a vida que nem conhecemos


A dona palmira e o legista amigo do velho que lia jornais

Quando O velho partiu, já tinha posto as leituras daquele dia em dia. Sentado no sofá com o jornal sobre os joelhos, o velho dormia como habitualmente. Dona Palmira disse, como sempre diz: "Bem, está tudo arrumado! Vou andando! Até amanhã!" E foi-se para a sua vida, sem ter ouvido uma palavra do velho. Como sempre, o velho quedava-se mudo e quedo perante a loquacidade de Dona Palmira e ela já se tinha habituado e até tinha moderado as conversas e a cantoria enquanto trabalhava nas manhãs do velho leitor de jornais. O médico legista havia de dizer no dia seguinte (com a Dona Palmira ouvir) que o velho tinha partido antes dela sair no dia anterior e que, sim!, lhe parecia que o seu velho amigo tinha posto as leituras daquele dia em dia porque devia ter sido a última página do jornal de há duas semanas a dar-lhe a volta às tripas.

como se desenha um quadrado andando

sei bem como se forma um quadrado com pessoas
usei-as em quadrado como santo e condestável
usou em batalha contra os castelhanos sei bem

como podemos avançar, recuar ou rodar sem desfazer
o quadrado e basta-nos ajoelhar para não ser mais
que um cubo de escudos metálicos a brilhar ao sol

e como podemos parecer uma só carapaça sem cabeças

sei bem que o medo é impotente num combate travado
quando olhamos os inimigos de dentro do quadrado

cada um sentindo os nós que o prendem a outros dois
sentindo como é impossível qualquer debandada

que não seja uma pequena corrida para a morte

um mais um não são dois nem um


da varanda à nuvem, um passo

adormece

adormece, adormece, esquece quem quer que seja
não é preciso ouvir todos os ruídos da casa nem
avaliar o valor das jóias que não tiveste nem tens
nem rever o filme da tua vida nem há quem o reveja

tudo fizeste para que de ti nada sobrasse nem pó
que as cinza já as espalhaste em vida numa vinha
logo tu que já nem és nem deixas mulher sozinha
e não sendo de boa cepa nem queimado és o pó

da terra que não te quer e do ar que te não respira
só te resta adormecer sem querer saber ver ouvir
escutas de ti mesmo e só conjugas o verbo tossir
tens ainda presa em ti a morte quando a vida expira

para além do teu pesadelo inventado: vida e festa
de ti da tua morte da tua vida nada nem rasto resta

talvez ainda um dia alguém refugiado do inferno
te use sem saber de ti para aquecer-se no inverno

escola


nesta eternidade de buracos nas nossas ruas e de pavimentos instáveis, a água e a lama facilmente voam e nos atingem lançadas pelos carros passando. hoje, bastou-me caminhar descontraído passeio fora para, numa passada simples acordar a água e a lama sob uma placa do passeio e ver como ela se atira às nelas de qualquer peão.
água e lama do caminho

icosaedro mergulhado na escuridão

a vida ao lado

Um conhecido meu, vizinho aqui no bairro, interpela-me desabrido: "Eles agora têm uma pressa danada para despejar as pessoas e ninguém faz nada! agora despejaram a família de uma mulher quando ela estava internada em Coimbra com a leucemia de que morreu passados uns dias. Só um se interessou pelos pobres e acabou com as barracas e era do cds... Agora estes são o que se vê. O que é que faz o bloco de esquerda afinal? an an an an...." Quando ele me deu uma folga, disse-lhe: "Oh, homem denuncie na imprensa, reclame para a câmara e para a junta. Você que conhece o caso e acha errado, reclame! Informe os outros partidos também! O BE não despejou ninguém, muito menos doentes, se calhar nem sabem disso." Ele voltou à carga: "Não vale a pena reclamar para os partidos nem para a câmara nem para a junta são todos uns f..... Também não serve de nada reclamar prós jornais! Eu pergunto é: o que é que vocês fazem?" Ainda lhe disse: "Eu podia fazer o mesmo que você já devia ter feito se sabe do que está a falar! Mas posso ajudá-lo se me der informações sobre o que aconteceu, os nomes das pessoas, quando é que aconteceu, .... Faça isso!" Em jeito de fim de conversa, ele rematou: "Pois é o que vou fazer!" Na segunda feira, ao lado da Junta de Freguesia, aconteceu esta altercação de rua. Segunda, Terça, Quarta, Quinta.... e nada. Já não é a primeira vez que me faz isto. Da outra vez foi sobre os corte de água a velhinhas solitárias em prédios do bairro. Eu sei que acontecem casos como os que ele me conta em abstracto. A câmara e a junta talvez saibam em concreto. Não sei se o meu vizinho sabe.

