eu vi como

Eu via como a minha avó puxava de dentro do avental
o lenço encardido e limpava a lágrima amarela
de qualquer criança arreliada por não voar

em vez de cair do muro alto.


Ainda hoje procuro ver as pregas do avental
no intento obscuro de perceber de onde saíam
penas, fios, canas e até a broa esfarelada

com que prendia pelo bico os animais alados.


Vejo-a agora afagando a ave no colo do avental
vendo que roubava verdadeiras penas para asas
do anjinho da família para a procissão

e esse anjinho só voava ao colo da imaginação

o avesso do direito

1.
Onde guardas o que ouves? Não pode ser na cabeça, que a cabeça não chega para tanto. Quando te pergunto o que me ouviste dizer-te um dia qualquer do passado, tu recitas palavra a palavra o que eu te disse. Ou assim me parece.
Ou guardas realmente o que eu disse em todos os dias da nossa vida e lês a memória das coisas que dissemos ou inventas o que eu podia ter dito e eu, falho de memória, aceito como muito plausíveis aquelas frases adequadas à circunstância e ao dia que, sem lembranças, rememoro por intermédio da tua memória ou da tua imaginação.
De qualquer modo, não podes guardar tudo na tua cabeça. Memória gravada ou ferramentas da imaginação de memórias não cabem. Ainda pensei que usavas uma competência qualquer para guardar a informação rarefeita e para a reorganizar instantaneamente sempre que dela precisavas, mas isso também ocuparia espaço que não sobra na tua pequena cabeça.

2.
Onde guardas o que sentes? Há quem pense que guardas no teu coração o que sentes, mas o teu coração não é mais que um músculo para cumprir rotinas de músculo - sístole e diástole - e alimentar em todos os sentidos a canalização do saco de sangue que tu és. Há quem pense que guardas as emoções dentro do teu peito, mas eu acho que não cabem no teu peito os disfarces para as alegrias e tristezas e para as dores que se derramam da nascente do pensamento que é exterior a tudo o que sejas tu.
Umas vezes estás cheio de alegria e não cabes em ti de contente.
E já te vi suar indignação na voz e a rebentar de fúria. Vi que as emoções que experimentaste não cabem em ti e vivem num lugar longínquo e inacessível. Há uma lista rabiscada que se enrodilha no bolso dos segredos.

3.
As tuas ilusões acordaram cansadas e nem tens força para juntar a voz da tua mão ao silêncio. E não podes senão escrever o silêncio de tempestade por te sentires obrigado a ouvir vociferar dirigentes de faca na liga e de federação do interesse privado em negócios milionários que viram interesse público e viram do avesso o estado de direito.
Já é mau saberes que existem. Horrível é saber que eles estão em toda a parte e até dizem o que pensam.

4.
Onde guardas o que calas? Para onde vais, quando o ar é irrespirável? Fechas os ouvidos ao que precisas de ouvir para não ouvir a boçalidade criminosa? Um vendaval de silêncio dissolve no oco as palavras que ouviste e não podes devolver.

[o aveiro; 7/9/2006]

as duas mãos

O homem deitou uns incensos numas brasas, separou o fumo com as duas mãos, e por essa abertura os prisioneiros saíram para um jardim.



(citado por Cristina Campo em Os imperdoáveis)

a feira

Polícias de três tipos - embuçados de metralhadora,
presos a cães ferozes
e desarmados à vista desarmada -
passam pelo arraial da feira como se fossem a calar a terra
e algemar ao chão da feira falsos nómadas

Porque é que ainda hoje tremo e me encolho
apanhado na rede de uma armadilha

tecida pelas mãos hábeis de um deus aclamado
como ditador sem que eu desse para o peditório.

a feira

Das feiras já não carrego porcos para criar
nem as vacas que pastam o caminho
para não saberem voltar atrás
dos donos tornados abandonos

Posso comprar tremoços mas ninguém espera
que eu tire do bolso o lenço de assoar novo e lavado
para os guardar antes de os meter na tromba
e escupir as cascas para a estratosfera!

