Assuntos de Família - Cena 2 -


"Assuntos de família".................... em 3 cenas (?)
Como mensagem em 02/08/2000 para os X
- (reencontrado agora que o frio aperta)-
tento lembrar-me, localizar-me e compreender-me nesse tempo



[ 02/08/2000 ]

(…) A lua começa a levantar-se sobre o abismo que é afinal para onde todos os miradouros dão. A mulher mantém-se impávida. Os homens calam-se.


Não cai o pano. Levanta-se a neblina gelada. A luz da lua torna-se forte, embora branca. Os homens começam a tirar os casacos. E ouve-se um reboliço alegre de mulheres a aproximar-se

[Cena 2]

O cenário é o mesmo. Mas há um projector de luz branca crua e forte a desenhar uma lua e uma dispersão de luzes amarelas fracas(?) que devem dar uma sensação de calor. Os dois homens mantêm-se como homens, mas imóveis. Já sem os casacos ou sobretudos sentam-se no banco do miradouro agora seco e quente ou quase isso.

Entram duas mulheres jovens falando animadamente que se vão aproximar do modelo (manequim?) nu que ali tem estado a fingir de atenta mulher nua.
Têm um ar alegre e vestem roupas frescas (quase transparentes que contrastam vivamente com os fatos pretos, camisas brancas e gravatas (ou laços) escuras dos homens.
Continuam todos (homens e muolheres) sem nome e sem face completamente definida.
A luz deve recortar e não deve esclarecer os detalhes dos rostos (as mulheres podem apresentar máscara em que os olhos e os lábios podem ser mesmo traços violentos de azul ou vermelho vivo para os lábios podem ser mesmo traços violentos de azul ou vermelhos vivo para os lábios). Poderá esclarecer detalhes das roupas dos homens (sem detalhe nelas mesmas) e das mulheres (com excesso de detalhes nos adereços).


Quando entram no palco, acalmam-se:


  • Não sei se foi boa ideia.
  • Reproduzir este quadro a três dimensões foi a melhor ideia que até agora tivemos. Já viste quantas pessoas vêm ver esta reconstituição da atmosfera, da paisagem do quadro?
  • De facto, quase ninguém liga ao resto do museu. E para este lugar até tivemos de construir uma plateia. Agora já há pessoas que vêm repetidamente..
E vêm de longe.
  • Não achas que podíamos mudar o quadro?
  • Fazer reconstituições de outros quadros? Talvez isto se possa quase transformar num teatro, sendo os argumentos quadros ou grupos escultóricos conhecidos...
  • Mas então fazíamso quadros vivos?
  • Não os actores mais baratos ainda continuam a ser os manequins. E, para o que queremos, os manequins são os únicos actores possíveis
  • Os adereços e as luzes já vão dar trabalho que chegue
  • O fenómeno do público para este quadro é mesmo fantástico. Dois homens vestidos, sentados, de casaco na mão e uma mulher de pé nua é uma ideia perfeitamente estúpida. Mas funcionou na pintura e agora funciona aqui.
  • E vai funcionar ainda quando fizermos a exposição de fotografias tiradas a este ambiente. A fotógrafa está a fazer um trabalho brilhante - cenas do conjunto, cenas dos basbaques do público, detalhes do quadro…
  • Até talvez dê mais do que uma exposição
  • Encontrámos uma saída para a estupidez da terra. O pintor passou a vida a pintar autênticas obras primas e ninguém lhe ligou. Gastava em tintas e telas o que precisava para comer.
  • Ninguém lhe comprou uma obra só que fosse. Só quando morreu é que decidiram que a terra tinha obras primas dignas de um museu. E ergueram o museu… quase agradecidos por ele nunca ter sido feliz.
  • Agora que temos o museu das obras primas da terra, já não há quem seja capaz de uma nova obra prima e temos de ir animando as velhas.
  • Eles não deixam de olhar para nós quando vimos para dentro da cena.
  • Pensam que nós somos personagens animadas do quadro.

As primas abraçam-se. E assim ficam em cena.

