O homem que dita as cartas.
Arsélio Martins

Vê-se uma cúpula de luz. E ouve-se a multidão dos sons indistintos que ocupam uma grande estação de comboios ou autocarros. A câmara acaba por se fixar numa cara tisnada e cortada por rugas profundas e nas palavras que a boca desdentada solta desordenadamente para o ar. Percebe-se saúde e saudade. Um ligeiro movimento da câmara e aparece-nos um balcão e um computador. Depois um teclado e duas mãos finas espalham os seus dedos ágeis pelas letras. A imagem fixada momentos depois é de uma cara de jovem fardada para a circunstância do seu serviço. Ficamos a saber o que está a acontecer. Naquele ponto de chegadas e partidas, o homem analfabeto dita a sua carta desordenada para a jovem que a organiza para ser impressa e enviada para um destinatário tão longínquo daquele lugar e tão próximo do homem que ganha o impulso para regressar em palavras . Mais tarde no outro lado da mesma vida, os ouvidos do coração destinatário ouvem aquelas palavras, lidas por alguém que saiba lê-las e escreva a carta de resposta ditada como prova de vida e de reconhecimento: - Espero que esta carta te vá encontrar de perfeita saúde que eu vou bem graças a Deus. Gostei muito de saber que estás vivo na grande cidade. Fico cheia de saudades e espero vir a receber notícias na volta do correio.

Com dez milhões de analfabetos, o grande Brasil é atravessado por multidões de deambulantes que, ao procurar terra e trabalho, deixam atrás de si não mais do que as memórias frágeis que se vão desbotando. A mulher que recebe a carta do homem que lhe escreve com as mãos de outro lembra uma boca outra atropelando palavras que não são aquelas que uma carta ditada pode transportar.

No drama filmado, ao lado do engraxador da estação central, a personagem interpretada por Fernanda Montenegro ouvia e escrevia as cartas. Nos envelopes, remetente ou destinatário eram não mais do que um gesto na encenação das grandeza e franqueza humanas. O serviço, que a notícia de hoje nos mostra, talvez tenha sido criado sobre a vida de que o belo e terrível filme não é mais que retrato retocado a sépia. O serviço garante a interpretação do jacto das palavras ditadas e a sua abençoada traição em carta, os envios para endereços fiáveis. E fornece um endereço para as respostas que serão procuradas por quem não habita outra casa além de um canto na estação central. E promete que ensina a ler e a escrever a quem assim o quiser.

Sobre um fundo de barulho da estação, fica gravada a torrente da voz do homem que dita as cartas. A multidão de vozes protege a intimidade da carta ditada a uma só voz.
Nenhuma outra notícia pode sobrepor-se a essa torrente de voz que salta entre vida e filme e vida (de novo filme), subindo os degraus do andaime que montámos para nos restaurar e à esperança arranha-céus.

[o aveiro, 19/06/2003]

Sem comentários:

somos, fomos, somos, seremos