tempo de cólera

Esta crónica apanha-me na cólera da greve. A greve, convocada pelos sindicatos de professores, é uma arma contra as políticas de educação do governo. Devo confessar que me sinto pouco convocado pelos sindicatos dos professores e, menos ainda pelos pelos seus dirigentes. Aos estudantes que trabalham comigo expliquei pacientemente o que significa a greve dos professores, que, sendo cheia de riscos, ela é a mais poderosa das greves, levantando graves problemas de segurança, afectando a vida de crianças e de jovens e criando uma falha geral de sistemas de apoio às famílias. Estas greves exigem uma ponderação muito séria da parte de quem as convoca e mais ainda dos governos que devem tomar medidas para enfrentar a situação de emergência criada pela sua realização. Se realizada com êxito, uma greve de professores é uma arma poderosa e rica de consequências, podendo tornar-se entrave sério ao curso da acção dos governos ou mesmo a tornar clara a necessidade da sua substituição.
A manter-se fechada no espartilho das suas reivindicações próprias, uma greve de professores pode sempre atrair a desaprovação social pelas dificuldades que coloca às famílias. E levantar reprovação do todo social face ao sistema público de educação e ensino e à administração pública, para além das legítimas reclamações para alternativas aos sistemas de apoio.

Mas uma greve de um sector pode tornar-se numa manifestação de cólera geral, colectiva, quase esquecendo as suas motivações iniciais. E é isto que está a acontecer com esta greve de professores. O desconforto geral que ela podia ter criado está em segundo plano. Em primeiro plano, está a irritação face a um governo que se mostra autista e incapaz de mostrar verdadeira compaixão para os pobres e desempregados de hoje realmente existentes, ao mesmo tempo que demonstra pressa e preocupação com banqueiros e gestores milionários que, tendo apodrecido em montureiras de lucros especulativos, reclamam do estado que aumente as suas fortunas, salvando as suas instituições, fundações e sociedades. Se, na semana passada, vim aplaudir a posição do ministro que argumentava contra qualquer plano de salvação para os gestores de fortunas, esta semana venho escrever que Sócrates me convocou para a minha greve dos professores contra a política do governo, que, entre outras coisas, destrói a autonomia e independência da banca pública, aprovando (não é o mesmo que mandando?) que se salve o banco privado de que é principal accionista o gestor de fortunas de sempre.


[o aveiro; 5/12/2008]

a maneira de andar

dei-te a mão para subires
mas quiseste subir voando

Santiago

Santiago

Santiago

Porta estreita é o presente. E a saída faz-se pela porta de entrada

1.
O governo do presente português é baseado numa maioria absoluta de deputados no parlamento. Os governos de maioria absoluta têm tendência a menosprezar as opiniões (ainda que de grandes massas de eleitores) quando a opinião pública se mostra favorável à acção quase simultânea à decisão da produção do evento substituto da acção.
Por ser público o sistema das escolas e dependentes da administração pública os agentes educativos (em maioria) tudo o que se diz sobre educação e organização educacional assume grande importância no conjunto da sociedade. Mais importância assume o que se faz.

2.
Parte importante das acções do governo do presente influenciaram e alteraram o sistema educativo, afectando tanto a organização central como as escolas e os professores. Se os planos tecnológicos afectam professores e escolas, mais ainda os afecta a política para a formação e certificação escolar de adultos na base da experiência de vida, ou da generalização do ensino profissional a todas as escolas públicas. Obrigou à criação de uma agência de qualificação central e centros de novas oportunidades, alterando em muito a natureza de organizações já existentes, as prestações profissionais dos professores e, ao lado deles, a emergência de novos profissionais que já não se confundem com os professores. Nas escolas, os professores sentiram as transformações quando receberam novos serviços, alguns deles prestados fora de muros. E sentiram-nas nos centros de formação, reorganizados por concentração para novas funções e novos utentes a perder de vista a identidade com que tinham nascido. Sem falarmos do outro aspecto da concentração, iniciada antes, das escolas em agrupamentos, temperada por autonomia e transferências de poder para as autarquias.


3.
Por cada uma das muitas medidas, com carácter de urgência, dirigida ao conjunto dos professores ou a parcelas significativas de professores, o governo definiu necessidades de formação gerais e, dado o carácter de urgência, assumiu a concepção e planificação das iniciativas que entendeu por necessárias ou que foram reclamadas pelos grupos de professores afectados por cada uma das medidas. Para muitas delas, assumiu mesmo a promoção das iniciativas. E tantas elas foram que as fontes de financiamento ficaram secas depois de o governo ter ido matar a sua sede ao bebedouro geral.