Ouve-se uma voz off: O museu fecha dentro de cinco minutos

O pano cai.
[Fim da cena 2]
  • Assuntos de família - Cena 1-


    "Assuntos de família".................... em 3 cenas (?)
    Como mensagem em 01/082000 para os X
    - (reencontrado agora que o frio aperta)-
    tento lembrar-me, localizar-me e compreender-me nesse tempo



    [ 01/08/2000 ]



    [Cena 1]

    Já é tarde e os bancos de pedra do miradouro estão húmidos e gelados. Os dois homens, viradas as costas para o vento, as golas levantadas e as mãos nos bolsos, falam alto. Não se atropelam nas falas, mas nenhum deles deixa de falar na primeira vírgula do outro. Uma mulher nua de pé e olhar absorto na linha dos monte de onde o vento frio vem, que aparenta uma calma isenta do frio que se pressente neles, escuta com uma atenção tão vigilante que mais parece ser ela um ponto para o diálogo dos dois homens que lhe viram as costas.

  • Nas pinturas acontece isso: Os homens estão bem agasalhados e as mulheres estão sempre nuas ou quase…
  • Também já me aconteceu ver uma fotografia de neblina gelada em que há dois homens de sobretudo e uma mulher jovem e bela prarticamente nua que os escuta…
  • Os homens têm frio…
  • Não deve ser só isso que provoca tais representações Talvez seja uma ideia sobre as muolheres que nunca têm frio. Talvez o esforço ou o exercício constante que fazem para manter a elegancia lhes aqueça o corpo ou lhes engane a mente…
  • Não sei…
  • Sei eu. A muolher que nos vigia também está nua e não mostra sinais de frio…
  • Podíamos virar-nos para ela e perguntar-lhe…
  • Podíamos…
  • Durante alguns momentos, os homens calam-se. A mulher parece preparar-se para voar dali, caso eles se virem para ela. quando a hesitação acaba, as personagens não se mexeram.

    • Não vale a pena virarmo-nos para a pergunta.
    • Tem razão. Se nos virássemos, concluiriamos que ela não existe. Ela não é mais do que uma imaginação do nosso poder.
    • Mas o poder dos homens imagina realmente
    • Sim estamos a vê-la mesm o que ela lá não esteja e vimo-la, melhor assim, sem defeito. E de qualquer modo, teríamos de ser nós a responder às nossas perguntas.
    • Não achas que ela podia responder com vantagem?
    • Claro que podia. Mas nós não queremos as respostas dela, pois não?
    • Se a imaginarmos, podemos criar uma mulher e os seus pensamentos, quando descrevemos a mulher e os seus pensamentos anrtes observada minuciosamente. Tem so assim um modelo, uma abstracção do facto em vez do facto ou, o que é o mesmo, podemos ter um mundo de factos vestidos num só fato
    • Essa minúcia na descrição da realidade é que é a ciência?
    • Não só a descrição interessa. É trabalho da língua bem formada o desenho das qualidades que as coisas são em vez das próprias coisas
    • Mas isso não é arte?
    • Não, não é. Passaríamos a artistas se fossemos capazes de desenhar a ideia fisicamente ou escukpíssemos uma coisa como respresentação física da ideia de mulher. A arte é eficaz. Arte seria também, claro, conseguirmos que um actor fosse a ideia em vez de ser ele mesmo.
    • Pelo que disseste atrás, o fazedor de moda é um cientsta.
    • Mais que isso. Ele cria não só o modelo da realidade, como impõe um modelo de desejo…
    • … para quem deseja e para quem quer ser desejado…
    • … e para isso, têm de ser artistas… ou ter artistas ao seu serviço… para desenhar e construir fisicamente muitas vezes não mais que a nudez de um outroa artista a que chamam modelo e que é o desejo, uma personagem em vez de ser ele mesmo.
    • Mas é cientista, porque de alguma forma interpreta senão a realidade ao menos alguma coisa que vai ser real pelas suas mãos. De certo modo, ele observa os fenómenos, interpreta-os, descobre a lei e, sonho dos sonhos de poder, não só prevê a realidade do futuro, como tem a presunção de a influenciar…
    • É, por isso que esses cientistas são tão internos ao sistema. De certa forma, eles desviam os sonhos para uma realidade futura de que dão os contornos antecipadamente nos seus … modelos prescritivos. São cientistas que ajudam a conformar, pelo menos em algumas coisas.
    • Outros farão o mesmo serviço para outras áreas…
    • Exactamente,
    • Mas não vamos falar dos casos concretos dos cientistas servidores dos sistemas. Essa é a chatice do nosso caso.
    • O caso mais interessante é o dos arquitectos. Em espcial, as vanguardas que não só constroem novas paisagens, como por via das suas obras arquitectónicas podem prescrever o fim das funções clássicas e humanas para as casas, equipamentos e utensílios e obrigar mudanças de comportamentos que são moldados para os novos equipamentos. Por exemplo, um arquitecto importante pode projectar uma igreja para a tornar numa babel de tal forma que a vantagem do oficiante não seja reproduzida inteligível por via das deformações - reverberaçõess sonoras? - ecos, etc. É claro que ao poder da igreja ou das igrejas e à sua perpetuação também serve a ininteligibilidade. Ainda me lembro das missas em latim na minha aldeia de camponeses iletrados. E, por isso, não posso saber se uma igreja ininteligível não será uma igreja mais verdadeira no que a palavra e a instituição têm de pior.
    • Também pode construir os bancos e ocupar de tal modo o espaço da nave central que os fiéis não se podem ajoelhar ou rojar-se sobre a terra
    • Ninguém sabe se isso é bom ou mau. Depende do ponto de vista. Se eu não concordar com a função tracdicional na igreja, louvo a coragem (ou a inépcia) do arquitecto. Se achar que as coisas devem ser para o que os públicos gostariam de manter, ataco a obra e o arquitecto. No entanto, a possibilidade de uma obra arrsa velhas necessidades e pode tentder a criar novas necessidades. Mesmo quando há rupturas aparentes, o sistema pode descansar - a mudança é provocada pela eficacidade da arte, por um objecto… e não pelas ideias.
    • Quer dizer que a mudança dos comportamentos provocada pela intermediação das coisas (mesmo que passem a sradas coisas) nunca é perigosa.
    • É mais ou menos isso. Perigosas são as ideias que não precisam da ciência nem da arte. A sua eficacidade tem a alma no caótico e nada é mais dramático para um sistema do qeu a falta de um suporte físico construído e a falta de controle e previsão.
    • Deixemos os arquitectos em paz. O que nos pode interessar é a arquitectura. E dessa é impossível falar.

