contava-se a história da mulher que se deitava na relva molhada
para ter sonhos
até que um dia foi surpreendida pela doença
e lhe rogaram que se arrependesse para que um milagre pudesse dar-se
ao que ela respondeu que o milagre da sua vida tinha sido realizado
nos vinte anos passados como planta do jardim de sua casa
tão amorosamente regada como amorosamente regara a sua relva
tendo vivido assim como num sonho de sonhos de que valia a pena lembrar-se
pediram-lhe então que escrevesse os seus sonhos na vida que lhe restava
ao que ela respondeu que isso nunca tinha sido um sonho seu
e assim morreu
presa à sua terra por raízes verdadeiras
a cabeça baixa
adormecemos com a cabeça dobrada para trás como se equilibrássemos a barriga quando funambulamos
pelo lume da navalha esticado entre as orelhas de um abismo verdadeiro
por um fio de mar incendiado a seguir a um derrame de naufrágio de destroços humanos
pela aresta de vidro aguçada num acidente de esquina moída ou roída por dentro só pode ter sido que quem estava da rua a ver a montra não deu por nada
pela linha do horizonte que é a eternidade sempre desigual a si mesma para um e outro lado sem nome talvez variável ou incógnita não sabemos
pela linha das costas
pelo lume da navalha esticado entre as orelhas de um abismo verdadeiro
por um fio de mar incendiado a seguir a um derrame de naufrágio de destroços humanos
pela aresta de vidro aguçada num acidente de esquina moída ou roída por dentro só pode ter sido que quem estava da rua a ver a montra não deu por nada
pela linha do horizonte que é a eternidade sempre desigual a si mesma para um e outro lado sem nome talvez variável ou incógnita não sabemos
pela linha das costas
nêsperas de nogueira
ambone, ameixa amarela, ameixa americana, ameixa do canadá, ameixa do japão, ameixa japonesa, japona, japónia, magnólio, mónica, nêspero
nêspera?
contra o céu, nêsperas!
(n)esperanto. nesperando.
(d)esperanto. desesperando.
esperando.
nêspera?
contra o céu, nêsperas!
(n)esperanto. nesperando.
(d)esperanto. desesperando.
esperando.
há quem diga
há quem diga que a felicidade está ali muito perto, mais ao fundo, a menos de duas braçadas de fúria.
as lágrimas
nestes dias não sei se chove até
que os céus enxuguem os olhos ou até
que a terra sufoque afogada em martírio até
que os céus enxuguem os olhos ou até
que a terra sufoque afogada em martírio até
assim foi
A festa estava quase a acabar, quando o marquês anfitrião estremeceu. Todas as senhoras deram por isso e viraram-se todas, cada uma em busca da criança que deixara pendurada no bengaleiro. O marquês só muito raramente estremece, mas quando estremece e abre os seus olhos de porcelana antiga deixa fugir as meninas dos seus olhos pela casa em busca das suas educadoras de infância. Para brincar, simplesmente. Elas, as educadoras de infância contratadas para tomar conta das meninas dos seus olhos, começam a correr de um lado para o outro, protegendo dos sapatos das convidadas, as meninas dos olhos do marquês. E todas as senhoras sabem que as suas crianças, penduradas no bengaleiro, abandonadas pelas educadoras de infância, vão desatar num berreiro insuportável aos ouvidos do marquês. As damas desesperadas procuram as chapas identificadoras que lhes permitam levantar as crianças penduradas no bengaleiro. A orquestra de câmara ajuda à festa, desatando numa tocata desafinada mas concertante, ocidental, marcial, heróica. O cavalo do marquês levanta-se sobre as duas patas traseiras mostrando o que toda a gente sabe e canta a ária despejada no ar como uma noite de sons.
Quando acabar, o salão há-de estar vazio e as meninas dos olhos do marquês estarão adormecidas em seus berços de porcelana antiga. No chão brilhante, nem uma pegada do baile, nem um cabelo de peruca, nem uma liga. Uma chapa metálica oscila ainda em fim de queda precipitada, perto da grande porta de entrada e de saída. Até que o sapato ensonado do mestre de cerimónia pisa o som metálico contra o silêncio mais escuro.
Quando acabar, o salão há-de estar vazio e as meninas dos olhos do marquês estarão adormecidas em seus berços de porcelana antiga. No chão brilhante, nem uma pegada do baile, nem um cabelo de peruca, nem uma liga. Uma chapa metálica oscila ainda em fim de queda precipitada, perto da grande porta de entrada e de saída. Até que o sapato ensonado do mestre de cerimónia pisa o som metálico contra o silêncio mais escuro.
posa tus lábios
posa tus lábios en las cánulas como hace el dios que llora en tus armarios, el que habla entre uñas amarillas; silba en las cánulas del sufrimiento y, en la pureza de las horas vacías, recuerda la torunda de tu padre, la soledad de las palomas extraviadas en la eternidad,
libro del frío. aún. antonio gamoneda
libro del frío. aún. antonio gamoneda
lugar
fico mesmo por aqui.
sentado em frente da sé
peço a esmola da caridade alheia
a piedade de uma mão fria
contra a febre
ou a frescura da luz branca
na nave
ancorada
neste adro de sal lavado
de pedras comidas pela lixívia
ou pelas lágrimas dos que amam
a viagem por fazer
mesmo por aqui
me
finco
vara espetada
num abismo de lodo
sentado em frente da sé
peço a esmola da caridade alheia
a piedade de uma mão fria
contra a febre
ou a frescura da luz branca
na nave
ancorada
neste adro de sal lavado
de pedras comidas pela lixívia
ou pelas lágrimas dos que amam
a viagem por fazer
mesmo por aqui
me
finco
vara espetada
num abismo de lodo
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