a feira

Agora passeio na feira ao encontro da minha idolátrica:
num só quadro posso ter a santa maria adelaide de arcozelo
e a santa alexandrina de balazar; agora escrevem beata
num rigor que não conhecia à propaganda. E não fui capaz
de comprar o meu quadro porque tive medo de saber
como é pesado o caminho de regresso e nem ter casa do senhor
onde pendurar o meu retrato ao lado da escadaria do bom jesus,
do seu sagrado coração ao lado do coração de maria sua mãe
para todo o sempre expostos tão sem jeito e fora do peito

a morte do funcionário

deitado na banheira deixas que a o ar e a água trabalhem
os teus músculos ou são os teus músculos que batem
na água como quem bate num saco de pancada
enquanto adormeces e sonhas com as tuas dores

de dentes arreganhados por um descanso de quem não sabe
mais que descansar cansando-se entre viagens ao balneário
sabendo que automático é tanto o pagamento do salário
como a massagem que a médica acha que é a parte que te cabe

deste latifúndio.

o espectador resistente

o tempo não chega para tudo
a quem antes fosse surdo e mudo
e não conhecesse sáurios sobreviventes
no vale de lágrimas dos espíritos resistentes.


Sabe deus e alguns outros criadores
que prefiro ser um poeta desistente
a ser alguma coisa similar a valente combatente
de guerras entre editores, tradutores e tractores
ou, da tourada de merdas de vida, o inteligente.


E se ainda alguma coisa há que me arrelia
é ter acreditado e divulgado quem fica indecente
mais e mais a cada dia

instantâneo

na areia desenhas a nuvem

e pensas na chuva de agosto
que ao cair a desfaz



na areia desenhas a onda

e pensas nela a rebentar na praia
como onda que se desfaz

fresco

descem as mulheres e as crianças uma rua inteira e os homens descem também como se fossem para o outro lado vestidos com fatos de cerimónia e tanto faz que a cerimónia seja um funeral como um casamento

somos nós os que espreitamos o quadro vendo do lado de fora o baptizado e a boda e somos nós quem os vê separados quando parecem mais unidos que nunca nas sombras que se formam nas paredes que bordejam a rua

a folha da árvore desce lá de cima do nosso quintal e vai festejar o baptizado do outro lado da rua distraindo o cão que deixa de ladrar para brincar com a grande folha que é o acaso a pedir silêncio

passo por ali - boa tarde boa tarde - espreitam-me do pátio em frente as mesas carregadas de bolos e percebo que guardo alguma inveja por ter perdido a oportunidade de um baptizado que nos reconciliasse com a aldeia

guardo alguma inveja por saber que há oportunidades que não são nossas e é por isso que me vejo a reter pormenores que lhes escapam enquanto festejam um pormenor que nos escapa

cessar fogo

E agora? O que fazemos? - perguntou a criança, levantando os olhos para o pai. O pai pareceu distraído por uns largos momentos, como se não tivesse ouvido nem visto os olhos do filho inquieto. Também para mim, não foi claro que os olhos da criança não se fixassem numa nuvem muito acima da cabeça do pai e, por instantes, perguntei-me se a pergunta não teria sido feita a alguém mais acima, a alguém mais poderoso que o pai. Porque as circunstâncias são de tal forma que não nos permitem a veleidade de acreditarmos no poder humano das pessoas simples em decidir a sua vida com os seus.

Voltamos para casa! - respondeu o pai, sem hesitação, mas minutos passados sobre a pergunta. Soube que a mulher tinha ouvido, quando a vi movimentar o seu quadril gigantesco e puxar para si uma toalha colorida. Rapidamente, vi um grande embrulho feito; grande, para ser a vida inteira, e pequeno, para caber na bacia que o homem vai amarrar na grade que se vê sobre aquele automóvel azul empoeirado.

Para casa? - enquanto solta a pergunta, a criança está a lembrar-se do pátio pequeno onde até há um mês atrás brincava. Percebo que está a ter memória da casa pelo sorriso que lhe vejo nos olhos.

