escutar, olhar e... parar?
Nós sabemos que as escutas sofisticadas são importantes na detecção, perseguição da grande criminalidade económica (e organizada) e da corrupção. Sob autorização de um juíz, à guarda de investigadores tutelados por um juíz que é então garante dos direitos individuais, da honra das pessoas envolvidas, etc.
Todos sabem que este sistema só pode funcionar se for rápido e eficaz pelos efeitos. Todos sabemos já que a melhor forma que o crime tem para combater as escutas é esvaziar os sacos de escutas na praça, misturando a vida privada de uns com a vida criminosa de outros, fazendo com que os crimes apareçam equiparados a conversas da treta.
E, desse modo, torpedear o trabalho da justiça, enredar tudo na teia recursiva que as aranhas do direito tecem. Tudo ao monte é o esconderijo ideal de cada crime. E a vulgaridade? Como é que se pára? Onde pairam os direitos e as garantias dos simples? E o julgamento seguido de prisão efectiva dos criminosos? Quantos andam por aí? Quantos são? Ninguém sabe, apesar de todas campanhas ninguém sabe e toda a gente sabe ou pensa que sabe, prendendo este ou aquele com a imaginação de quem não gosta e libertando outros e aqueloutros com a imaginação de quem gosta. Como é que se trava para parar e pensar?
Há quem diga que isto é preciso. De outro modo não se denunciam os crimes. Há mesmo quem defenda os julgamentos da opinião pública. Conhecem alguém que tenha sido condenado por algum crime julgado na praça pública? Uma parte destes criminosos vive de aparecer e ser citado muitas vezes e não do secretismo antigo.O secretismo de hoje é alguma coisa mais do nível do sincretismo global.
SINCRETISMO. Significa, originariamente, união dos cretenses contra o inimigo comum, porque habitualmente estavam desunidos. No século XVII, porém, pensando que o temo procedia do verbo misturar, passou ele a significar mescla de doutrinas derivadas de diversa proveniência: católica, luterana, calvinista. A partir daí, o conceito alargou-se a toda a forma de mistura – por justaposição, composição, sobreposição ou fusão – de doutrinas, de ritos, de imagens, de símbolos. (1)
(1) ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA. Lisboa: Verbo, [s. d. p.]
Todos sabem que este sistema só pode funcionar se for rápido e eficaz pelos efeitos. Todos sabemos já que a melhor forma que o crime tem para combater as escutas é esvaziar os sacos de escutas na praça, misturando a vida privada de uns com a vida criminosa de outros, fazendo com que os crimes apareçam equiparados a conversas da treta.
E, desse modo, torpedear o trabalho da justiça, enredar tudo na teia recursiva que as aranhas do direito tecem. Tudo ao monte é o esconderijo ideal de cada crime. E a vulgaridade? Como é que se pára? Onde pairam os direitos e as garantias dos simples? E o julgamento seguido de prisão efectiva dos criminosos? Quantos andam por aí? Quantos são? Ninguém sabe, apesar de todas campanhas ninguém sabe e toda a gente sabe ou pensa que sabe, prendendo este ou aquele com a imaginação de quem não gosta e libertando outros e aqueloutros com a imaginação de quem gosta. Como é que se trava para parar e pensar?
Há quem diga que isto é preciso. De outro modo não se denunciam os crimes. Há mesmo quem defenda os julgamentos da opinião pública. Conhecem alguém que tenha sido condenado por algum crime julgado na praça pública? Uma parte destes criminosos vive de aparecer e ser citado muitas vezes e não do secretismo antigo.O secretismo de hoje é alguma coisa mais do nível do sincretismo global.
SINCRETISMO. Significa, originariamente, união dos cretenses contra o inimigo comum, porque habitualmente estavam desunidos. No século XVII, porém, pensando que o temo procedia do verbo misturar, passou ele a significar mescla de doutrinas derivadas de diversa proveniência: católica, luterana, calvinista. A partir daí, o conceito alargou-se a toda a forma de mistura – por justaposição, composição, sobreposição ou fusão – de doutrinas, de ritos, de imagens, de símbolos. (1)
(1) ENCICLOPÉDIA LUSO-BRASILEIRA DE CULTURA. Lisboa: Verbo, [s. d. p.]
dos impostos
quando alguém fala de aumentar os impostos a pagar pela banca, os banqueiros argumentam que isso não pode ser feito.
até porque diminui várias coisas a começar pela competitividade entre eles no mercado mundial.
