Feio, António

Vi-te na televisão tantas vezes as piadas escolhidas as palavras escolhidas as mais difíceis das vezes no linguajar que podia ser-te estranho construído para o boneco mas que vestias cuidadosamente como se calçasses uma luva daquelas que parecem a pele e deixam ver a pele através da pele plástica da luva.
E vi-te de relance encostado a esquinas de apoio a jovens equipas de actores e dramaturgos que te escolheram ou escolheste. Encenador de cenas perturbadoras em que  se contavam pelos dedos as piadas das visões mais trágicas e mais cómicas que a vida é sempre as duas coisas. E vi-te de pé lá atrás feito um sorriso triste no lançamento de um livro de jovens actores e dramaturgos como se fosses alguém a passar por ali e não tivesses ido de lisboa ao porto mostrar-te ou iluminar um canto da sala. Bom dia, boa tarde, um aperto de mão - a vida que passa devagar para termos tempo de olhar uns para os outros ou de olhar uns pelos outros sem lhes tirarmos o protagonismo próprio, sem lhes matarmos a sede e sem os matarmos à sede. A vida que passa depressa, bom dia, boa tarde e a minha irmãe que até fez os figurinos para umas visões de antónio feio e isso pode ficar como coisa de família, um acontecimento tão importante como os que definem pessoas vulgares e reais que vagueiam pela vida necessária, pública e apagada. Feio? Não, não! Muito bonito mesmo. E feliz como um sorriso verdadeiro, um detalhe vermelho num cartaz de cal viva.

perder telefones

perder um telefone móvel é perder telefones.  de vez em quando penso "vou telefonar-lhe".  e procuro  nome e número para nada encontrar. ficaram presos num cartão qualquer de um telemóvel estragado que se perdeu naquela viagem ao algarve.
quando perderei a memória das vozes dos números perdidos?

barragem

desengano(...)

Pensando e falando sobre a vida que queríamos levar, a vida passa sem nos darmos conta. Por isso é mais importante o que fazemos do que o que pensamos que queremos fazer. (...)

Joan Margarit, A Casa da Misericórdia. OVNI


a vida

A vida não persegue o cão que ladra,
nem esfola os gatos em que tropeça:
Uma mão que não seja a mão de deus
de nada serve quando se trata de matar.

Um ministro pode dar ordem de marcha
a um exército inteiro de escravos sem soldo:
Mas todos sabemos que a culpa do ministro
vai ser carregada em ombros por cada soldado.

Todos pagamos as dívidas por saldar  ou saldadas
russas também pagamos um pouco cada um não custa:
E  ministros feitos banqueiros sussurram bem alto
que pelo bem que fizeram bem merecem  a sua sorte

assobiando a medo

Assobiava como se o canto
de nenhum outro modo pudesse ouvir

a palavra como  um sopro entaramelado
só assim tem mais que um sentido
e tem o sentido
sentido.

Quando lhe perguntavam para quê assobiar
se podia falar
o velho contava a história em que era proibido
assobiar

contar essa história de memória
é pensar o que não pudera fazer antes

assobiando a medo.

as pessoas nas coisas

a fábrica

o tempo da decisão

Há muito tempo que não uso relógio
de bolso e de pulso também não
mas vou coleccionando relógios baratos
máquinas  elementares tão perecíveis
quanto o são as pilhas de origem.

Ao lado da cama, relógios parados
e marcando horas diferentes
tornam-se montras estáticas

das horas em que fui abandonado
por cada uma das pilhas.

O tempo que passou
nunca foi para aqui chamado.

Só sei que por escrever a palavra tempo
repetidamente
me vai aparecer um anúncio
de .
ou outro conforme instruções à máquina.

Algum algoritmo e não o acaso 
nem o fado dita a escolha.

Acaso  o que escrevo será fado. 


a mágoa

quando não me responde
é porque se esconde

e eu, ... sem saber onde
procurar

uma mágoa que se esconde
sem deixar de magoar

Empilhando lenha

O homem costuma recolher do bosque
os troncos caídos com a tempestade.
Empilha-os nas traseiras da casa.
De cada um recorda
o que o fez cair e onde o recolheu.
Nas noites frias, a contemplar as chamas,
vai queimando o que resta do que ama.



Joan Margarit. A casa da misericórdia. (trad. Rita Custódio e e Àlex Tarradellas). Ovni. 2010.

cada vez que

1
cada vez que o ministro das finanças
vai ao confesso da europa
dar de barato as nossas esperanças

aquela tropa

diz-lhe que o tuga vai no bom caminho
mas na volta  inda antes da desgraçada notícia
já eles estão a duvidar e com jeitinho
recomendam mais aperto e se precisa! mais polícia

2
e por cá quem sempre defendeu a flexibilidade
das leis laborais
coisas finas  de social-mediocricidade
diz agora que a crise não deixa esperar mais

ao menos durante a crise! clamam lá do altar
enquanto ensaiam mais uma volta ao  garrote
ao povo tire-se pão e água qu'inda lhe sobra o ar
há sempre quem esteja pior! não é esse o mote?

3
o teixeira de todos os santos anticonstitucionaliza
manda para o prego da crise as leis e o direito
que vencerá a crise quem antinacionaliza e privatiza!
- pró prego já e  a desbarato tudo o que estiver a jeito

quem dá mais? um patrão feito rico pela flexibilidade
compra e mostra o seu estadão com retrete  e catedral
comprará muçulmanos, cristianos,  igrejas e até a caridade
se fará fundação espírito santo  onde antes houve nome portugal


4
e a gente?

mais submarino
enquanto parece que tudo aguenta
menos submarino
quando passar para as mãos o pelo da venta

será de repente?

diário

um dia destes, mais tarde ou mais cedo(?),
arrumo os meus papéis

[que os há aos montes em volta do computador
o nada da promessa  de ser
sendo em vez dos papéis]

e vou dactilografar um livro de poemas resignados
bastantes para acender uma fogueira
e aquecer as mãos no inferno

até que estas fiquem prontas como garras
capazes dos versos mais ferozes

gravados em lâminas de facas voadoras
prontas a abrir livros antigos que ficaram por ler

e, bem afiadas pelo uso, prontas a degolar
o temporal que  falta
da montureira do tempo já visitado

nem lembra ao diacho

e já nem te lembras da reunião onde

de quem te lembras, ...?

... quando tentas lembrar-te de alguém em especial. E se não comparece à 
chamada dos dedos?
Não te amofines. Se não é quem tu pensas, é alguém que começa então...
a existir.

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