Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caíu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.
tisana 17
Porque somos felizes?
Na minha vida de professor, isto acontece. Porque eu explico mal. Ou, mais frequentemente, porque os estudantes não querem saber como é que as coisas se fazem, como é que elas aparecem ou como é que escolhemos uma possibilidade entre várias. Também não querem muitas vezes saber porque é que a escolha convencional funciona. Basta-lhes que funcione para os efeitos que o professor desejar.
Em cada falhanço destas tentativas pedagógicas, apetece desistir. Mas nunca desisto, porque é possível que numa destas tentativas um estudante dê um salto para lado do processo do pensamento científico.
Os políticos todos pensam que o povo não quer saber dos processos, nem está apto a percebê-los. Pensam que o povo quer saber do que funciona ou não. Os políticos dizem ao povo o que pensam que ele quer ouvir, ainda que seja mentira. Desistiram tão radicalmente da verdade que dizem ao povo que os impostos vão descer (ainda que seja mentira) e enervam-se se os investidores e decisores europeus ouvirem o que foi dito ao povo em vez de lerem só a verdade que está escrita nos papéis onde a verdade se esconde da compreensão do povo.
De cada vez que há eleições, quase chegamos a pensar que estes políticos têm razão. De cada vez que falhamos com os estudantes, quase desistimos de explicar para impingir a receita.
Somos felizes, porque não desistimos.
[o aveiro; 11/11/2004]
nada me custa mais do que corrigir provas... de amor
procuro o certo e o errado ou o que escondes?
Eu não quero saber o que é certo ou o que é errado
nem quero virar o ar dos sons para vibrar por outro lado
Sou eu quem se desfaz em tinta vermelha verdadeira
chorando sangue sobre a tua resposta azul certeira
a não esperada
ou a não desejada
ou o contrário de tudo ... que é nada.
o homem que não aprendeu a nadar.
é ele quem o diz, quando olha para o tempo que passou, e diz também:
- só tenho pena de não ter aprendido a nadar. mas não tive iniciativa!
para continuar:
- de resto só tenho pena de ter tido a iniciativa para o resto das coisas da vida, de tal modo que não sei, por exemplo, se há alguém que goste de mim. nunca houve quem tomasse a iniciativa e me dissesse
- eu gosto de ti, desejo-te, amo-te!
ou coisa assim. sei agora, a olhar para trás que fui eu quem andou a insistir que é o mesmo que ter andado a mendigar amor, amizade, etc.
provavelmente ninguém gosta de mim e só conheço quem cedeu às minhas insistências para não ter de me aturar a tristeza e não ser capaz de me desprezar.
- só tenho pena de não ter aprendido a nadar!
é ele quem o diz.
e eu penso que ele o diz porque não precisa realmente de ter vontade para se afogar. basta deixar-se cair.
- estes anos já cá cantam!
é ele quem o diz, como se os dias e os anos tivessem caído do nada para nada.
Diz a lenda sobre Lîlavatî
Um dia Lîlavatî foi pedida em casamento por um jovem de Dravira, honesto, trabalhador e de boa casta. Fixou-se com grande júbilo a data da boda e marcou-se a hora no cilindro que tinha um pequeno orifício na base e estava aberto na sua parte superior. O cilindro introduzia-se num vaso cheio de água e o nível desta, enquanto subia, marcava as horas na sua superfície interior. No dia assinalado para a boda, Bhâskara colocou cuidadosamente o cilindro marcado no vaso cheio de água. Lîlavatî, curiosa, debruçou-se para espreitar a subida do nível de água e nesse momento uma pérola do seu colar caíu dentro sem que alguém desse por isso. Com tal má sorte que a pérola obstruíu o orifício e o dia passou sem que a hora da boda tivesse sido assinalada pelo nível da água. Assim se cumpriu o sortilégio e Lîlavatî ficou solteira para sempre.
Foi então que seu pai se propôs escrever um livro que sobrevivesse à desejada descendência da sua querida filha.
Lîlavatî, de Bhâskara, é o livro que sobreviveu a Lîlavatî.