O homem tem os olhos semicerrados, como se tentasse ver muito longe dali, onde está e finca o seu pé direito sobre o pneu careca. A mulher está a ajeitar o seu corpo volumoso dentro do carro. Ela sabe que ele deseja ver a casa e teme ver escombros. Ela sabe que ainda falta acertar no caminho, fazer andar aquele carro azul empoeirado por estradas que já o não são, esperar um milagre em cada ponte destruída,... comer todo o pó de uma viagem que chegaram a pensar nem ter regresso.

A mulher redonda olha o rosto do seu homem, tisnado da inclemência do sol e chupado por rugas, fundas fronteiras entre vales de lágrimas, cólera ou ódio. À mulher não interessa encontrar a casa. Ela espera encontrar o seu lugar, reconhecer um cheiro, ver um trapo perdido, ... esperar os outros que hão-de voltar ao lugar.

Sentimos o que ela pensa: Talvez a casa já nem exista. Mas o lugar existe e saberemos que o encontrámos quando cada milímetro de chão for reconhecido por quem volta. Se um vizinho levanta um calhau e, do meio dos destroços levanta uma franja da sua vida, eu sei que posso sentar-me uns metros ao lado. Em meu lugar. Não preciso de mais para descansar e para que o meu filho recomece uma brincadeira interrompida pelo meu medo.

[o aveiro; 17/08/2006]

afelitos



já lá está a escada, mas continuam afelitos.

feriado em f

Por entre os dias que passam, descortinar um feriado e ficar indiferente é obra.

a manta de cinza

cobre-me a manta de cinza o sono inconsciente
para não ouvir a manhã chegar e ela não chega
nem parte

embora o vento sopre mais que um fôlego
e os pulmões da terra ardam para um último esforço:

o alento do cavalo quando chega ao sítio
onde cair morto encontra um prado
incendiado por um cavaleiro armado até aos dentes
cerrados pela ansiedade numa glória vã.

de casa

Saímos de casa mesmo quando tudo o desaconselha e não há necessidade premente que o exija. Saímos de casa para saber se o ar livre se mantém respirável.

Do outro lado de uma rua qualquer aqui perto, levanta-se do chão uma chama que tenta elevar-se sem o conseguir. Uma nuvem de cinza eleva-se acima da chama e dela dá notícia aos céus.

Sobre cada mesa de cada casa a nuvem de cinza cai lentamente e toma o lugar das toalhas. Entra nas casas quando se desfaz em chuva miudinha de pó e toma o lugar dos tapetes e do chão. Não olhamos para os telhados.

O sol deixa que a sua luz seja coada do que ela tem de bom. Os olhos não descansam e não descansam as impressões das mãos deixadas mas toalhas de poeira ainda mole, maleável, impressionável e ... instável.

abençoado frio da paz

A minha casca de verão protegia-me do calor abrasador que fazia lá fora e de que ouvia falar. Parece-me que vivi numa bolha de frescura por uns dias.

Fazia umas curtas surtidas fora da casca durante o dia para procurar o jornal diário e um ou outro olhar humano. E, enquanto bebia um café, escrevia umas frases curtas em pequenas folhas de papel de embrulho e, de soslaio, olhava as fotografias dos dias incendiados. Fazia surtidas mais longas fora da casca quando a noite caía e se libertava o ar da fresco da noite por força do apagamento do sol inclemente.

Uma dessas noites tornou-se mais fresca quando a dona do café da aldeia puxou da cadeira e se sentou para conversar sobre a vida que tinha sido dantes. A vida que ela contava passava-se com pobres sem agasalho, seus pés descalços em inverno frios e longos. Chegávamos a sentir o ar gelado do passado a passar pela esplanada e vímo-la, aos 12 anos, a passar no caminho de lama com a ?giga? cheia com os tachos do comer que ela transportava à cabeça para os operários que trabalhavam nas fábricas dos lugares vizinhos.

