cruzes canhoto!
Nesse tempo, nem imaginava que houvesse crianças que não fossem católicas apostólicas e romanas. Aprendia então cuidadosamente que os infiéis ou tinham sido derrotados e assassinados ou tinham sido convertidos e já não eram infiéis.
Passados cinquenta anos, nem tudo é diferente. Mas olhamos para o passado de heranças culturais de outro modo e sabemos que há batalhas que se perderam na bruma dos tempos, mesmo quando parecia que as vitórias eram nossas, dos nossos cruzados e eternas.
Ainda nos parece que a maioria da população se reclama de uma matriz católica, mas sabemos e aceitamos que há portugueses de raiz ou visitas bem vindas das mais variadas religiões. E defendemos que, nas salas de visita da democracia portuguesa, todos quantos por cá vivem e trabalham se devem sentir iguais independentemente da raça, do credo, do sexo, .... As primeiras salas de visita são as salas de aula das escolas.
O mediterrâneo lembra-nos todos os dias de que caldo cultural somos feitos e a nossa língua não nos deixa esquecer a herança que recebemos. Por isso, desejamos ardentemente que as iniciativas das comunidades das margens do mediterrâneo tenham sucesso. O nosso futuro depende disso.
Onde falha a Cimeira Euro-Mediterrânica de Barcelona? Lá, claro. E por cá? Cavaco Silva, candidato à Presidência da República, declara-se contra a retirada dos crucifixos das escolas públicas do nosso estado laico. A derrota mediterrânica está a passar por aqui.
[o aveiro;1/12/2005]
A cobrança de pt-nadas.
E lá assinei uns papéis a desligar-me. Mantive o pagamento disponível no banco até porque haveria a pagar o que ainda estivesse por pagar. Pelo sim, pelo não, lá desliguei tudo e avisei que não havia ligação para o número antigo. Abençoados meses sem aquelas contas.
Um dia destes, fui assaltado. A factura da pt tinha voltado e, pelas datas, o banco já devia ter liquidado a coisa. Nela constavam o custo de uma assinatura mensal, o custo de um plano de preços e uma taxa municipal de direitos de passagem relativo ao mês de Outubro. Não havia mais cobrança porque não havia qualquer serviço prestado. Fiquei perplexo e fui perguntar o que se passava. Em particular, perguntava como era possível estar a pagar o que não tinha comprado nem tinha sido vendido. A funcionária simpática e eficiente explicou-me com paciência que, em Junho, eu só tinha suspendido o serviço por alguns meses e, como não tinha dito coisa alguma, o serviço tinha voltado a estar disponível automaticamente e eu tinha de pagar, utilizasse ou não. Mais uma vez amaldiçoei as minhas pressas a impedir-me de não ter percebido isso da outra vez. Lembro-me bem de ter insistido então para acabar com a coisa de uma vez por todas.
E vi-me a pedir, de novo, agora a esta funcionária, que me desligasse da máquina definitivamente. Preferia morrer sozinho a continuar vivo ligado à máquina da pt. Mais um papel para eu assinar! A razão "não quero!" não serviu para cortar o cordão umbilical com a pt. O computador não considerava essa possibilidade e eu tinha de justificar o fim destes pagamentos indevidos como se crime fosse, como se recusasse pagar imposto para serviço público.
Finalmente, entregaram-me o papel, com o aviso de que ainda teria de esperar e pagar mais uns sete dias úteis. Cansado, assinei no papel - "Burro Martins" - com a minha bonita caligrafia.
[o aveiro; 24/11/2005]
pregunta derradeira
dime,
camarada, como vén
e como ten ollos a morte
cando quedamos sós?
como esvara
deica o seu silencio atrapado
e nos prohibe?
como,
camarada,
deixar gravado na memoria
o teu tempo de escuma?
[Rafa Villar; son de poesía.
Lisboa e Santiago de Compostela]
uma grua espreitava
Ali onde menos esperava erguia-se uma nuvem
ameaçadora como uma ferramenta cinzenta
ou uma guilhotina brilhante na nesga de luz.
Enquanto ruía um céu metálico de sabores e gruas
e roldanas, porcas, parafusos e foices de longas curvas,
fêmeas e machos voavam espreitando passos de roscas
acertando noivados, casamentos, amor eterno.