só que não há competitividade de jeito se os estados garantirem os depósitos nos bancos e até mesmo, por essa insuspeitada via, transformarem a sua actividade arriscada em nada de arriscado.
sem necessitarem de cobrir os seus riscos, os bancos estão transformados em cobradores de lucros, permitindo que, mesmo em situações de crise e bancarrota, se distribuam prémios entre os gestores jogadores e apostadores activos na criação de crise e ruína.
que também não podem ser tributados para não amolecer a actividade frenética dos magnifícos criadores de crises financeiras ou a competitividade entre eles.
mas, para a sociedade reganhar credibilidade financeira, os banqueiros clamam agora pelo aumentos dos impostos sobre os outros, sinal necessário para o acesso ao crédito internacional a juros convenientes ao capital financeiro (inter)nacional.
dito de outro modo, podemos baixar a competitividade de quem trabalha (de quem produz capital por incorporação de factores de produção ou de trabalho) desde que mantenhamos a credibilidade e a competitividade de quem cria o dinheiro virtual, capital especulativo - esse que não incorpora qualquer valor ou trabalho produtivo.
dizem que não é bem assim que as coisas se passam e, que para haver jogo, temos de considerar altamente útil e produtivo o trabalho não tanto dos jogadores, mas da banca, desses que jogam com o dinheiro dos outros.
mesmo quando corre mal o jogo do capital virtual, o estado cobre as apostas com o dinheiro real da sociedade, com impostos dos que trabalham.
as crises financeiras ensinam-nos que a parte do capital com trabalho produtivo incorporado está longe de ser igual ao todo que a imaginação gananciosa dos banqueiros e jogadores acrescenta ou cria e, ao mesmo tempo, retira do jogo dos impostos de cada país.
a vida real tornou-se um jogo arriscado e perigoso para os que não usam máscara e têm rosto e suor.
triste e amargurado é o fado de quem trabalha. graça tinha o fado canalha no tempo em que o fadista lia as letras do artista. só que agora há a grande canalhice e há fados tristes para quem vê vencer letras ao balcão da pulhice. e fados há, em que os grandes canalhas, sobre a denúncia podem cantam que é calhandrice.
até porque diminui várias coisas a começar pela competitividade entre eles no mercado mundial.
só que não há competitividade de jeito se os estados garantirem os depósitos nos bancos e até mesmo, por essa insuspeitada via, transformarem a sua actividade arriscada em nada de arriscado.
sem necessitarem de cobrir os seus riscos, os bancos estão transformados em cobradores de lucros, permitindo que, mesmo em situações de crise e bancarrota, se distribuam prémios entre os gestores jogadores e apostadores activos na criação de crise e ruína.
que também não podem ser tributados para não amolecer a actividade frenética dos magnifícos criadores de crises financeiras ou a competitividade entre eles.
mas, para a sociedade reganhar credibilidade financeira, os banqueiros clamam agora pelo aumentos dos impostos sobre os outros, sinal necessário para o acesso ao crédito internacional a juros convenientes ao capital financeiro (inter)nacional.
dito de outro modo, podemos baixar a competitividade de quem trabalha (de quem produz capital por incorporação de factores de produção ou de trabalho) desde que mantenhamos a credibilidade e a competitividade de quem cria o dinheiro virtual, capital especulativo - esse que não incorpora qualquer valor ou trabalho produtivo.
dizem que não é bem assim que as coisas se passam e, que para haver jogo, temos de considerar altamente útil e produtivo o trabalho não tanto dos jogadores, mas da banca, desses que jogam com o dinheiro dos outros.
mesmo quando corre mal o jogo do capital virtual, o estado cobre as apostas com o dinheiro real da sociedade, com impostos dos que trabalham.
as crises financeiras ensinam-nos que a parte do capital com trabalho produtivo incorporado está longe de ser igual ao todo que a imaginação gananciosa dos banqueiros e jogadores acrescenta ou cria e, ao mesmo tempo, retira do jogo dos impostos de cada país.
a vida real tornou-se um jogo arriscado e perigoso para os que não usam máscara e têm rosto e suor.
triste e amargurado é o fado de quem trabalha. graça tinha o fado canalha no tempo em que o fadista lia as letras do artista. só que agora há a grande canalhice e há fados tristes para quem vê vencer letras ao balcão da pulhice. e fados há, em que os grandes canalhas, sobre a denúncia podem cantam que é calhandrice.
rua: fonte dos amores
FONTE DOS AMORES:
placas antigas implantadas num muro, um pequeno tanque, o buraco da fonte
e um anúncio de marca "aveiro" que reza assim: água própria para consumo humano.