Esta é a resposta atrasada ao comentário de André Carvalho sobre o problema 55 de Bhâskara que o André Moreira prontamente resolveu, cedendo ao romantismo histórico dos matemáticos.
eu não tenho gato
Eu não tenho gato, mas se o tivesse
quem lhe abriria a porta quando eu morresse?
[António Gedeão]
sob a pele
quando apenas a pele havemos convocado
mas quanto mais a pele a vemos sem disfarce
mais sob a pele apela o sangue amotinado
Quem nos faz de repente esta rampa temer
da cópula de um dia à cúpula do dia
Porque há-de sob o sangue a alma estremecer
se decretámos nós que ela não existia.
David Moura Ferreira
Porquinho da Índia
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-Índia.
Que dor de coração eu tinha
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
levava ele pra a sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não se importava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
- O meu porquinho-da-Índia foi a minha primeira namorada.
Manuel Bandeira.
Morro do Encanto
Falta a morte chegar... Ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que eu já morri quando o que eu fui morria.
Petrópolis, 21-12-1953
Manuel Bandeira: Nocturno do Morro do Encanto.
O pecado.
e eu transcrevo
Não sejamos hipócritas. A mais válida das razões para recusarmos a herança judaico-cristã é também a mais simples: a preguiça é um dos seus pecados mortais.
hoje.
Os dias depois do dia antes.
Ainda não sabemos. No momento em que escrevemos não sabemos. O Jorge ou o João? Qual deles será o próximo presidente dos Estados Unidos? Podemos tratá-los familiarmente assim em português e tudo. Afinal, as eleições para presidente dos EU são travadas em todos os cantos do mundo. Travadas é o termo certo, porque é de mais ou menos guerras que tratamos quando falamos das eleições do João e do Jorge.
Quando esta crónica sair impressa no jornal é possível que já se saiba. Ou que nada se saiba e se ande a contar e a recontar os votos para apurar o vencedor. Já foi assim quando o Jorge chegou a presidente pela primeira vez. E então também já se perderam e se encontraram votos onde menos eram esperados. Tal como está a acontecer agora.
A única verdadeira novidade é que estas eleições são tão globais que até Bin Laden, o inimigo mais chegado de Jorge (Bush), veio mostrar interesse e empenho nas eleições americanas. Só faltou dizer ao povo americano: votem no Jorge que é ele quem mais quer jogar comigo ao terror e ao jogo do mais - mais ricos de um lado, mais pobres cada vez mais pobres de outro.
Esta foi a semana antes.
[2. Voos domésticos.]
A meio do seu mandato para que tinha sido eleito, Durão virou as costas e foi para comissário a bordo do Europa. Para lá anda, com seu beicinho ?tem-te que não caias?. Depois de nos ter deixado, como presente envenenado, um projecto de primeiro ministro com um palmarés brilhante na passerelle dos presidentes modelos de câmara. De facto, ele, o Santana, passou ou passeou por duas câmaras de cidades cosmopolitas antes dele e ?altamente? depois dele. Ainda houve quem protestasse e tentasse convencer o nosso Jorge a não aceitar o presidente-modelo. Mas o nosso Jorge foi insensível aos protestos e nomeou Santana Lopes para que este formasse governo. Assim, sem passar por eleições, Santana chegou a primeiro ministro contra todas as previsões mas tendo a seu favor muitas pressões e muita vontade de entrar em qualquer jogo da glória. Até à semana passada, ainda era uma vergonha nossa, um problema domestico, quase privado,
Mas tudo mudou. Santana Lopes foi a Roma assinar a Constituição Europeia aparentemente em nome do governo e do povo português. Para a história, ficará a assinatura a ouro de Santana Lopes nas actas romanas. O Santana está nas alturas. E eu vou, de olhos no chão, assobiando pelas ruas da amargura a disfarçar, para que não me misturem com os farsantes vendilhões do templo de onde não são varridos pela história mal contada.
Resta-me escolher Não quando vier o referendo sobre a dita Constituição. Digo já. Não há qualquer conspiração nisto.
Esta foi a semana depois.