    A lua começa a levantar-se sobre o abismo que é afinal para onde todos os miradouros dão. A mulher mantém-se impávida. Os homens calam-se.

    Não cai o pano. Levanta-se a neblina gelada. A luz da lua torna-se forte, embora branca. Os homens começam a tirar os casacos. E ouve-se um reboliço alegre de mulheres a aproximar-se.




    [Fim da cena 1]

    o que a cor do tempo fez...

    A cor do tempo que faz

    Ainda se lembrava da cor do seu tempo. Quando nos encontrávamos acidentalmente ele soltava a língua para me dizer o mesmo de sempre: sei muito bem a cor do meu tempo.<(p>

    Eu não sabia como continuar uma conversa que assim começava mas não me ia embora sem dizer alguma frase de circunstância para dentro, muito baixinho dentro da minha cabeça para ninguém ouvir. A minha avó tinha dito para eu dizer isso quando me visse a braços com um encontro  das palavras sei muito bem a cor do meu tempo.  Também me disse que não movesse a boca ao dizer,  mesmo que fosse muito baixinho,   alguma frase de circunstância,  e eu assim fazia sempre para não ser mal interpretado que, acrescentava a minha avó, era preciso que não se ouvisse o que eu pudesse dizer.

    Um dia, sem precisar de apoio para a coragem de falar em alta voz, em resposta à frase sei muito bem a cor do meu tempo informei-o calmamente morreu a minha avó que penso ter conhecido por saber como ela o considerava e o conhecia muito bem a ponto de ser ela quem me ensinou a ouvi-lo sem lhe dirigir qualquer palavra que se ouvisse quando  lhe respondesse.
    E ele respondeu: sei muito bem a cor do meu tempo.

    O vermelho do meu sangue

    E neste ano, para agradar à falecida avó e aos reis magros e frugais, deparou-se com a obrigação de ser o que nasce para morrer pouco depois na cruz prevista para a sua morte. E, só tarde, percebeu que estava metido em trabalhos tais como ser chamado em cada ano  para representar o que nasce. Em resposta a um murmúrio da multidão que se juntara para a missa do galo e, já preso na cruz, ele gritou em voz baixa Se é bom?  Para mim será bom ver outro aqui no próximo ano o que levantou o galhofar da multidão até às lágrimas de tanto rir. Na festa da quaresma, porque não se fala de outra coisa, até as crianças sabem bem que é sempre o mesmo a gramar com os espirros da vaca, o frio do ninho de  natal e os pregos da cruz até à páscoa em cada ano. 