LOUVADO SEJA O SANCTÍSSSIMO SACRAMENTO E A VIRGEM NOSSA SENHORA QUE FOI CONCEBIDA SEM PECCADO ORIGINAL
é o que está escrito a cinzel no mármore ao lado do anúncio
ÁGUA PRÓPRIA PARA CONSUMO HUMANO,
concebido sem nada de original, sem pinga d'água, sem pingo de vergonha.
evidências que não contam
As escolas podem até ter portas largas e grandes salas, como a que conhecemos melhor. Mas em muitas delas, são os corredores que dominam tudo. Eles guiam-nos ao encontro das turmas e de outros grupos. Parte da escola é a viagem pelos corredores, mastigando passos e pensamentos, sobre como melhorar relações com as pessoas, das pessoas com o conhecimento, das pessoas com o trabalho.
Os professores afadigam-se a produzir evidências daquilo que pensam ser a sua acção e isso raramente é o que lhes acontece, antes é o que transcrevem dos livros e documentos onde se descreve o que é bom que tenha acontecido. Professores em corredores longos e escadas panorâmicas coleccionamos evidências nos detalhes. E a estes damos mais valor do que a outras evidências documentais pré-fabricadas para uso das organizações de profissionais que as escolas também são.
Voltemos à conversa dos corredores onde podemos espreitar o mundo: da linguagem corporal e da babel de sons. Nestes detalhes vivem evidências da acção dos professores e, principalmente, do seu pensamento aguçado para as circunstâncias em que se desenrola a sua acção. Esclarecem-nos a forma ou o molde das nossas inquietações em resposta às condições existentes. Condições de trabalho, sim, mas especialmente de resposta da parte de quem aprende. Quem ensina e aprende está à espera, numa tocaia inconsciente, de tocar e seduzir quem aprende e quem ensina. Todas as oportunidades são boas para alegrias vividas por quem compreende e anseia aprender, por quem se deixa seduzir pela alegria de saber e de mostrar compreensão pelo mundo até querer fazer parte dele, parte activa dele, parte critica dele, parte.
Cansamo-nos a argumentar a favor da rendição, disparando uma série de pequenas informações e perguntas em vez do problema que precisa de ser interpretado e resolvido. Não acreditamos que algum jovem queira esforçar-se e damo-nos por satisfeitos com respostas a partículas de perguntas em que a grande pergunta se decompõe. Olhamos para os jovens como se eles tivessem uma cabeça de pássaro desatento (ou atento a milhares de coisas por minuto) sem poder concentrar-se em leituras atentas e activas, interpretativa.
E damos sentido (talvez sem razão) ao cuidado do professor de Português em transcrever um texto numa só página na esperança que seja lido e compreendido pelos jovens, ao cuidado de publicar as perguntas sobre o texto ao lado do texto para ter esperança em que eles busquem o sentido para as respostas, etc.
Estes detalhes espelham uma baixa expectativa e uma descrença nos jovens. Um detalhe destes por dia e nós sabemos que passámos a estar à espera sem esperança. Sabemos que não há um nexo simples entre ensinar e aprender, porque aprender exige esforço, depende da vontade. E que aprender pelo trabalho, de forma complexa e esforçada, é fonte de muitas alegrias. E que aprender um caminho de migalhas que se debiquem e se guardem, migalha a migalha, pode ser um papo cheio, mas não de alegria.
Não podemos desistir de exigir o esforço de interpretar e construir alguma coisa que exija mudança de página e memória e por, em cada momento, não importar o esforço da mudança de página e só interessa saber se o jovem sabe ou faz precisamente isto ou aquilo. E evitamos o que existe sempre e em todo o lado? Não podemos estar sempre a pensar em perguntas livres de todo o mal do esforço, qual minério livre da ganga em que se embrulha e esconde. Não podemos, mas os corredores mostram que o fazemos todos os dias. Sem pensar.
Continuar a empobrecer o nosso discurso até ser o já adquirido pelos jovens, por ser esse que eles percebem, ou motivar por vias estranhas ao nosso ensino e ao que é preciso que aprendam, talvez seja um caminho. Mas é um caminho sem regresso, porque as migalhas que fomos deixando para marcar o caminho de regresso ao futuro, foram parar ao papo de quem não vê a floresta do caminho que vai debicando, não pensa em deixar rasto, nem sabe de onde vem a luz que o guia.