[o aveiro; 4/11/2004]
a garça que caminha
desajeitadamente reequilibrado com o bater das asas.
o boi tem olhos conformados ao corpo pachorrento.
uma tremura por dentro da pele macia avisa as asas da garça:
podemos caminhar juntos, voar é que não!
as ideias.
e as tormentas por que passo.
eu sou o navegador
que inventa o cabo e o dobra.
da tirania e da cobardia
Não resisto a transcrever, com a devida vénia:
"Grande Reportagem" de há duas semanas denunciava uma história de terror, dessas que se lêem e não se acredita. Ou melhor, não se quer acreditar. Um jovem - de nome Diogo - quartanista de Arquitectura fora praxado até à morte pelos colegas da Tuna Universitária a que pertencia. O caso a que João Cândido da Silva já se referiu, na sua última crónica, com o sugestivo subtítulo de "Javardos", passou-se em Portugal vai para três anos. Só agora, ultrapassado o doloroso luto, saltou para os jornais, denunciado pela família num justificado alerta contra essa coisa sinistra dos rituais praxistas que continuamos a fingir não ver. Rituais que já começam a invadir o próprio ensino secundário, onde exibem a mesma ou pior violência. Fica assim minada toda a formação da personalidade de gerações inteiras dos nossos miúdos.
A reportagem justificava o editorial de Joaquim Vieira "Cultura rasca". Contra ele escreve violentamente, na edição desta semana, uma jovem socióloga de 26 anos a frequentar o mestrado. Lemos e voltamos a não querer acreditar.
Em sua defesa, e dos da sua geração, a leitora começa por alertar para o seguinte: "os nossos valores são incutidos pela sociedade que foi por vós constituída". Embora o argumento seja lapalissiano só posso concordar e partilhar a culpa na parte que me toca. OK. Posso até concordar com o argumento seguinte: o que se passou não foi "praxe", foi sobretudo um "crime" que a Justiça com a inoperância habitual, exercida por várias gerações (e não por uma única geração como sustenta a jovem), foi incapaz de castigar. E isso é grave. Gravíssimo. Mas, logo a seguir, a mestranda tenta exibir a sua superioridade moral afirmando o seguinte: "Ao invés do Diogo, optei por me impor (sublinhado meu) e recusei participar nas praxes, sem nunca ser posta de parte. Limitei-me a aparecer nas aulas após o fecho das praxes, alegadamente por estar doente. No harm done diriam os ingleses".
Chegámos ao ponto. Posso até admitir que não tinha outra solução senão fugir para não enfrentar o gang acéfalo e maioritário. Nem sempre a fuga é pura cobardia, mas a fuga travestida de colaboracionismo, para gozar dos privilégios inerentes, só pode ter esse nome.
Para esta jovem, que se faz porta-voz de uma geração, "impor-se" resume-se à adopção do comportamento desprezível mas corriqueiro de apresentar atestado médico falso. Estamos entendidos! Fica explicada a tendência compulsiva para a doença falsa e fica-se a perceber melhor por que raio a nova geração de professores, em busca de colocação, pode subitamente surgir tão achacada.
Enfrentar o "sistema", mesmo o mais injusto, dá, no mínimo, muita chatice. Além disso, corre-se o risco de poder ficar à margem do rebanho, sem direito à festa, à borga, aos copos (lá se ia a companhia para as ponchas da Madeira que a jovem académica diz tanto apreciar). E claro, lá se iria também o traje.
Dizer "não", como a minha geração era useira e vezeira, pode sempre trazer problemas ao enfrentar a turba, recusar a humilhação, denunciar, não pactuar com o sistema de abuso abjecto dos mais fracos imposto por uma ordem absurda onde a "antiguidade" é um posto e a burrice assumida premiada na dupla categoria idiota dos "veteranos".
Na minha geração os que "optavam" assim tinham um nome: cobardes, como diriam os portugueses. "Cowards" na versão anglo-saxónica...
nota póstuma
Rui Bebiano escreveu em sous les pavés, la plage
{duas da manhã e uma r.e.m.-cantiga}
You're on your ear, the ocean's near
The light has started to fade
Your high is timed, you found the climb
It's hard to focus on more than what's in front of you
Electron Blue
Adventure rings with a page and
When it dawns on you,
It sings blue
Your buzz beginning to wane.