    Só ao neto da falecida avó é que nunca disseram que ela tinha deixado uma boa maquia para garantir que, após a sua morte, em cada ano, na sua terra, o seu neto fará a tempo inteiro as vezes do cristo todo o tempo  desde o natal à páscoa.E todos os anos até à grande final no ano em que o seu amigo Judas trinque a última daquelas trinta moedas que a sua avó queria ver trincadas, uma por ano, que ganhara ao jogo de resistir a pôr no prego.

    A coroa de espinhos

    Não é muito raro uma mulher  ser enfeitada ou enjeitada. E é mais raro ainda encontrar uma mulher que não use ou não tenha usado uma coroa de espinhos, pelo menos uma vez na vida. Para que os homens da vida de uma mulher sejam considerados porcos espinhos têm de dar a saber serem capazes de morrer em vida  por amor enquanto brincam com as suas vítimas ao fura orelhas  ou narinas em troca de brincos pendentes, escravas, anéis e colares de ouro. As suas vítimas são as vítimas mais amorosas que amantes e mais arranhadas que amadas.

    Quando isso acontece pela aldeia na quaresma de toda a gente, não há quem estranhe as feridas fáceis e faciais da vizinha sempre que esta sai a passear de braço dado com o seu namorado ou esposo e vai  enfeitada com a coroa de espinhos de um porco espinho, como um véu de quem não pode andar de cabeça ao léu.

    memória de momentos

    Ainda eu não tinha os dentes todos

    ainda eu não tinha os dentes todos
    e já comia a dureza dos teus ossos
    com vagar arrastando um grão pelos lodos
    neles enterrados os pés que são nossos




                ,
                
                

    ... as escrituras

    Fernando J. Pereira - 1989

    As máquinas úteis são as máquinas que funcionam

    O pintor pintou as cores tal como elas são antes dos desmaios. Foram elas que montaram os cavalos e vestiram os excessivos homens-
    Pompeia esticou a corda que vai de um olho ao ouvido de Pompeia. Para ela se iça um belo acrobata. Quando Pompeia aplaude, distrai.  E o acrobata cai numa poça de sangue  do coração de Pompeia.
    Pompeia desata a corda de olho ao ouvido, desmontar o seu circo e espera que o vulcão de tanto amor faça uma estátua com futuro.

    Não há outras cores.

    O mesmo pintor tem duas vidas:  a de olhar e ver e a de devolver o olhar: Uma não condiz com o olhar do Fernando. A outra é a secreta gaveta  da mesa em cruz da sua sagrada paixão. Aos pés da cruz, ela a cor virgem e mãe solteira das cores.
    São as cores que vestem o dorso das máquinas e ferramentas. Um mecanismo de relógio veste-se para bater em retirada deste tempo de chuva  que apodrece o azul da noite. A cabeleira molhada do pincel azul abriga-se e pinta  de azul de água as paredes da oficina.
    Vêem-se girar os grandes rodízios. Os rodízios amam e temem as correias de transmissão não se sabe de que roda motriz.
    Aquecem os rodízios. À sua volta há cores quentes. A correia, o cabo e o tubo passam pelo banho de azul da noite para não arderem. As lâmpadas e também os faróis e também o dia têm ombros de porcelana e aparecem suavemente voando do lado de fora para dentro de fora. A noite voa contra a luz e o Fernando esconde-se. Quando há paredes para romper vêem-se os pés rosados do Fernando. Quando  as paredes ocupam todo o espaço e pode acontecer, vê-se o homem levitando. Quando o dia se esquece dos homens, o azul escuro ocupa todo o espaço e pode acontecer que uma lâmpada cante no chuveiro, por um instante, antes de se fundir com a noite.

    Olhei para as máquinas. Têm ferrugem.
    Uma mão de homem, um pincel espetado nos tímpanos da noite e um cantor lancinante da lâmpada suicida completam o quadro. Os quadros dos temporais.

    Posso garantir que quando olhei para ver vi que as máquinas funcionam e que se ouve a música  voando por sobre o barulho das  roldanas que puxam a noite para dentro do homem.