Será que procuramos outros tempos e outros acontecimentos porque nos sentimos cercados pelos incêndios?

Notícias da guerra mediterrânica não fazem mais que aumentar o calor destes dias e abafar a minha vontade de compreender. Há alguém que ordena que se bombardeie o ar quente e se exalta a ver as núvens de fogo e de poeira que se levanta dos escombros. Cada vez mais rápidas e urgentes as bombas partem de um e outro lado antes que a humanidade argumente tão fortemente que não seja possível continuar de um e outro lado. Esta guerra tem qualquer coisa de encenação de espectáculo irracional, nem clássico nem moderno, que obedece a marcações sem ter marcações nem limites, como se fosse uma dança infinita que começou noutro tempo e quer continuar porque só pode ser interrompida noutro tempo, no porvir.

Vejo pessoas desfocadas pela turbação que o ar quente provoca. Tanto lá como cá, na terra queimada.

E foi assim, incapaz de compreender, que me deixei chegar a este dia em que dentro da casca está tão quente como fora dela. E a vida se torna insuportável se perdermos a esperança de uma aragem fresca que assobie e da chuva miudinha que faça renascer um bosque onde agora sobra cinza e pó.

[o aveiro; 10/08/2006]

quem cuida de

dentro de um turbilhão de que inventaram os pormenores
as crianças cuidam de mim de ti e de todos os que vierem
entretanto

prepara-te para a dança ainda que não possas e para as dores
de que não gostas

e prepara-te para a falta que vais sentir quando as crianças
forem embora e a paz voltar fora de ti enquanto
por dentro da cabeça explodem bombas e os estilhaços
matam um ou outro dos teus pensamentos diplomatas.

aldeia a...gosto

Sermpre contrariado, quando Agosto ataca, sou enviado para fora do meu lugar. Dizem-me que sou enviado para descanso de férias. Só que isso acontece sempre um pouco cedo demais e sou perseguido por pequenas coisas que foram sendo adiadas e são agora inadiáveis e por compromissos inevitáveis que foram assumidos para setembro e pensados agora. Começo por resisitir a todas as mudanças até desistir de lutar contra o invevitável, pensando que o computador e as comunicações funcionam. Sei que as férias não são para descansar o corpo, já que me canso só a ver as pessoas que andam daqui para ali e fazem projectos para bulir mais longe. Descansam o espírito, ao que me dizem. Talvez haja alguma coisa de pacífico e saudável nessa tentativa de estar mais tempo com a família e a fazer coisas diferentes. Também não me repugna acreditar nas pessoas que garantem lucrar com a mudança de ambiente - da cidade para as aldeias ou da montanha para a beira do mar. E tenho uma sincera inveja das pessoas, de tal modo organizadas, que ficam completamente livres no dia 1 de Agosto estando cheias de trabalho no dia 31 de Julho.
Pego em meia dúzia de coisas e deixo-me levar para uma casa de aldeia. Agora, tão perto que a casa do costume fica a menos de uma hora, mas tão longe que não possa atar lá o fio dos dias. O telefone da aldeia não vai resolver o problema do correio electrónico: nem recebo mais que os cabeçalhos e remetentes das mensagens e enviar este texto ameaça tanto o computador como o rural aparelho de telefone. A aldeia já é vila e revela-se num animado bar nocturno e num cemitério enorme. São muitos os que vivem neste dormitório do Porto, sem que da aldeia conheçam mais que as ruas por onde saem nas visitas de fim de semana à família.
No jornal da terra, vi uma fotografia de sacos de lixo a esmo em torno de um "ecoponto". Não há contentor de lixo comum à vista. A legenda da fotografia condena a falta de civismo dos moradores e não condena a câmara municipal que, sem cuidar das suas obrigações, atrai gente para dormir nos andares da aldeia. Nesta aldeia cheia de gente e de carros, não há passeios para os peões, não há contentores para o lixo dos "sem terra" nem há recolha de lixo todos os dias. Há ecopontos. Há lixos vários que não são para o ecoponto. Há lixo em algumas cabeças.
Aldeia por ainda não ser vila. Vila por já não ser aldeia. Canseira!

