem nome. Sabem que não podem contar as suas vítimas. Também sabem que não lhes pedirão os cadáveres das vítimas dos seus negócios. Esses banqueiros podem ter usado o meu dinheiro para essa guerra suja.

E eles estão no meio de nós.


[o aveiro; 24/07/2008]

a revelação

dois em um

Há muitos anos atrás, fiquei uns meses a trabalhar numa escola de Aveiro. Devia estar em mudança de São Tomé para Cabo Verde ou em Cabo Verde, de S. Vicente para a Praia. Não sei. Nem sei em que ano. E nem isso interessa. Posso saber do que aconteceu sem saber quando aconteceu. E cansa-me procurar.
Nesse pequeno intervalo (dois ou três meses) leccionei em algumas turmas que me estavam distribuídas. De uma delas, lembro-me de alguns alunos e há quem, passados muitos anos,tenha falado comigo lembrando pequenos episódios desses meses em passagem. Devem ter-se divertido e eu também.

Uma aluna de então, Gabriela(?), contou-me anos depois que me tinha achado muito estranho. Em alguma deslocação com o pai a uma fábrica da região de Aveiro, tinha-me conhecido como motorista (camionista) da empresa. Ela sabia que o seu professor de matemática era camionista de longo curso e até sabia onde eu pegava ao serviço como camionista. Não sei como é que ela resolveu o problema. Mas lembro-me de ter sido dois, realmente dois.

Dos dois, um morreu a meio da tarde da passada sexta feira. Nas horas de espera, conversei com pessoas que não via desde esse tempo antigo. Um deles, Miguel(?), chófer de praça em Vagos, que me levou (e à família) ao aeroporto de então, falou-me de tudo e de nada, de todos e de ninguém (porque eu não sei o que ele pensa que eu sei) e assistiu comigo à passagem do barulhento cortejo de camiões (famílias inteiras na cabina) com histórias de fascínio pelos camiões e do meu fascínio pelos grandes navios sem porto. Por momentos, dei por mim sem saber quem morrera: qual dos dois?

depois vieram tambêm cá