    Gosto dos milagres do Fernando. Pompeia fê-lo acrobata. Aqui se expõe na corda esticada entre os dois mastros  -  pincéis varrendo o céu.


    Ao mestre pintor Fernando J. Pereira para a Exposição de pintura na Galeria  de Arte Augusto Gomes - Matosinhos, Janeiro  de 1989.

    Ideias - 3

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    Gaiola


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    chegar é partir

    Quando aqueles que chegavam
    olhavam os que partiam
    os que partiam choravam
    os que ficavam sorriam



                Mário Cesariny,
                Manual de Prestidigistação

    mesmo sem querer,... as leituras

    sem querer, li ...

    O fim do longo, inútil dia ensombra,
    A mesma esperança que não deu se escombro,
    Prolixa… A vida é um mendigo bêbado
    Que estende a mão à sua própria sombra.


    Dormimos o universo. A extensa massa
    Da confusão das coisas nos enlaça,
    Sonhos; e a ébria confluência humana
    Vazia ecoa-se de raça em raça.


    Ao gosto segue a dor, e o gozo a esta:
    Ora o vinho bebemos porque é festa,
    Ora o vinho bebemos porque há dor.
    Mas de um e de outro vinho nada resta:


                Fernando Pessoa,
                esse mesmo ou outro dele mesmo

    mesmo sem querer,... as leituras

    algumas vezes dou por ele

    muitas vezes coro
    por não ter reagido

    outras vezes choro
    por me ter perdido

    e não saber porquê ou de quem

    daqui da varanda
    o olhar quebrado

    parece que tresanda
    este estar entalado

    cheirando o que ouço aos filhos da mãe




    algumas muitas vezes dou por ela

    A estrada que cava tumbas


    uma marca fica feita por um risco. um risco no chão, uma cicatriz, uma mentira verdadeira, um bordado na pele, uma sonhada melancolia.

    há quem suba até um pedestal, até um alto monte com uma igreja, até a um sopro de vento, até um simulacro de entendimento por alguma razão não explicita nem explicada como um embaraço arrastado por uma voz embargada por nada deste mundo.

    por vezes há um desenho de um monumento desses que nada têm para dizer. e ainda bem - dizem os que pretendem recitar um poema, uma história que não existe porque não dá jeito ou uma história que só existe porque dá jeito. felizmente adoramos o sol

    sem sermos capazes de chegar perto do verdadeiro forno da páscoa em andamento. cada um por si, cada um longe de si que nem conhece nem se reconhece tão estranho é a si mesmo. há mesmo quem se separe de si até ser dois para evitar o contágio por si mesmo. e reclame o teste a que tem direito como tem direito à peste.

    Quadro

    Sempre andaram por aqui... em todo o lado.


    E sempre se tiveram em grande conta, quando juntos. E tudo bem: podemos dizer que criaram raízes,  se reconhecem  uns aos outros e podem usar a entre-ajuda entre-eles para tudo incluindo o que não pode ser registado...nos registos da irmandade.

    as aves não são estúpidas: estúpido é mais quem as desdenha e menos quem as desenha


    não consigo mais que isto

    das línguas, o sonho

    uma tia afastada
    à medida que de mim
    se ia afastando
    até não sei quando
    se tornava linha de serrim
    e mais nada.

    já a vaca sagrada
    sem medida objectivo ou outro fim
    que não fosse ir pastando
    até quando
    o caminho deixasse de ser visto por mim


    quando acordei
    alagado em suor
    descobri a vaca com quem sonhei
    a limpar-me com mais língua que amor

    se não sei falar contigo


    não tenho paciência comigo


    é verdade que quem se dedica a muitas
    pouco dá a cada uma delas
    e isto acontece por aqui também

    alguma constância temporal de leitura escrita ou desenho

    e é por isso que por aqui constância só acontece
    quando outros esperam alguma coisa de mim
    e eu acho que posso dar-lhes o que pensam precisar
    até que se cansem do que precisam
    ou das minhas mãos dadas.

    isto serve para que todos suspeitem

    que por aqui algumas mudanças podem ser
    acontecer mesmo que não sejam para durar


    posso pedir desculpa por ter levado alguém
    a ler isto

    para uma  irritação contraída  pelo vácuo
    meu
    em volta de mim
    como eu.