a vida antes

Antes de se levantar, ele dá um beijo em cada mulher e em cada filho que ainda dorme naquela cama enorme que é a sala coberta de colchões improvisados. Com cuidado, para que ninguém acorde. Quando se levanta do seu lugar de cama, vai à cozinha, ali mesmo ao lado, comer a côdea e falar em voz baixa à mulher que se levanta antes dele e lhe prepara um café silencioso e a lancheira de uns restos que ela sempre consegue subtrair à fome da manada. Ela conta-lhe as duas ou três coisa que vale a pena contar e que não o entristecem mais do que a vida que tem. Não clama e não reclama. Ele diz "até logo" e ela segue-o até à porta para evitar que a porta ao bater acorde as crianças. Ele e ela sabem que quem dorme não tem a mesma fome que eles sentem por estarem acordados ainda é noite.

a vida

Ele levanta-se sempre muito cedo. Ainda antes de mergulhar a sua sede ma manteiga derretida do pequeno almoço, levanta os olhos para o tecto e suspira. Ali, mesmo ao lado, do outro lado de um tabique, o seu vizinho também se levanta e, ainda antes de começar a tossir e a assobiar para que toda a casa (a dele e a dos outros) fique acordada e enojada, ele tem tempo para se espreguiçar e tentar um enorme bocejo. Saem simultaneamente das suas casas como se tivessem combinado. Para uma varanda colectiva, onde trocarão de papéis: ele boceja e o seu vizinho suspira. Estão agora prontos para ir até á fábrica onde trabalham lado a lado. Nunca trocaram uma palavra que se saiba. Ao fim do dia, regressam a suas casas simultaneamente. É assim todos os dias.

saltar o muro

um dia em que te demoraste distraída
na porta de entrada
abri para  ti  
uma porta de saída



e nunca mais te vi.

Volto a Aveiro por um bocadinho.





Eu vivo em Aveiro, entre Santiago e Santo André. De vez em quando,  salto até terras de Santo Amaro que por lá tenho irmãe. Também visito S. Cristôvão a acompanhar uma sua devota que comigo partilha a chave de uma casa.Visito os lugares e nunca os seus santos.  Visito árvores. Visito estátuas. Visito bibliotecas.

Quando me dá para visitar o lugar onde vivo sobe-me o sangue à cabeça. E rogo aos meus santos que, em podendo, filmem com seus olhos de ver a deus as ruas mais e menos esburacadas e para os passeios que não existem e para os passeios que existem. E munidos das mais belas imagens da minha vida, projectem em face de autarcas a memória do que viram.

Ouçam como gritam no seu júbilo:  Vimos, ouvimos e lemos. E não podemos ignorar o milagre! Como foi possível nunca termos visto tão magníficos buracos nas nossas ruas? E ouçam as suas promessas: Se nunca por essa ruas passámos,  até elas vamos! E gritaremos, como grita a neta deste santo, ao ritmo caótico dos saltos pneumáticos do carro: Estrada maluca carro maroto! E saltem e soltem as suas gargalhadas  tais como as infantis gargalhadas da santa joana quando viaja entre a chave e o mário sacramento.

Gostar de viver em Aveiro não nos faz esquecer  que somos governados localmente por planeadores e chefes  infantis que acreditam em milagres e só abrem os olhos por milagre e se comprazem com os buracos e a sua opacidade entres os mais opacos.


De qualquer modo, tenho de congratular o tino e  as crianças que brincam nas câmaras de ar pelo calcetamento de um passeio sem par na rua que homenageia um autarca enquanto descemos para um hotel de luxo que dá para uma lagoa abandonada à sua sorte de criada pelo deus da extração de barro de há cem anos. Tudo ali mesmo ao pé da Câmara, do Centro Cultural, etc ...  Ajoelhei-me a rogar a Santa Luzia que os ajude a ver através dos opacos vidros fumados e das pálpebras coladas pelo rimel e pela ramela. Talvez baste abrir janelas. Sei lá.

O ano foi salvo pelas pedrinhas de um bocadinho do meu caminho daqui até  à estação dos caminhos de ferro. Qualquer que seja o caminho que tome, imaginar o que devia ser o caminho… até dói. Está melhor, mas  só um bocadinho.

moldura e família


DN, Fernanda Câncio: as mulheres não choram

Esta semana, Passos foi objeto de capa de uma revista dita cor-de-rosa, a qual anunciava "uma investigação" sobre o seu primeiro casamento, titulando: "O Pedro é que fazia tudo em casa e tratava das filhas." À partida, esta revelação (verdadeira ou falsa pouco importa) pode parecer contraditória com o que o mesmo Passos disse esta semana para justificar a proposta da coligação de majorar a pensão das mulheres com base no número da prole: "As mulheres é que têm filhos." Não é. O que a capa da revista diz é que Passos, coitado, teve de tomar conta das crianças (ser pai, portanto) porque a mulher não fazia o seu papel; alguma vez se faria capa com uma mulher que toma conta dos filhos? Claro que não, como também esta semana explicou Portas: "As mulheres sabem que têm de organizar a casa e pagar as contas a dias certos, pensar nos mais velhos e cuidar dos mais novos." As mulheres sabem o seu lugar, acham Portas e Passos. E se não souberem, eles lembram.