Não tem coisa alguma a ver com as canções do r.e.m. que o rui nos lembra; só tem a ver com a minha madrugada e não é mais do que uma prova de vida a nota póstuma que escrevi como comentário.
muda a hora. às duas de qual manhã?
às duas por três, numa catedral aberta,
visito mortalhas em fila de espera
e só ouço o silêncio frio
de um amigo que ressona
sem saber que morreu uma hora mais cedo.
Já agora também gostei muito de ler por lá, citado de cor, Robin Williams: O bom rebelde . No filme - O bom rebelde -, há uma cena magnífica sobre os matemáticos... e eu também costumo citar de cor, mas aqui tenho vergonha. Penso que se trata de perguntar num bar se alguém conhece Theodore Kaczynski. Ninguém conhece o matemático. Depois pergunta-se se alguém conhece o Unabomber. E ....
amalgamar.
Os meus outros laços com o Brasil estão todos feitos e dados nos arames em que trefilámos o aço da família inemigrada.
Javardos.
Javardos
"Diogo está esquecido no WC, junto aos lavatórios. As palavras saíam-lhe dos lábios, sem cor, em sussurros. Quando os olhos dele se enevoaram, como os de um afogado, alguém decidiu chamar a ambulância. No trajecto para o hospital, "Arrepio" ouve as versões dos outros sobre o que se teria passado: "Disseram-me que ele tinha sido praxado, que fizera umas 70 flexões. Pensei: 'Ele se calhar fez alguma e foi castigado.' Mas não liguei as coisas. Os mais velhos falavam de indigestão." Certo e seguro, porque há registos indesmentíveis, é a hora a que Diogo deu entrada no Hospital de Famalicão, a uns metros da universidade, em coma profundo. Eram exactamente 22h51."
Este é um dos detalhes da história trágica e repugnante de um homicídio impune levado a cabo na Universidade Lusíada de Famalicão e relatado pela revista "Grande Reportagem" numa das suas edições mais recentes. A história merece ser lida, sobretudo pelo retrato que dá de um mundo sinistro e mafioso que se esconde por detrás das tradições académicas e da instituição das tunas. Em poucas palavras, os factos indiciam que um jovem aluno de Arquitectura foi espancado até à morte, por razões tão ferozmente frívolas como a circunstância de aparentemente pretender abandonar a sua ligação à tuna daquele estabelecimento de ensino, vontade mal aceite, como se verificou, pelos sicários que integravam a hierarquia da organização.
A violência gratuita provocou uma morte absurda para a qual as autoridades policiais não conseguiram encontrar responsáveis que fossem levados perante os tribunais. E o principal obstáculo para o apuramento da verdade foi precisamente o facto de ninguém, entre os que presenciaram a arrepiante cena, se ter disposto a revelar aquilo que sabe, numa teia de cumplicidades destinada a encobrir um crime grave. Uma universidade é suposta ser um local em que os alunos completam a sua formação literária e humana e de onde sairão preparados para assumir plenamente os deveres, obrigações e direitos decorrentes da sua integração numa sociedade necessitada de quem ajude a zelar pelos valores essenciais que a enquadram. Mas há algo que parece falhar redondamente neste campo.
As tunas, com os seus rituais de praxe, são escolas adequadas para o desenvolvimento de um autoritarismo cobarde, onde vence a mentalidade sórdida dos medíocres, perante a passividade generalizada de quem tem sobre os ombros a tarefa de assegurar a boa qualidade do ambiente em que os estudantes vivem o seu quotidiano. O caso de Diogo será o mais trágico mas não é o único que testemunha os mais diversos géneros de humilhações impostos aos seus pares por tribos que, embora floresçam um pouco por tudo o que são instituições do ensino superior, parecem viver ainda orgulhosamente nos tempos dos homens das cavernas. Pergunta-se: será que ninguém, das reitorias ao Governo, será capaz de colocar um ponto final na livre actuação desta gente que pouco mais merece do que o epíteto de javardos.