[o aveiro; 3/8/2006]

por alguns dias, ... adeus

é tão lenta a entrada neste mundo por este telefone de aldeia que melhor teria sido nem tentar.
o mais provável é que não volte a entrar por aqui.
o mais provável é que desapareça.

as grades

caminho pela manhã da avenida 25 de abril. habitualmente passo pelas grades do fechado portão central da escola e sigo em frente para entrar dois catetos adiante pelo portão lateral. ao passar, sinto-me preso na avenida. depois de entrar, sinto-me preso na escola. breves instantes estes em que sou preso dentro e fora.
mas hoje, há uma porta aberta no portão central da escola e eu esgueiro-me livre. e, por momentos, sinto-me e sento-me livre. sob a grande copa que me abrigava da chuva, vejo as baforadas do meu cachimbo de um tempo antigo em que estranho estranho era não dar esses sinais de fumo antes de entrar.

a guerra pela janela

Pela rasgada janela da televisão, os olhos abertos de um cadáver parecem fixar-me. Nada do que o morto possa ser me aflige. O que me aflige é o vivo que ele foi ontem sem saber que ia morrer. Contra ele se levantaram os que quiseram matá-lo sem quererem saber quem ele era e sem cuidarem de saber quem ele viria a ser. O soldado que disparou a morte vai morrer algum tempo depois e não pode saber se matou uma esperança de paz duradoura. Não pode saber se quem acaba de matar não seria aquele que amaria perdidamente por toda a vida e já lhe falta. E pensa, para acalmar a culpa e remorsos de não saber, que o mais natural é ser um dano colateral acrescentado a tantos outros de que já não há conta nem medida. Os mortos não me incomodam.

Na última década, as guerras mataram milhões de crianças. É o que dizemos para fingirmos que não foram homens, tão civilizados e industrializados fabricantes e vendedores de armamento, os que assassinaram as crianças e as esperanças que elas podiam ser. Mais no Líbano que em Israel, crianças jazem destroçadas. Os assassinados não me comovem.

Comove-me a pergunta, a dúvida que leio nos lábios fechados do soldado que ainda vive. Sem saber quando vai morrer, sabe da sua fé na vida além da morte e sabe da mesma fé no coração do corpo abatido pela fúria do seu disparo. Ainda vivo, o jovem soldado treme por acreditar que do lado de lá vai ser apresentado aos que matou sem conhecer e sem odiar. Do outro lado do tempo, em que acreditam encontrar-se todos perante quem tudo sabe, no julgamento em que comparecem todas as vítimas olhando os carrascos nos olhos. O soldado já prepara a sua defesa e clamará então que não fez mais que cumprir ordens. Se lhe disserem então que matou o seu messias ainda este era uma criança a experimentar a sua humanidade, ele dirá um silêncio espantado. De outra das suas vítimas, a que era mulher destinada a amá-lo, após o dia do juízo, o crente soldado vê-a sem ser visto e sabe que foi ele quem a cegou.

Não me incomodam os mortos nem os lugares onde jazem mortos. Incomodam-me os destroços vivos, os agentes da morte, os fabricantes de destroços capazes de imaginarem a sua própria vitória sobre a vida.

[o aveiro; 27/07/2006]

sentidos



eles passavam por mim e eu passava por eles

em sentidos contrários
enquanto procurávamos o mesmo sentido

e sabendo que nunca nos reconheceremos
se acaso algum dia nos encontrarmos no lugar certo
por acaso

ao compasso marcado
pelo rufar de um tambor continuamos em frente
até nos perdermos de vista