    Calado e triste. Nunca?

    Muitas vezes corre um vento que vem de não sei onde
    e levanta-me as saias
    e levanta-me os olhos
    e levanta-me
    e me leva o chapéu com ele
    porque eu não quero chapéu
    e nem tenho chapéu
    e não tiro o chapéu a quem quer que seja


    Mas também há dias em que corre um vento que eu não sinto
    e não me levanta nem me deita
    nem me dá vontade de rir
    nem de chorar digo eu
    para que ninguém saiba que choro como um homem
    de saias
    foi destes dias os dias de antes de ontem e de ontem
    e ainda de hoje
    e eu não sabia o que fazer agora e antes e nem depois


    Dou por mim sentado
    a tentar levantar-me
    a tentar levantar os olhos e a cabeça
    que não me faltaram ao tempo em que cantávamos
    a melodia mais grave que cantámos
    cheia de nomes
    de camaradas nossos e brasileiros que eles eram
    assassinados numa noite de chacais nas ruas

    e um refrão que não esqueci e ainda me martela os cornos

    Brasil irmão
    teu povo vencerá
    para vingar a tua dor
    teu sangue em flor
    renascerá


    talvez porque morremos um pouco quando a realidade nos apouca
    e nós começamos a pensar que até valeu a pena
    mas tudo pode recomeçar
    como uma dor danada
    como se a nossa alma merecesse ser condenada
    mais do que uma vez em vida

    e resistisse a verdade de haver futuro
    apesar de tudo

    mesmo quando a merda se espalha pela terra
    tentando convencer-nos que é só depois da morte
    que a alma descansa


    embora saibamos que alma não se cansa
    nem morre
    nem existe

    para além da brisa da nossa passagem por aqui
    onde o mundo não é nosso
    e só o susto de ouvirmos as gargalhadas de crianças
    a tentar saltar à nossa morte macaca
    nos pode devolver o riso

    que nos leva para o vento como nos levou
    para os furacões que valiam a pena e as penas que fomos perdendo
    à medida que tínhamos dúvidas sobre se tivemos algum dia
    asas para os tais voos

    os gritos
    os gritos
    o bater das botas nos caminhos
    nas calçadas
    para que as orelhas voadoras, quando
    quase surdos e mudos,
    nos levantávamos a cada passo deste ou daquele camarada
    que deixáramos de ver,
    antes de termos a certeza de nunca mais virmos a vê-los,
    para receber a lufada de ar que cada passo e cada canção
    ou cada cantiga nos devolvia a arma mais antiga
    de todas
    para voltarmos à vida
    até depois da morte.

    abate

    fortes que nós somos, vamos fingir que todos os abates são invisíveis

    até que chegue a nossa hora de pegas

    a 4 de Dezembro de 2013 escrevia:


    em 22 de Julho de 2013 escrevi à mão.....

    ......uma promessa a mim mesmo que esqueci um pouco mais tarde como provei umas páginas adiante do mesmo caderno que vou deitar fora


    Vou começar a marcar as datas em que me sento para escrever.
    Durante estes últimos anos deixei de marcar datas por pensar que nunca me esqueceria  ou porque haveria algum marco a avivar-me a memória.

    Agora perdi toda a esperança nas minhas memórias. Ainda não me deixei esquecer algumas poucas datas. E seria ridículo tentar apontar datas que outros me indicassem porque não seriam as minhas.
    Tenho de descansar.


    De então para cá esqueci-me das datas e também deste caderno que abri por acaso (ao escolher cadernos para abate) e  onde encontrei muita geometria e outras deambulações de que me não lembrava.

    A tapar alguns do meus disparates geométricos  nos estudos então tentados, li o seguinte borrão da mesma  mão que escrevera os disparates:

    Nada me parece igual
    embora nada tenha mudado de lugar
    nem de hora

    só um pequeno senão
    que não vejo é bastante 
    para que tudo pareça diferente.

    E não sei o que é 
    diferente

    ou só parece diferente.

    ou
    só pareço indiferente.....

    ................

    Vamos à baixa ouvir as gaitas

    Não podemos esperar ver as gaitas

    Só podemos olhar a escuridão 
    reflectida na água

    Nem um som se vê

    Só podemos saber que andam 
    à  solta no vento.


    por vezes, revejo-me: para quê?