E aparentemente, pelo menos no que aos seus partidos e área política respeita, têm razão. É certo que temos hoje mulheres em lugares onde nunca as tínhamos tido - uma presidente da Assembleia da República, uma procuradora-geral da República, uma ministra da Administração Interna, uma secretária de Estado da Defesa. E uma ministra das Finanças (a segunda da democracia) todo-poderosa, terceira figura do governo que não raro parece a primeira. Isso é bom: é bom ter mulheres em altos lugares de representação. Mas para representar o quê, se quando um PM e seu vice reduzem a mulher ao estereótipo de fada do lar e parideira nem um ai se ouve das supostas poderosas?

"Quando andávamos na faculdade, eu a Maria Luís [a ministra das Finanças] costumávamos dizer uma à outra: "Uma mulher não chora"." A frase é da dirigente do PSD Teresa Leal Coelho, apontada como pertencendo ao círculo mais próximo de Passos, numa reportagem sobre feminismo publicada há um ano no DN. Assumindo-se como feminista e permitindo concluir que a colega de faculdade Maria Luís também o será, Leal Coelho prosseguia: "Tem de haver uma militância muito ativa. Não podemos deixar passar nada, nenhum preconceito discriminatório sobre a matéria. Nestes três anos em que estive no Parlamento, ouvi muitas vezes "lá vem a conversa das mulheres". Ora isto não é "uma conversa de mulheres", é de civilização. Mas há sempre esta pressão, "cala-te". Quando defendemos estas questões de uma forma mais assertiva surgem logo as qualificações de "histérica", "desequilibrada", "obcecada". Quando não é pior. As mentalidades só se alteram com chatas." Não queria ser chata, mas não posso deixar passar isto: não ouvi nada a Teresa Leal Coelho ou a Maria Luís Albuquerque sobre o que Passos e Portas disseram. Não sendo possível que concordem, resta concluir que para elas os princípios da igualdade e dignidade das mulheres - a sua própria, portanto - não valem afinal a chatice. Às vezes, mais valeria chorar.



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Quem recusará "snifar" o seu pai?

Keith Richards: as filhas podem snifar as suas cinzas PÚBLICO 11/09/2015 - 10:55 O músico dos Rolling Stones diz que elas podem fazer o mesmo que fez com o pai. Keith Richards com a mulher Patti Hansen esta semana em Londres REUTERS 0 TÓPICOS Música Rolling Stones Keith Richards não resistiu novamente ao humor negro, desta vez numa conversa com o jornal britânico Daily Mirror: as filhas podem snifá-lo depois de morto. O guitarrista dos Rolling Stones está a promover o seu próximo álbum a solo (o terceiro), Crosseyed Heart, que sairá a 18 de Setembro, juntamente com um documentário da Netflix intitulado Under the Influence, e lembrou a polémica de 2007 em que disse que tinha cheirado as cinzas do pai. Cinco anos após a morte do pai, Bert, contou que tinha misturado as suas cinzas com cocaína e inalado. "A coisa mais estranha que já tentei cheirar? O meu pai", disse Richards. "Eu snifei o meu pai. Ele foi cremado e não resisti a pulverizá-lo com uma snifadela", disse na época ao jornalista musical Mark Beaumont da revista NME, acrescentando que o pai não se teria importado. Depois da história ter corrido mundo, disse que era apenas uma brincadeira para ilustrar a proximidade com o pai. Mais tarde, em 2010, esclareceu que tinha espalhado a maioria das cinzas à volta de um carvalho. Agora, voltou à história. "Eu dou-lhes uma palhinha", referindo-se aos canudos para inalar o pó que deixaria às filhas e que as autorizava a cheirá-lo. O músico, que tem quatro filhas e um filho (não é claro poque é que ele não foi incluído nesta forma original de luto...), tem uma longa história de adicção com drogas duras, que abandonou em 2006 depois de um problema de saúde.

GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra)

GEOMETRIA : A curva do ingénuo revisitado (geogebra) : Revisitamos "31 de Janeiro de 2005" de entrada ligada a texto de setembro ...