amanhã

Em tempo de guerra, há frases soltas que deflagram como bombas à minha volta.
Estamos a fazer todos os esforços para evitar baixas civis. Todos sabemos como é difícil bombardear áreas densamente povoadas. Acabar com os bombardeamentos é o objectivo da diplomacia. Os terroristas aproveitaram um incidente em território palestino para provocar o estado de Israel e os israelitas aproveitaram o momento para cortar as vias libanesas usadas pelos terroristas, bem como para destruir todos os incómodos que vivem no Líbano.
Ouço e parecem-me de outro mundo cada palavra e cada sorriso dos diplomatas, em suas reuniões cercadas por escombros e mortos.
Em tempo de guerra, olho para todas as vítimas e fico à espera de ver os poderosos a olhar pelas pessoas todas e, de tal modo, que lhes seja inaceitável que qualquer pessoa passe a vítima pela via do terror e da guerra. Vejo-os carregar com seus dois pesos e suas duas medidas sem nunca sagrarem cada vida humana. Eles olham os mortos nos olhos fazendo deles nós de um bordado quando tecem considerações sobre o conflito regional, ou quando anunciam subidas e descidas do preço do barril de petróleo nas grandes praças do mundo civilizado dos banqueiros. Em tempo de guerra, olho-os mais pelo prisma do veto que do voto e algumas referências da democracia deixam de ser referências. Os poderosos que vetam resoluções das nações unidas e apelam à contenção reúnem-se aos que usam o poder para aperaltar biquinhos transatlânticos em convívios mais ou menos (g)astronómicas no nosso mundo em guerra. Os poderosos andam feitos e em festa uns com os outros. Já nem percebem que os seus jogos de salão fazem estremecer o salão. E ouço as traças que mastigam os fatos dos poderosos quando eles fazem de traças do mundo.
E ouço generais que parecem comentadores e comentadores que parecem marechais a falar de mortos como peças de um xadrez qualquer. Pensam eles que sempre que aumenta o número de mortos, diminui a probabilidade de lhes caber a morte em sorte. E descuidam as defesas contra a estupidez que tudo come e consome.
Parece-me que todas as partes conspiram para evitar a paz. Uma diplomata israelita disse que quando salvamos uma alma, salvamos o mundo. Há alguém a pensar em salvar uma alma?


[o aveiro; 20/07/2006]

futebol brasileiro

Um time de futebol ganhou 8 jogos mais do que perdeu e empatou 3 jogos menos do que ganhou, em 31 partidas jogadas. Quantas partidas o time venceu?

O futebol brasileiro tem destas coisas: até aparece na olimpíadas brasileiras de matemática. Quem pode não gostar?

... e subir


descer


conselho



da última reunião do conselho pedagógico, o último postal:

um último conselho pedagógico? não dou.

entrelinhas no espelho



como se o que foi voltasse a ser e ao contrário.

devoto

faz o sinal da cruz

na areia da praia
como regos por onde a água brinque,

faz o sinal da cruz

na testa
e sente-o como festa do amante,


faz o sinal da cruz

coa naifa na tua mão esquerda
pra ser estigma chato com'á merda,

faz o sinal da cruz

no teu peito
para compensar a foice e o martelo tatuados nas costas,


faz o sinal da cruz

nas tuas calças
para seres uma viola no enterro,

faz o sinal da cruz

branca na t-shirt preta
e pequeníssima para que te paguem o salário de padre,

faz o sinal da cruz

no elástico das cuecas
para as poderes reclamar por um bom motivo.

faz o sinal da cruz

sobre a boca
para ninguém te ouvir dizer que estás vivo,

faz o sinal da cruz

na toalha do restaurante
enquanto esperas o bife,

faz o sinal da cruz

no céu azul
com as asas do desejo enquanto voas,


faz o sinal da cruz

em todos os lugares
do labirinto em que te queres perder


faz o sinal da cruz

para lembrar à tua mãe
que te sabes benzer,

faz o sinal da cruz

como parte de penitência
sobre o pecado que mais queres,

faz o sinal da cruz

porque te vais arrepender
amanhã do bem que te soube hoje,

(...)

faz o sinal da cruz
no boletim de voto.

galáxias

(...)











no meio das hidrângeas
a cobra
do sono.

