O singular abandono do plural.
Arsélio Martins

Em dois momentos distintos da semana que passou senti um mesmo tipo de desconforto.

1. Ouvia dois políticos ou comentadores que falavam sobre justiça, como se vivessem em mundos distintos. Ambos garantiam a sua confiança na justiça e, em particular, na seriedade de cada um dos juízes no acto de julgar cada caso. Ambos consideravam que, na base da lei, das provas e das argumentações das acusação e defesa de cada caso em julgado, era possível e acontecia que os juízes agissem sem intenção maliciosa e sem atender ao estatuto social dos julgados. Mas um dos comentadores argumentava que, apesar dessa singular independência de cada juíz, a justiça era desigual para pobres e ricos. Bastava para isso saber que os meios de defesa se pagam e que isso não pode ser escondido por haver acesso a um advogado oficioso. Nem aludia às estatísticas que mostram que a maioria dos presos são provenientes das classes desfavorecidas. Até podemos ser todos iguais perante a lei e, pelo simples facto de haver muito mais pobres que ricos, mais pobres do que ricos apodrecem nas prisões. Os pobres são a imensa maioria e os ricos são uma imensa minoria? Aceitamos que a desigualdade não está só na justiça? Haver ainda quem negue que há pobres e fracos perante a justiça… acrescenta cegueira e mordaça aos olhos vendados em cada acto de julgar o que pode ser só o que parece..

2. Participava num seminário sobre o abandono escolar aqui mesmo em Aveiro. Espero que a nossa autarquia tenha dado um primeiro passo na compreensão do fenómeno para o tentar travar. Todos podem vir à escola e esta, ou cada um dos agentes educativos, trata todos de igual modo – diz-se. Então o abandono é de um só tipo e é alguma coisa tão independente das classes sociais como pensamos que a escola o é. Não é assim que pensamos. De facto, as diversas camadas sociais tomam lugares diferentes na grelha de partida, conduzem carros radicalmente diferentes e nem as metas que perseguem são as mesmas. Também aqui de nada nos valem as estatísticas. De facto, podemos sempre pensar que há mais pobres iletrados pelo simples facto de haver mais pobres que ricos. O problema é afinal sempre o mesmo? Mas todos aceitamos como certa a necessidade da escola e do que ela pode proporcionar. Só temos dificuldade em gerir as definições nacional e local sobre a escola dos “precisos” para o exercício limpo da cidadania, sendo que o abandono vem sempre da nesga de desacerto entre os “precisos” individuais e sociais a prazo e o que cada indivíduo quer no exacto instante em que está na escola querendo estar noutro lado. Quem é que não confia no futuro que consta das promessas? Também me pareceu ouvir intervenções seguidas em que cada uma delas finge a inexistência do mundo da outra.

3. Certo, certo é que tanto na justiça como na escola para todos não nos sossega baixarmos a percentagem de erros e de abandonos, porque o que queremos é um mundo sem vítimas e… para descalabro basta-nos uma só que seja. Cada comunidade precisa de conhecer as suas vítimas pelos nomes e apelidos para acompanhar os seus processos e, quem nos dera!, fazer com eles o caminho de regresso à casa comum.

4. Enquanto não houver casa comum, esforçamo-nos por alguma causa comum.

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