Houve tempo para escrever um epitáfio a cada um dos conhecidos mas a pensar em todos os que não reconhecemos, assinalámo-los com uma cruz sobre o chão onde descansavam, procurando tornar claro que os considerámos da nossa comunidade religiosa mesmo sendo pobres e não nos merecerem outra memória senão uma cruz por cada um. Para que não se pensasse que não os tratávamos como iguais, todas as cruzes eram iguais entre si e, não levando em linha de conta os adornos, mesmo iguais como cruz às cruzes que se espalhavam por todo o cemitério dividido em linhas e colunas separadas por caminhos de saibro as linhas e por pavimentos coloridos as colunas. Mas nada de palavras e datas que os pudessem identificar como fizemos com os que reconhecemos como sendo os nossos.
Os estranhos curiosos que visitavam o cemitério louvavam o gesto mas não deixavam de perguntar quem seriam os mortos que não tinham nome e porque diacho ali tinham vindo parar e porque ali ficavam enterrados naquele esquecimento de tipo particular: procurávamos tornar públicos que ali havia ossos enterrados mas ossos de ninguém.
Porquê? - perguntavam.
Enquanto os visitantes fizeram perguntas às pessoas da geração que criou o cemitério e a regra, tudo parecia natural e a nossa comunidade foi considerada solidária e respeitadora para com os seus visitantes do passado desconhecidos na comunidade.
Mais tarde das perguntas feitas a pessoas que não sabiam por não terem ouvido palavra a respeito desse estranho hábito em cada cruz a marcar a existência dos ossos de algum visitante desconhecido passaram a ouvir outras explicações. Alguma coisa se quebrou a dada altura do que resultou uma grande época sem visitas até que sobraram duas pessoas da comunidade e nem mais uma visita de fora nem de dentro. As duas pessoas que ainda lá vivem não se conhecem e por isso ainda existem como guardas às portas das duas entradas que a comunidade tem: uma à entrada para cobrar a vida de quem entra e outra à saída para garantir que a vida fora cobrada como mandava o hábito mais antigo e conduzida até à entrada do velho cemitério.
Estive recentemente num ano de passado
os pés pelas mãos
Os fungos e outros parasitas habituados a habitar o corpo de Amarildo Vinagre sobreviveram vários anos comendo as pernas do Amarildo. Quando as pernas acabaram, os parasitas provaram os pés de Amarildo e não gostaram. Também não gostaram de continuar a comer subindo sempre como até aqui onde passaram algum tempo feliz a mastigar o pernil de Amarildo. Um dos parasitas deu um pequeno salto e achou-se numa das mãos e no caminho de um dos braços de Amarildo de que gostou. Não tendo ele voltado para trás, outros parasitas tentaram o mesmo salto. Um a um, até a família toda subir na vida a pulso de Amarildo. O Amarildo que até aí tinha andando a temperar as pernas com o seu Vinagre, passou a temperar com Vinagre os seus braços. Ao terem acabado com as pernas do Amarildo, os membros da família dos parasitas descansaram sobre o caminho a tomar. E num impulso trocaram os pés pelas mãos quando as mãos de Amarildo se coçaram em vez de serem as pernas a fazê-lo.
se ainda tens os dentes todos
lembro-me de ti muito vagamente
mas não sei - como posso saber? -
se ainda tens os dentes todos
o que pouco me interessa e só me intriga
poder viver pendurado pelo desejo de saber
dos teus dentes que talvez nunca tenha visto
porque, disto lembro-me bem, reagias lentamente
a cada parvoíce minha e o instante feliz
nunca mereceu mais que um meio sorriso
que eu sempre soube, de fonte segura,
não era mais que um disfarce da amargura
sobre o nível actual da minha falta de juízo
ou as nódoas que eu não via mas viviam
comigo bem visíveis na gravata que eu não vestia
mas não sei - como posso saber? -
se ainda tens os dentes todos
o que pouco me interessa e só me intriga
poder viver pendurado pelo desejo de saber
dos teus dentes que talvez nunca tenha visto
porque, disto lembro-me bem, reagias lentamente
a cada parvoíce minha e o instante feliz
nunca mereceu mais que um meio sorriso
que eu sempre soube, de fonte segura,
não era mais que um disfarce da amargura
sobre o nível actual da minha falta de juízo
ou as nódoas que eu não via mas viviam
comigo bem visíveis na gravata que eu não vestia
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