(...)


l. pignatelli. galáxias.lisboa:1973

apeadeiro

sem que eu dê por isso
tu levantas-te da sombra
fingindo que és uma sombra
uma pálida sombra do que és

dizes que vais buscar-me
onde eu estiver

e eu fico aqui sem jeito
para ficar

partindo sem partir

S. D.


Não deixo que mais ninguém dispute estas lágrimas
Sei que morreste mas não reconheço a tua morte
Para mim não caíste nem foste para o hospital
Apenas flutuas a meio das escadas como num sonho

São apenas minhas estas silenciosas lágrimas
Que o meu inglês não traduz nem consegue traduzir
Fico com os discos e fotocopio os teus poemas
Para serem discutidos na aula e é tudo

É uma liturgia muito banal mas é minha
Não tenho outra maneira de te dizer adeus
Agora que enches de música outros territórios
Agora que alimentas uma grande saudade.



[J. Carmo Francisco; Iniciais. 1980]

o milagre de antón fernán

Antón Fernán vem a Portugal duas vezes por ano. O resto dos dias passa-os por cá, mas é como se cá não morasse. Nos celebrados momentos da visita de Antón Fernán ao nosso país, ouvimos uma frase de circunstância que ele prepara antecipadamente para ser comida como entrada. Embora possamos jurar que ouvimos as palavras de Antón Fernán, a verdade é que elas nunca foram ditas. Não por serem impronunciáveis ou indizíveis, mas por serem inaudíveis acima do silêncio sobre a visita de Antón Fernán, infinitamente mais sossegada que a visita de qualquer outro português que dê à costa.
Também é verdade que ninguém sabe muito sobre a nacionalidade de Antón e há mesmo alguma confusão a respeito da atribuição desta ou daquela nacionalidade a um cidadão da Península Ibérica. Se há quem diga que ele é catalão, outros dizem que descende de um vilão fenício dado à costa durante uma viagem marítima efectuada entre os dois pólos que, por culpa dos achatamentos polares, ficou menos celebrada que o extraordinário cruzeiro de Fernán de Magalhães, essa outra celebridade entre os ibero-mundanos.
Há mesmo quem insista que Antón é galego, talvez mesmo português. Quem tal pensa, não sabe explicar porquê. Muitos pormenores de todos os dias aumentam para o dobro a dificuldade em aceitá-lo como português. Numa das suas últimas visitas a Portugal, país de onde raramente saiu, hesitámos em propor-lhe que aceitasse a nacionalidade portuguesa honorária. A hesitação acabou por vencer e salvámo-nos da vergonha de o ver sujeito a responder sobre a linha sucessória dos vice-reis da Índia e dos cognomes atribuídos aos infantes da nossa sétima dinastia constitucional e à vergonha de não conhecer os nomes de família dos heróis que, no regresso das batalhas entre os teutões, muito justamente se batem pela isenção do imposto sobre os prémios, condecorações e lucros da venda de bandeiras.
Para cada trabalho de verificação patriótica, havia um juíz a preparar-se para o pior e para o melhor. Conta-se mesmo à boca pequena que havia quem estivesse a decorar os versos da septuagésima estrofe da Portuguesa para atirar à cara de Antón Fernán, quando ele, reconhecendo humildemente a falta dos saberes requeridos, se dissesse pronto a recitar a tabuada, uma estrofe d'Os Lusíadas ou d'Os 12 de Inglaterra.
E nem um pontapé? Inaceitável! - disseram-lhe. Na gramática? Posso tentar? - perguntou ele.

[o aveiro;13/07/2006]

desenharam, logo existe



os estudantes desenham e eu não me canso de lembrar como desenham bem.
© Escola José Estêvão

desenho, logo existo.


todos os dias

abro a caixa de correio
e dói tanto
não encontrar as tuas linhas

das mãos que ninguém sabe quanto
as quero minhas

mas está bem assim que já receio

encontrar o meu desejo
despedido com um bocejo

ou pior ainda... com um beijo

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