Não me passa pela cabeça pôr em causa a legitimidade da administração central para promover algumas iniciativas de formação que considere imprescindíveis para executar mudanças curriculares, mudanças no sistema de administração escolar ou avaliação de professores, para só falar de algumas das políticas do presente.
Mas a actual concentração foi muito além do que é aceitável em democracia. Se é condenável ter secado as fontes de financiamento, a preocupação maior está na mobilização geral pelo governo de todas as actividades e todos os activos do conjunto do sistema. Grave em democracia é que o governo tenha subtraído à sociedade os meios (recursos e forças humanas) para as iniciativas independentes, criando a ideia de um deserto para a acção fora da esfera estreita do governo.
Uma boa parte das instituições criadas para a diversidade foram manietadas para obter efeitos que o governo prosseguia com cada medida. Organizações do ensino superior e não superior, associações de professores e seus activistas ficaram presos a urdir a teia do poder. Esta situação esclareceu-nos que as principais forças para mudanças e adaptações (curriculares ou outras) estão nas associações profissionais e espalhadas pelas escolas do território. E mostra-nos, à evidência, como uma direcção de governo, capaz de usar a seu favor a iniciativa externa, pode criar condições de organização para a esgotar em seu exclusivo benefício.

4.
As escolas e as suas associações, os professores e as suas associações precisam de reganhar a iniciativa na acção e formação independentes e marcar pela diversidade de exercícios de docência reflexiva a sua identidade profissional. No lugar e no papel dos professores. Nem mais. Não menos.



[a página da educação; dezembro de 2008]

Santiago

o homem sem qualidades

Há muitos anos atrás, estava eu a morar e a trabalhar em Cabo Verde, uma professora leu a sina que está escrita na palma da minha mão. Não hesitou muito em comunicar-me a crua verdade da minha vida: em tudo eu era uma pessoa banal e muito desinteressante. Era assim como professor e assim era no amor, como pai, filho, irmão e... seria o mais que provável avô banal. Aceitei muito bem essa maldição. De certo modo, preferia assim e esforcei-me por aperfeiçoar a minha banalidade. Para mim, isso significava ir fazendo o que é preciso e o que me pedem, momento a momento. Dentro do que eu entendia por banalidade, precisava de procurar fazer o melhor possível o pouco e o muito que fizesse. Este ideal de banalidade foi-me colocando nos acontecimentos, mas sempre em segunda fila. Não disputava poderes, abandonava as batalhas mesmo que as pudesse vencer, não me deixava envolver como funcionário de causas para não julgar quem não fosse da causa, não cobiçava a vida alheia, etc: seguia religiosamente os 10 mandamentos da banalidade. Nunca pensei é que alguém um dia viesse somar as pequenas parcelas da minha vida banal e à soma atribuísse sumas virtudes, mesmo que banais.
Como é que um homem banal que passa a vida a esconder-se na banalidade pode tornar-se sombra para alguém? Como um amontoado de banalidades, claro. Sem querer passei a ser visto tal qual sou, um monte de banalidades. Só que agora há quem pense acusar-me da banalidade que eu, qual banal laborioso, construí cuidadosamente.

Tenho de confessar que sou assim, mesmo bom a fazer e a dizer banalidades. Nunca fui secretário de partido ou sindicato e também não sou contra partidos ou sindicatos, nem renego os meus votos neste ou naquele partido. Não sou banqueiro nem joguei na bolsa de valores sem valores. Custa-me a aceitar as mudanças de paleio sobre as virtudes do mercado de valores sem valores e custa-me a compreender como é que os defensores da privatização a todo o vapor se tornam defensores da nacionalização do capital em risco ou de risco. Banalidades de um esquerdista banal.
E sou banal em toda largura do olhar: se a minha profissão precisa de balizas para se dignificar perante a sociedade, digo-o, mesmo quando me confundem com o governo dos meus colegas não banais; se o ministro das finanças do meu país não está disposto a dar aval nem apoio ao banco de um qualquer bem sucedido gestor de fortunas, eu saúdo-o nesse gesto. Coisas banais. Nada há aqui que clame atenção. A minha experiência de banalidades diz-me que as coisas banais só se explicam de forma banal.

[o aveiro; 27/11/2008]

santiago

encontrei-te santa de papel