Na minha mais que humilde opinião, e, com a sensação de impotência que me assalta no que a isto diz respeito (uma luta aparentemente ganha antes do 25 de Abril e depois perdida em pequenas derrotas todos os anos), proponho que se sentem nos bancos dos réus todos os reitores, professores e outros responsáveis (incluindo os administradores das cervejeiras) cúmplices do crime nas universidades e sejam acusados dos homicídios cometidos pelos javardos que muitas vezes chegam a patrocinar.
E faça-se justiça:
Sejam presos, de preferência em celas onde possam conviver intimamente com alguns desses javardos.
o engano do jorge
mas reconhecia o db como primeiro ministro do meu país.
não sendo eleito sequer para governar portugal, santana lopes pode assinar uma constituição europeia?
pode. por s.jorge!
em nome do pai
em nome de portugal e da europa, santana lopes assinou a constituição europeia.
Quad quartet
Assim, a sempre diferente eterna formação que ouvimos hoje - Soprano João Figueiredo, Alto Fernando Ramos, Tenor Henrique Portovedo e Barítono Romeu Costa - sob o nome Quad Quartet
atacou-nos com os clássicos Bozza e Desenclos (se é que há clássicos para saxofones) e com Carlos Paredes e Astor Piazzola.
Gosto do clássico dos clássicos Piazzola. O que haverá de mais clássico que uns tangos ao meu gosto?
Podem dizer-lhes que venham tocar tangos para a .... minha rua.
sobre o lado esquerdo
(...) o homem que não dorme pensa: «o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração».
Foi isto que escreveu o Carlos de Oliveira em sobre o lado esquerdo sob o título sobre o lado esquerdo. Tanto tempo a ler e a reler e sempre com a ideia de não ter encontrado. Deixei passar a noite e passeei de novo os olhos vigilantes pelo trabalho poético, já sem esperança. E li o que sempre li, mas... encontrando. Aqui deixo a exacta (ex)citação.
Lightenings
Não encontrei o que procurava, mas encontrei muitas outras coisas, a começar pelo Carlos de Oliveira.
Mas aqui deixo um reencontro com Seamus Heaney (na reescrita de Vasco Graça Moura) no que eu dele mais gosto (hoje):
VIII.
Dizem os anais: quando os monges de Clonmacnoise
estavam todos em prece no oratório
surgiu um barco no ar por cima deles.
A âncora desceu tão fundo que ficou presa
ao parapeito do altar e então, quando
o baloiçar do grande casco se imobilizou,
um dos tripulantes desceu agarrado à corda
e tentou libertá-la. Mas em vão. "Este homem não pode
aguentar a nossa vida aqui e vai afogar-se".
disse o abade, "a não ser que o ajudemos". Assim
fizeram, o barco solto partiu, e o homem lá trepou
para fora do maravilhoso mundo como o tinha conhecido.
asa delta
chamou-me pelo nome pronta para voar
e eu hesitei no teu decote o meu olhar
antes de ir com ela para o mais alto céu.
de tão longe ver-te como um ponto final,
quando tanto te desejei em cada pormenor,
não vejo pior
mal.
Perturbação de sentidos
2. Nada me perturba mais, hoje em dia, que a falta de encontro entre o ensino e a vizinhança no que ela tem de humano. Sou professor de Matemática, agora do ensino básico de jovens à volta dos 13 anos e é perturbador ver que eles procedem comigo como se eu não falasse do que é comum. Se eu lhes der um problema em palavras faladas para resolver, raramente procuram uma real solução (mesmo quando conseguem pensar sobre ele). Não tiram medidas quando é preciso, usam uns símbolos e umas figuras que ilustram a situação sem a representar seriamente, etc. Não sabem o que é um marco num terreno (vértice de um polígono), não olham a fracção da matemática como a da língua ordinária. As palavras da matemática básica são termos constituintes do português básico ? uma ou outra excepção não contrariam a regra. E as respostas que procuramos, usando matemática, são escritas em português básico com o apoio de figuras e operações adequadas, cujos resultados são precisos para argumentar a favor desta ou daquela solução. Difícil é convencê-los que a resolução de um problema básico e a resposta que derem, em português corrente, deve ser compreendida por toda a gente ou quase.