Uma grua galgava o abismo, de braços abertos,
aos ombros, equilibrava a cidade de cordas de aço
retesadas pelos músculos do medo.
E eu, onde menos me esperava, aparecia a espreitar-te
como uma grua pesada se reconstruindo peça a peça.
dia de outono
Senhor: é tempo. O Verão foi muito longo.
Lança a tua sombra sobre os relógios de sol
e solta os ventos sobre as campinas.
Manda que os últimos frutos se arredondem,
dá-lhes inda dois dias mais meridionais,
leva-os à perfeição e faze entrar
a última doçura no vinho pesado.
Quem agora não tem casa, já não vai construí-la.
Quem agora está só, longo tempo o será.
Fará vigílias, e lerá, escreverá longas cartas
e vagueará, de cá para lá, nas alamedas,
agitado, quando o vento arrasta as folhas
[ Rilke; o livro das imagens; 1902 (P. Quintela)]
esquecimento
Como sombras em volta assim quero ver as pessoas dos dias que me reconhecem,
esquecer os pormenores de todos os rostos, de todos os braços, de todos os olhos
para perceber cada detalhe dos teus sorrisos magoados pelas minhas faltas medrosas
ou pelas presenças que são mais veladas ausências ou oscilações de desordem interior
projectadas como sombras no paredão de que me afasto até aos dezassete passos
de olhos vendados e gritar fogo! para o pelotão que anseia fuzilar-me por descuido.
Espero ser salvo do torpor da ferrugem, dobrar uma esquina corroída em salmoira.
Pormenorçamento
No fundamental, o orçamento do Partido Socialista é o orçamento dos partidos à direita e estes, garantido que está o seu orçamento, podem votar contra para afirmar-se como ainda mais radicais defensores dos interesses do grande capital e não desdenhando um ainda maior ataque aos papeis que cabem ao estado social moderno. Aliás, o melhor para os partidos da direita será ver o estado social exaurido e atacado por quem se reclame de esquerda.
Para cada ideia de sociedade e de estado, até mesmo para cada classe social ou para cada grande grupo de interesses, há um orçamento. Há muitos orçamentos na discussão de cada orçamento de estado. Para a esquerda, o orçamento baseado nas grandes obras públicas e no aprofundamento de todos as vias que conduziram o estado e o país até este buraco não pode ser aprovado. O orçamento do PS não aposta nas pessoas, na sua qualificação e no que sejam competências humanas em acção. Aposta antes em actos inaugurais de uma nova era de grandes obras e eventos para movimentar capitais no sentido do costume, do estado para os do costume, continuando a aprofundar o abismo entre os mais ricos e os mais pobres.
Este é o orçamento que nos permite sair da crise? - é a pergunta destes dias. Não sabemos responder. Para quem nunca esteve em crise, banca entre outros, o orçamento do PS ainda lhes garante mais umas coroas... e de louro, por terem visto subir os seus lucros aproveitando o presente da crise dos outros. Para o estado social, o orçamento vem dizer que a sua crise deve ser aprofundada. Os pobres e desfavorecidos, desempregados, etc irão ver as suas condições de vida prejudicadas porque é sobre a sua pobreza que um futuro radioso vai ser construído. Para esses, o orçamento vem aprofundar-lhes a crise do presente em nome de um futuro que lhes escapa.
Ao ler o orçamento, assalta-me uma curiosa comichão com o cuidado extremo posto nos artigos que se referem à Caixa Geral de Aposentações, com cuidadosas notas sobre inscrições dos titulares de cargos dirigentes. Quem fica a dever à Caixa? Certamente que não são os que descontaram toda a sua longa e normal vida activa e carreira retributiva! Finda a resistência ao cerco, imaginemos como vai ser o saque.
[o aveiro; 17/11/2005]
ensina-me a chorar
nem imaginas quanto, de lágrimas verdadeiras.
Deixa-me mergulhar em tuas mãos lavadeiras
e entranha-me do cheiro das tuas faltas de siso .
ciência prática
E, a respeito das praxes, ouvi (e li n'O Público de 7/11 ) o Ministro da Ciência afirmar que as escolas do ensino superior "não devem ser escolas de submissão e de iniciação a práticas fascistas" e que é "absolutamente contra aquilo que se designa, com algum humor sádico e machista, por praxes académicas, como se nos devêssemos rir disso". Acrescentava que essas praxes "são uma escola de falta de democracia e fascismo" e que "devia haver uma atitude de menos complacência por parte de todos, nas universidades e fora delas".