    Em Junho de 2010 escrevi (e foi publicado no APMi#095) um texto de reflexão intitulado Reflexão - Das ideias à acção dos professores.



    Se fosse hoje o que escreveria? - pergunto a mim mesmo.



    Das ideias à acção dos professores.

    A acção profissional dos professores está cercada de palavras.
    Por um lado, parece que a acção é substituída por palavras, por fichas, por grelhas, por relatórios... Sem sentido, há documentos pobres que aparecem como substitutos da acção. E muitas vezes é o que sobra para memória futura. Da acção profissional, por mais rica que ela seja, pode sobrar uma mão cheia de folhas incapazes dos detalhes da riqueza da acção e cheias de declarações genéricas que nada dizem ao futuro. Como se os professores aceitassem como senso comum a sua acção mais verdadeira.
    Vista por outros, parece que os professores não existem como força independente capaz das grandes realizações que o quotidiano das escolas bem exige e que as realizações fora da escola bem mostram à saciedade. Há mesmo quem diga que, desta escola e destes professores, nada sobra em quantidade e muito menos em qualidade. Mesmo quando são os outros que se apropriam, como ideia e como acção vital, desta ou daquela realização baseada na acção dos professores.
    Diz-se que as escolas e os professores de Matemática nada fazem pelo cálculo mental nem pelo raciocínio. E tratam-se os grandes acontecimentos, nos vários campos, dos espectáculos finalistas como sendo independentes da acção dos professores nas escolas e talvez fruto de elocubrações sonhadoras. Convém dizer que não somos todos iguais e uns são melhores que outros, como em qualquer outra profissão. Mas alguém pode imaginar mais de 100 mil jovens mobilizados para o campeonato SuperTmatik, de que se mostram os campeões em competição final, sem o empenhamento de professores e escolas um pouco por todo o país? Não, não pode ser burocracia o trabalho destes professores e a este empenhamento só pode corresponder uma verdadeira preocupação em prolongar para lá das aulas, tantas vezes sem condições, o trabalho com o cálculo mental que, para ser desenvolvido a níveis mais elevados, precisa de mais tempo e espaço mental do que aquele que os professores têm para o ensino dos números, das operações e das suas propriedades. De certo modo, uma realização como a final do SuperTmatik tem mão dos professores preparados para jogar, animar a jogar, animar a compreender regras, animados a serem árbitros insubstituíveis nas relações entre os jovens competidores.
    O mesmo se passa com o Campeonato Nacional de Jogos Matemáticos que são disputados numa final nacional, depois de terem sido vividos por largos meses em estudos, treinos e disputas moderadas por professores que se organizam para isso nas suas escolas. Não, não pode tratar-se de uma burocrática decisão para pôr em acção uma ideia de outro. A participação nestes espectáculos só pode basear-se numa compreensão profunda (intelectual também) do interesse dos jogos matemáticos para a matemática que se aprende e que, não cabendo na sala de aula, é feita de pura animação matemática independente. Mais independente aparece à luz de quem pensa nestes fenómenos sabendo da realidade e dos poucos alentos recebidos nas escolas reais que não dão valor curricular a esta animação nem podem considerá-la para qualquer carreira que se prende cada vez mais, aos olhos dos decisores, com a aula formal e os resultados em provas e exames feitos sobre um programa bem determinado.
    Acreditar na acção independente dos professores implica acreditar numa decisão de participar pela importância destes jogos para os jovens e para a matemática. Porque não há outras razões, porque não recebem outros benefícios destas suas acções. Em alguns casos, os professores têm de suportar incompreensões quando não censuras.
    E podíamos continuar a listar o conjunto das coisas boas - Olimpíadas, Encontros, etc - que todos louvam por acontecerem enquanto desmerecem a formação, a sabedoria profissional e a independência dos professores nas suas interpretações dos currículos que, felizmente para eles, não são mais que planos para acção, abertos e necessitados do mundo que não cabe na sala de aula.
    Muitos dos que louvam estas iniciativas como contributos certos para o que é preciso fazer devem saber que há uma mole imensa de professores que as tornam possíveis. Tal não se pode esconder, muito menos em Portugal, onde tudo o que acontece depende de decisões dos professores nas suas escolas. Nestas, como noutras questões, fora das escolas é o deserto de acções, embora haja um oásis frenético de ideias e de queixumes.
    Temos muito para andar. Mas andamos. Os que andam têm pouco tempo de quietude e há a dificuldade óbvia de falar e escrever em andamento...