Ninguém passará a número ou a unidade estatística por minhas mãos de professor. Uma escola básica que fale de cada individuo e da sua (e nossa) realidade talvez forme e controle os políticos para que procurem soluções sociais sem deixarem de ter em conta as pessoas autênticas, individuais.
[o aveiro; 28/10/2004]
onde a blusa abre
os olhos matam a sede das mãos ansiosas
do alpinista trepando pelas encostas dos seios,
e, na planta riscada sobre a terra lavrada,
esse vale do ventre em que se levanta o desejo da arquitectura
para a possuída casa ancorada em estacas de vento e de ternura,
eu desenhei a vida inteira por viver e por mais nada
deixei cair pelo fio do prumo o olhar a pique
e, ecoando grave, em queda livre, a voz calei
ali onde a blusa começa e se entreabre
uma porta escancarada.
o dia mais que perfeito
a vila, deste lado ao de lá do monte onde a manhã dá à luz o sol,
os passos ligeiros da mulher mais bela do dia
escolhem maçãs bravas colhidas à árvore da madrugada.
ah! e eu for com ela de mãos dadas cedinho.
a demora
por ti.
se fores devagar, talvez possas
fazer-te companhia mais um pouco.
afinal vão ambos para o mesmo lado!
desde ontem, a viagem é assim mais lenta.
O pó sobre a cómoda
É um problema para o pais ficar desequilibrado assim cheio de braços direitos. O longo braço do poder é uma ameaça. O braço direito é uma desgraça. O braço direito delgado (que primou pela falta de pudor em defesa irracional do governo da guerra) passou a braço direito do governo na lusa e agora passa a braço direito executivo na Lusomundo (sem pré-aviso aos administradores que lá estavam). A palavra delgado que nomeia a pessoa é adjectivo que qualifica tanto a inteligência dos seus argumentos como a sua vergonha. Só não deve ser delgado o soldo de quem espera a defenestração mal mudem os ventos ou haja restauração da independência. Se há conspiração visível para o controle das coisas da comunicação social, ela é a dos braços direitos.
Esperam que nos habituemos aos seus braços direitos como nos habituamos a ácaros e ao pó da casa em obras. Aaaaaaaatchim! - é a inteligência a resistir.
[o aveiro; 21/10/2004]
X-acto.
mas houve um dia da vida comum em que deixámos de escrever nas paredes uns dos outros. não há memória do dia, mas esse dia passou em todas as máquinas como sendo o último dia, aquele em que uma mensagem marcada com o ferrete do X piscou como a última.
há quem diga que só podem ficar juntos os que gostam da mesma música ou os que partilham um modo de estar, um ponto de vista. X não respeitava essa regra e havia, por isso, muitos desencontros, silêncios e berros, como acontece nas famílias vulgares. a família X nunca chegou a ser extraordinária, manteve-se simplesmente ordinária.
não tendo havido separações de facto, basta que alguns saiam dos seus tugúrios de solidão, separação e silêncios [e amuos?] para que tropecem noutros ao desembocar na distracção do grande átrio, na sala de jantar, no ardor de uma batalha em campo aberto, num restaurante.
ficam de fora deste cenário os que são de longe e os que se mantiveram longe contra a vontade dos outros.
há os que foram para tão longe que não conseguimos deixar de os ver todos os dias.
esses só não contam na divisão da conta do almoço.
GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra)
GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra) : Revisitamos "31 de Janeiro de 2005" de entrada ligada a texto de setembro ...
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Nenhum de nós sabe quanto custa um abraço. Com gosto, pagamos todos os abraços solidários sem contarmos os tostões. Não regateamos o preço d...
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eu bem me disse que estava a ser parvo por pensar que só com os meus dentes chegavam para morder até o futuro e n...