Recebi uma carta. Escreve o meu amigo: Quando soube da morte de V. Gonçalves, tive a intuição que A. Cunhal se seguiria. Não gosto destas intuições se bem que baseadas em cálculos de probabilidades...
Escrevo uma carta: Lá mais longe, onde o amarelo das searas dá lugar ao azul do céu, um poeta declama o silêncio. As palmas das mãos abertas ao vento norte, o poeta vira as costas a esta vida, ao sul do sol. Que frágil espelho separa a vida da morte!
Escrevo uma carta: Nós pintámos paredes quando o que queríamos dizer não cabia na voz. Enchemos a vida de fantasias e de fantasmas, companheiros de viagem, passageiros amores ou passageiros ódios que acendiam as nossas noites de Abril. Há dias em que nos parece que a memória não vai chegar para tantos fantasmas que decoram a multidão das paredes da nossa vida. E, no entanto, sabemos deles por os termos ouvido falar ou termos visto como caminhavam ou como piscavam os olhos quando nos olhavam sem nos ver.
Recebi uma carta. Escreve o meu amigo: As mães, hoje, perante as asneiras dos filhos nos autocarros, dizem-lhes alto "É isso que te ensinam na escola?" quando dantes, envergonhadas, diziam "É isso que te ensinam em casa?"
Pergunto-me muitas vezes como é que a escola nomeia os nossos fantasmas a quem os não conheceu. E muito menos sabemos como os nomearão as mães. Porque nós não vimos um filme nem ouvimos uma história. Porque vivemos o filme e vivemos a história, em cada partida do destino, perguntamos pelas sombras das nossas paredes. Na minha escola, havia um quadro na parede, desesperadas lantejoulas feitas de escamas brilhantes coladas no pano crú que é o melhor fundo para o poema de Eugénio que, no quadro, se pode ler bordado a linha verde esmeralda. Quem o irá ler?
Há dias em que nos lembramos que é a nossa vida que está de partida para outro lugar na memória. E percebemos também que é, por não nos habituarmos ao presente do futuro, que inundámos o nosso vale de sombras.
Como será nomeado o nosso tempo? Que dirá a escola sobre o que fomos? Que dirão as mães aos filhos? Nestes dias, em que os nomeados do nosso tempo deixam o seu lugar de pessoas ser tomado por personagens da ficção histórica, fincamos os pés no chão que pisamos e damos destino ao passo seguinte.
Aos meus filhos pequenos, eu só declamei o silêncio com a desculpa de não saber mais versos. Que lhes ensina a escola sobre a partida para fora de nós e do nosso tempo?
A partida não se ensina. Aprende-se, ... partindo.
[o aveiro; 17/06/2005]
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