Sabemos bem como a Universidade tolera a actividade das hordas praxistas. E é intolerável essa atitude que acaba por legitimar a um certo nível as palhaçadas que, por vezes, acabam em verdadeiros crimes (sem culpados?). Afirmou o Ministro que é preciso "aplicar a lei e exigir o seu cumprimento dentro das universidades", que não se podem aceitar assédio e humilhações em sítio algum e que "não há paraísos para a humilhação ou para práticas fascistas" e que, se os houver, "esses paraísos não podem estar dentro do ensino superior". Mariano Gago afiança que irá tomar "o máximo de medidas que seja possível" e pede "que aqueles que sejam vítimas se queixem", pois ""se o não fizerem estarão a ser cúmplices dessa barbaridade".
Somos solidários com a revolta do Ministro e com as vítimas. Sem aceitar que haja patrocinadores para esta vida selvagem nem a cumplicidade das autoridades das academias e das cidades, tenho de lamentar que, para falar disto, seja preciso haver novas vítimas capazes da denúncia.
Não são públicas e notórias estas demonstrações dos velhíssimos veteranos da parvoíce juvenil? Um dia ainda vamos ser espantados pelo espancamento dos veteranos às mãos de jovens cansados de tanta humilhação e cansados do estado descansado.
[o aveiro; 10/11/2005]
mel
qualquer coisa nas gavetas; remexeu
no armário, nos bolsos dos casacos,
dos capotes e de cabeça e mãos
na cómoda tirou tudo para fora.
Virou do avesso até a cozinha.
Passava de um quarto para outro
sem me ligar.
Quando começou a revistar a minha cama
perguntei-lhe: que procuras?
Não sei. Primeiro procurava um prego,
a seguir um botão, depois queria fazer café
e agora preciso que me digas alguma coisa,
nem que seja uma tolice.
[cantèda vintitrè; mel;
tonino guerra, mário rui oliveira]
prova de vida
Fiz parte de um pequeno grupo que concebeu e discutiu com professores os programas de matemática. Há poucos processos que tenham merecido tantos debates como esse. Anos passados nesse trabalho e de reflexão sobre ele, podemos ver-nos reflectidos em parte nas opiniões que se fizeram ouvir, ver estabelecidas novas formas democráticas de autoria e autoridade.
Apesar da qualidade da discussão, reconhecemos que poucas vezes sentimos a necessidade do debate fora das multidões que aderem tecnicamente aos argumentos a favor e contra as decisões programáticas. Na falta de melhor participação cidadã, comparamos com o que foi antes de nós e aceitamos as limitações como sendo coisa inevitável.
Convencidos sobre a fatalidade das limitações e munidos com a arrogância de quem não espera aprender em discussões sobre as adaptações do geral a este ou aquele subsistema específico, aceitámos adequar programas gerais de ensino ao ensino recorrente, ao ensino profissional ou à educação e formação. Nem nós, nem outro além de nós se lembrou de ouvir uma ou outra comunidade sobre quaisquer aspectos da nossa acção.
Essa acção influencia a vida toda de muitas pessoas em cada comunidade. Não estranhei que toda a decisão fosse feita longe de todas as ribaltas de discussão pública.
Nem imaginava que podia ser de outro modo, até que me convidaram para moderador e provocador de um debate sobre educação e formação na Murtosa. No Centro Recreativo Murtoense, na sequência de outros encontros e debates sobre variados assuntos em espaços associativos, vi-me cercado de pessoas com projecto, interessadas em levantar pontos de vista sobre o ensino e sobre a formação como quem levanta pesos e o mundo em ombros, capazes de acrescentar cor local, sabedoria e experiência ao saber de teoria feito.
Ao surpreender-se a si mesma em vida comunitária, a vida não pára de nos surpreender e, se encontra fresta aberta, cria um ensinamento maior que o anunciado no gesto de toca a reunir. Bolos e cafés, sala com história, pessoas com memória. E boas falas.
[o aveiro; 3/11/2005]
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