1)
Somos nós quando aprendemos a balbuciar e somos nós quando imaginamos a nossa fala e imaginamos o nosso pensamento único ou superior quando não entendemos a linguagem dos outros e presumimos que lhes foi retirada a linguagem porque não têm pensamento que se exprima por palavras que entendamos. Não há pensamento sem linguagem inteligível para nós ou por nós. Nós temos o dom da nossa fala. A nossa fala somos nós e a nossa arrogância. A nossa fala é a nossa primeira natureza.
E somos nós quando nos arrogamos à coragem de aceitar outras linguagens e a derrota de as estudarmos até nos parecer que os outros, antes separados de nós, são agora como nós, diferentes nós. Também.
(...)
somos nós
0)
Nós damo-nos muita importância. A nossa arrogância é a nossa natureza , não é a nossa segunda natureza. A nossa arrogância somos nós, separados de todos os outros, para sermos e sentirmos a nossa diferença dos que nos parecem iguais.
E somos nós quando nos arrogamos à coragem de aceitar a derrota e sermos os outros numa comunidade de comuns, na comunhão pública de ideias e gostos, nos restos que escorrem do cadinho da fusão. Somos nós, sem rota, derrotados somos nós. Também.
(...)
Nós damo-nos muita importância. A nossa arrogância é a nossa natureza , não é a nossa segunda natureza. A nossa arrogância somos nós, separados de todos os outros, para sermos e sentirmos a nossa diferença dos que nos parecem iguais.
E somos nós quando nos arrogamos à coragem de aceitar a derrota e sermos os outros numa comunidade de comuns, na comunhão pública de ideias e gostos, nos restos que escorrem do cadinho da fusão. Somos nós, sem rota, derrotados somos nós. Também.
(...)
silogismo?
Desde o princípio dos tempos, Deus tudo escolheu para nós, até as nossas gravatas.
[E.M. Cioran, Silogismos da amargura. Letra livre, Lisboa: 2009]
oferta de JCSoares
[E.M. Cioran, Silogismos da amargura. Letra livre, Lisboa: 2009]
oferta de JCSoares
Zurbarán
(...)
Pensativa substância, a pintura
paralisa de luz a arquitectura.
(...)
A sala inteira silenciosa reza
uma oração que exalta uma certeza.
(...)
Nunca a linha vestiu peso mais grosso
nem a alma pano vivo em carne e osso.
(...)
Gira em tua eternidade a disciplina
de uma circunferência cristalina.
(A la pintura. Rafael Alberti. José Bento)
Pensativa substância, a pintura
paralisa de luz a arquitectura.
(...)
A sala inteira silenciosa reza
uma oração que exalta uma certeza.
(...)
Nunca a linha vestiu peso mais grosso
nem a alma pano vivo em carne e osso.
(...)
Gira em tua eternidade a disciplina
de uma circunferência cristalina.
(A la pintura. Rafael Alberti. José Bento)
40 anos de casados
o josé telefonou para me dizer: fazemos 40 anos de casados. temos de nos encontrar. num dia de julho. nas ruas de leça. que dizes?
respondi: encontrarei o dia.
respondi: encontrarei o dia.
mundo com pernas
manuel tem dificuldade em acompanhar o mundo com pernas para andar. sempre gostou de andar de gatas, porque gosta do amarelo dos olhos dos gatos e das garras afiadas que sempre estiveram nas patas felpudas que o acariciam ronronando promessas. mas o mundo? só percebe o mundo sem pernas, não imagina o mundo com pernas nem sabe o que poderá ser o mundo de pernas para o ar. o manuel tem dificuldade em olhar a simplicidade sem garras e patas felpudas que escondam as garras da intimidade que um mundo com pernas para andar torna difícil demais. para o manuel há um nível de dificuldade inadmissível e um nível de simplicidade admissível. apontou no seu caderno de notas ou de noites de andar às gatas e sabe que, para ele, não há coisa alguma. o que não está referido no seu caderno de notas não existe, simplesmente não é. foi a mãe quem lhe disse isso mesmo e a mãe deu-lhe o primeiro gato para que ele pudesse acreditar em tudo o que ela soubesse balbuciar. mundo com pernas para andar? nah.
todos os dias
vejo-a na sombra.
um sorriso em contra-luz
fora de uma porta aberta ao sol
nem eu sei como a encontro
que eu não vejo mais que uma sombra
que assoma e desaparece
na mancha de uma sombra maior
um sorriso em contra-luz
fora de uma porta aberta ao sol
nem eu sei como a encontro
que eu não vejo mais que uma sombra
que assoma e desaparece
na mancha de uma sombra maior
a CABEÇa perdida
às três.
ainda me lembro disso. não era nada natural a maneira como ela pegava no gato. arnaldo comentava a antiga atitude de atirar os gatos ao poço. ninguém ligava e continuava toda a gente a beber a água daqueles poços cheios de gatos podres. o menino puxou de duas pequenas pedras bem redondas que trazia no bolso e atirou-as, primeiro uma e depois outra para o poço. viam-se as circunferências concêntricas se repetindo à superfície e lá no fundo dois olhos brilhantes e fixos como estrelas. voltámos as costas a todas as imagens e caminhámos para aqui, onde nada se reflecte. assim concluiu arnaldo a sua narração sombria. todos se calaram.
eunice desaparecera já há um bocado. voltou depois com arnaldo pela mão. este tinha perdido a cabeça. e tropeçava em todos os móveis. eunice, ao passar pela mesa do conde, poisou a cabeça perdida do arnaldo e disse: tem nome, chama-se arnaldo e não dá por outro nome. não te esqueças. o conde disse: eu sei.
ainda me lembro disso. não era nada natural a maneira como ela pegava no gato. arnaldo comentava a antiga atitude de atirar os gatos ao poço. ninguém ligava e continuava toda a gente a beber a água daqueles poços cheios de gatos podres. o menino puxou de duas pequenas pedras bem redondas que trazia no bolso e atirou-as, primeiro uma e depois outra para o poço. viam-se as circunferências concêntricas se repetindo à superfície e lá no fundo dois olhos brilhantes e fixos como estrelas. voltámos as costas a todas as imagens e caminhámos para aqui, onde nada se reflecte. assim concluiu arnaldo a sua narração sombria. todos se calaram.
eunice desaparecera já há um bocado. voltou depois com arnaldo pela mão. este tinha perdido a cabeça. e tropeçava em todos os móveis. eunice, ao passar pela mesa do conde, poisou a cabeça perdida do arnaldo e disse: tem nome, chama-se arnaldo e não dá por outro nome. não te esqueças. o conde disse: eu sei.
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