Evidências que não contam. Detalhes que contam.
a página de educação; inverno/2009
Os professores afadigam-se a produzir evidências daquilo que pensam ser a sua acção e isso raramente é o que lhes acontece, antes é o que transcrevem dos livros e documentos onde se descreve o que é bom que tenha acontecido. Professores em corredores longos e escadas panorâmicas coleccionamos evidências nos detalhes. E a estes damos mais valor do que a outras evidências documentais pré-fabricadas para uso das organizações de profissionais que as escolas também são.
Voltemos à conversa dos corredores onde podemos espreitar o mundo: da linguagem corporal e da babel de sons. Nestes detalhes vivem evidências da acção dos professores e, principalmente, do seu pensamento aguçado para as circunstâncias em que se desenrola a sua acção. Esclarecem-nos a forma ou o molde das nossas inquietações em resposta às condições existentes. Condições de trabalho, sim, mas especialmente de resposta da parte de quem aprende. Quem ensina e aprende está à espera, numa tocaia inconsciente, de tocar e seduzir quem aprende e quem ensina. Todas as oportunidades são boas para alegrias vividas por quem compreende e anseia aprender, por quem se deixa seduzir pela alegria de saber e de mostrar compreensão pelo mundo até querer fazer parte dele, parte activa dele, parte critica dele, parte.
Cansamo-nos a argumentar a favor da rendição, disparando uma série de pequenas informações e perguntas em vez do problema que precisa de ser interpretado e resolvido. Não acreditamos que algum jovem queira esforçar-se e damo-nos por satisfeitos com respostas a partículas de perguntas em que a grande pergunta se decompõe. Olhamos para os jovens como se eles tivessem uma cabeça de pássaro desatento (ou atento a milhares de coisas por minuto) sem poder concentrar-se em leituras atentas e activas, interpretativa.
E damos sentido (talvez sem razão) ao cuidado do professor de Português em transcrever um texto numa só página na esperança que seja lido e compreendido pelos jovens, ao cuidado de publicar as perguntas sobre o texto ao lado do texto para ter esperança em que eles busquem o sentido para as respostas, etc.
Estes detalhes espelham uma baixa expectativa e uma descrença nos jovens. Um detalhe destes por dia e nós sabemos que passámos a estar à espera sem esperança. Sabemos que não há um nexo simples entre ensinar e aprender, porque aprender exige esforço, depende da vontade. E que aprender pelo trabalho, de forma complexa e esforçada, é fonte de muitas alegrias. E que aprender um caminho de migalhas que se debiquem e se guardem, migalha a migalha, pode ser um papo cheio, mas não de alegria.
Não podemos desistir de exigir o esforço de interpretar e construir alguma coisa que exija mudança de página e memória e por, em cada momento, não importar o esforço da mudança de página e só interessa saber se o jovem sabe ou faz precisamente isto ou aquilo. E evitamos o que existe sempre e em todo o lado? Não podemos estar sempre a pensar em perguntas livres de todo o mal do esforço, qual minério livre da ganga em que se embrulha e esconde. Não podemos, mas os corredores mostram que o fazemos todos os dias. Sem pensar.
Continuar a empobrecer o nosso discurso até ser o já adquirido pelos jovens, por ser esse que eles percebem, ou motivar por vias estranhas ao nosso ensino e ao que é preciso que aprendam, talvez seja um caminho. Mas é um caminho sem regresso, porque as migalhas que fomos deixando para marcar o caminho de regresso ao futuro, foram parar ao papo de quem não vê a floresta do caminho que vai debicando, não pensa em deixar rasto, nem sabe de onde vem a luz que o guia.
