despedida

enganámo-nos. andámos para cá e para lá e chegámos ao outro lado. e, invejoso,  tirei a fotografia que ela tirou.

despedida

nem sempre sabemos de quem nos despedimos quando nos despedimos. só hoje me despedi de uma observação de há dois anos atrás sobre a catedral que dali se via. dali, onde hoje se acotovelam algumas fumadoras para a fotografia
catedral? qual catedral? perguntei então. até que, hoje, passados dois anos, ...

lá do cimo eu bem lhe disse: 
não se vai ver.  
ela retorquiu: 
eu sei quem lá estava (e nos viu partir voando - devia ter dito deve ter pensado).
acrescentando desconfiada: 
achas mesmo que por aqui se chega à catedral?
eu devia ter dito:
-e eu é que sei?

de facto,

de facto ninguém ouviu o tiro o estampido que ela ouviu
ou melhor sentiu como uma dor fina de uma orelha à outra
atravessando a cabeça como uma agulha de som como um eco
da vida que ali não está nem está em lado algum já se cansou

de procurar por ele e ninguém sabe embora toda a gente o tenha
visto caminhando distraído como sempre a caminho de cada
lugar dia a dia como se fosse necessário encontrá-lo onde
nunca fez falta todos o sabem menos ele que não sabe parar

de se mexer sem outro  sentido que não seja o sentido do dever
sem dever nada a ninguém é o que dizem os que o não percebem
enquanto ela atarantada tenta perceber porquê e para onde ele

terá ido se não há quem por ele espere ou dele precise como
foi tão natural que toda a gente o tenha visto partir sem estranheza
como se a vida dele tivesse sido isso mesmo um desnorte só

vais partir

vais partir: precisas de ouvir  a porta a bater para saberes
o que ainda não sabes que vais caminhar sempre em frente
quando saíres do prédio de apartamentos para nenhures
sem destino sem norte só em frente sem olhar para trás

para que a estátua de sal que há muito és caminhe contigo
e passe pelas ruas onde a esculpiste para em vez de ti mesmo
sobrar na esquina talvez como um monte de sal ou cinza
porque vai contigo para que nada nem a sombra sobre

quem desaparece tem a certeza dos olhos que ficam presos
até que se desvanece à distância de um tiro de carabina
e não por dobrar um cabo dos trabalhos ou uma esquina

quem desaparece quer mesmo ir sempre em frente sem
uma muda de roupa sem  telemóvel sem cuidar do tabaco
sem caderno nem um simples lápis para esboçar o quê

a canção que

a canção que se ouvia era um fado pela voz de um sax
alto dizia qualquer coisa como todo o amor que começa
também acaba como a noite que acaba ao romper do dia
ou o enjoo que acaba quando a viagem acaba e sais ao ar

o problema está em não poder dizer que o que lá vai lá vai
e que parto daqui descansado e sereno como quem muda
de casaco ou escreve um poema como se fosse um ponto
final infeliz mas ponto e final sem mais perguntas ou recuos

dizendo ficamos amigos como dantes dizia eu a mim como
se tivesse havido antes e eu me tivesse conhecido realmente
ou tivesses hesitado ao ver-me partir para  o lado de dentro

de onde se solta o fado cantado por um sax como um latido
do cão de guarda ou o gemido descontrolado  de uma alma
que abre uma baínha com a espada que nela se esconderá

se soubesse quem

se soubesse quem és podias chamar-me pelo nome ou
se soubesses quem eu sou podia chamar-te pelo nome
mas não há problema em saber ou não saber a solução
que me aflige é mesmo uma ausência sempre presente

um esquecimento de tudo em volta de eu reconhecer
num detalhe ou noutro as caras e os nomes e juntar
a cada cara o seu nome ou a sensação de um cheiro
a limão colhido durante um passeio pela noite dentro

se não deste por mim é porque eu nem existo como nome
nem como tempestade de que me lembre ou te lembres
ou como lugar onde tivesses estado e eu contigo só

vagamente as ruas passam a ser umas depois das outras
corridas pelos teus pés incansáveis e  pelos meus olhos
feridos no mais alto miradouro a ver e chorar-me com dó

regressos lentos

uns dias faz sol noutros dias faz-se a chuva e o frio
por fora e por dentro de nós caímos em nós variando
entre sensações umas e outras marcadas pelo andar
lento entre as árvores que perdem as folhas como eu

perco palavras por dizer ou esquecidas na cesta do pão
manhã cedo ainda havia muito tempo para falar ou calar
e transformámos os dias em espera pela calada da noite
um silêncio escuro o cansaço de tudo ter dito por dentro

o lugar que sou eu ou tu conforme é quem lê eu ou tu
a realidade ou a ficção em que ela se transforma no amor
clandestino que de mim fez tanto menino  como velho tímido

entre o calor e o frio  dos dias temerosas antecâmaras da noite
em que caímos até não haver mais que ver ou até viver
sei lá se vai ser procissão de romaria o funeral deste solavanco