    Arsélio Martins

    tudo o.... que é aflorado pela técnica

    Dantes o poeta existia para no­mear as coisas: como se fosse o dia da Criação. Hoje em dia ele parece existir para se des­pedir delas, para as recordar aos homens, terna e dolorosamente, an­tes que sejam extintas. Para es­crever os seus nomes na água e, talvez nessa mesma vaga que daí a pouco ai arrastará consi­go.

    Um parque sombroso, o verde espe­lho a um lago atravessada por belos gerânios dourados, no coração da cidade, da tormenta de cimento armado. Como não pensar ao olhá-lo : o último lago, o último parque sombrios? Quem hoje não tiver consciência disto, não é poeta de hoje.

    Na poesia, tal como na relação entre as pessoas, tudo morre assim que é aflorado pela técnica.


    Cristina Campo. Os imperdoáveis. trad. de < José C. Barreiros > Assíro & Alvim (col. Teofanias). Lisboa:2005 156

    a cegueira de quem lê é de quem ouve

    Ouço todas as notícias, ouço tudo. Quando leio, falo para mim - só eu me ouço. Quando leio em voz alta deixo de ler e começo logo a inventar e a acrescentar enredos ao texto. Eu gosto de falar em voz alta como se estivesse a ler. Já mais do que uma vez fiz isso: falar como se estivesse a ler. Já mais do que uma vez tive um desgosto com isso. Mas também já me defendi bem dessa maneira: já disse muitos disparates sem apanhar com uma chuva de dissabores, porque as pessoas pensaram que eu não fazia mais do que ler em voz alta uma página de livro. As pessoas perdoam-me as páginas dos livros, não me perdoam as opiniões. Quando me ponho a falar, fingindo que estou a ler, deixo perceber um certo tom teatral próprio de quem declama. E as pessoas desligam-me do texto - olham para mim como se fosse um actor, altifalante das palavras de outro. É confortável. Um dia, subi a uma cadeira de esplanada, com os olhos vendados e, de livro na mão, recitei um longuíssimo poema, aparentemente decorado. Não era poema nenhum. Eu estava a dizer, com o ar dramático dos cegos, uma ladainha longa em que cada frase era inspirada pela anterior. Quando caiu a primeira moeda no meu chapéu ao fundo da cadeira, soube que o poema era bom. Os meus melhores textos nunca foram escritos. Só foram lidos, … de olhos vendados.

    Na hora da Mudança

    Depois de apresentações em Aveiro (na Biblioteca Municipal com Márcia Souto, Filinto Silva, Joaquim Filipe e Francsco Vaz da Silva...) e Lisboa (no Grémio Literário com Márcia Souto, Filinto Elísio e ... ) no mês de Julho,


    vamos apresentar-nos, neste mês de Setembro, ao Porto Campanhã no MIRA Fórum
    com Márcia Souto, Filinto Silva, Fernando Pereira e José Paiva..

    compreender a beleza

    Ele  sempre disse que o pior está por vir. Tanto podíamos  acreditar como não acredi­tar. E eu habituei-me ao meio da ponte.

    Ele sempre disse qualquer coisa.  E nós, os outros, só tínhamos que o ouvir (e falar se disso fossemos capazes). Todos nos diziam isso mesmo. Mas não me lembro de som algum que tivéssemos produzido ou que, mesmo que vagamente, se ouvisse no cimo do monte onde acampá­mos à espera do inimigo que nunca chegou.

    A beleza?  Foi para aqui chamada e faltou. Não a compreendo.

    nada me serve

    havia o vigésimo quinto de abril e o primeiro de maio  para me apagar, mais um na multidão, sendo  parte do que não se pode apagar por ser um dos que faz a multidão não querendo ser visto só como mais um sem desafinar as palavras de ordem  com um toque de desordem escolhia bem sempre  sector diferente de manife para manife pensando animar ao  somar-me  como desconhecido novo até que um dia ao meu lado alguém disse mais um não faz do finito o infinito o que é verdade

    vai e volta

    eu quis encontrar-te num verso sem avesso
    que fosse o teu e o meu regresso

    ao canto da casa onde a voz se solta
    uma vez e outra vai alegre e logo volta

    até que me e te reconheço

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