Evidências que não contam. Detalhes que contam.
a página de educação; inverno/2009
entre caminhos, a casa
a luz mais intensa do candeeiro de rua esconde um banco
quebra na face de cal da casa e o avô sentado na noite fresca
e o jornal aberto na necrologia e o espanto da própria morte
diário
ao longe, a torre. não ouço, mas podia ouvir. se não fosse surdo, ouviria o sino da torre. não o vejo, mas sei que aquela torre não engana e alberga um ou mais sinos. não o vejo, nem o ouço, mas sei que aquela é uma torre sineira. e isso é tudo o que preciso de saber. o resto é consequência. a existência, a prova de vida, o passeio do cego, o passeio do surdo, o passeio da rua. em tempos, vi a minha rua pela primavera, pelo verão, pelo outono e pelo inverno. conheço a minha rua de olhos fechados, como a palma da minha mão. gosto muito da minha rua. já posso gostar sem sentido. sem sentidos.
natal
vejo-te da janela do comboio vais a correr
e eu quero ficar contigo mas tu nem me vês
lembro-me de puxar pelos olhos e de te meter
no bolso e até pensar: quem sabe se me não lês
diário
amanhece! escrevo todos os dias, enquanto calço as meias e aproveito a vénia a que me obrigo para calçar as meias, para a minha oração diária. já roguei pragas contra as dores nas costas ou o desequilíbrio matinal como quem reza. já rezei. amanhece! reze ou não reze.
diário
Uns dias melhor, outros pior. ao contrário de outros que as vendem, a minha mãe dava ordens. sempre a admirei por isso. e o que era melhor é que dava ordens simples. se não executássemos o que ela mandava fazer não podia ser por não termos entendido as ordens. não tínhamos desculpa. ultimamente tenho andado a pensar que não sei dar ordens. desisto? ou penso melhor no que seja uma ordem antes de a dar. ou pago para aprender a dar ordens. ou faço um esforço para me lembrar da técnica de comunicação da minha mãe para dar ordens com vista a acções particulares. ou passo a vender ou distribuir ordens como fazem os reis das monarquias e os presidentes das repúblicas, sem esperar que possam ser compreendidas já que a acção requerida está só em receber pondo o peito a jeito.
o diário
quando te sentes velho, podes caminhar pelas ruas como caminhas pelos corredores da tua casa. e podes rir-te do que foste como se te risses de qualquer outro dos que em vão conheceste. ou desconheceste, afinal. nada do que possas ter feito é para ti entusiasmante, porque o que está feito está feito e não tem futuro. o teu futuro pode ser ou ter uma forma perturbadora porque sabes que te foste transformando noutro esse outro que tu já não controlas. por isso, lutas contigo mesmo à medida que vais desaparecendo da tua vista. a voz que de ti ouves já não é a mesma e tens vergonha de ter convencido alguém com essa voz pedagógica de trazer por casa, sendo que em casa todos sabem que nenhuma pedagogia há feita das tuas qualidades, antes tudo ficou feito pelas tuas escolhas. quando te sentes velho, não tens outro desejo para além dessa vontade de desaparecer ou mudar de pele. é por isso que entre as tuas escolhas importantes, está a transformação nos gestos: cada vez menos cuidadosos e cada vez mais cuidados. à tua volta giras como se cuidasses de ti em vigília permanente em busca de sinais que ainda não podes ver mas estão lá em algum lugar onde poisas as coisas, as pequenas coisas que escondes ou mostras para esconder as outras pequenas coisas. os sinais estão nas ocultações para ti mesmo que é a forma como queres desaparecer. não tarda estás a fazer um testamento de nadas, talvez da forma de morte e de não funeral que escolhes sem o dizeres aos outros. na forma como desvendas o tédio que a tua vida foi: tanta alegria para nada, tanta alegria sendo tudo e nada, cada escolha como separação do que te foi estranho depois de o teres sido. quando te sentes velho, podes imaginar que podias ter sido outro nas escolhas e podias afinal ter encontrado maior sossego em alguma comunidade estranha mas acolhedora de alguma forma acolhedora que só precisava que não a negasses. mas tu aprendeste a negar sorrindo e quase fizeste isso de forma perfeita, mais recentemente fazendo isso nos momentos certos, sem ser desagradável para os outros, sem seres qualquer acontecimento fora de ti desculpado por te sentires velho. às vezes, pensas mesmo que escolher o momento favorável a certas mudanças fez de ti uma forma de vida adaptada a fazer as grandes mudanças como se de pequenas mudanças se tratasse, como se te fosses desvanecendo sem sobressaltos para ti e para os outros, como se preparasses algum esquecimento de ti. quando te sentes velho, dói-te o joelho e só isso te importa afinal embora não o digas. cada dia te afastas um pouco da vida, esqueces um pouco uma parte da memória e crias uma lembrança do que não existe em ti e nunca existiu. pensas como a tua mãe que o que interessa é a imaginação da vida que não foste, uma vida imaginada, construída fora da realidade das coisas que viveste, uma forma de sorrir sem culpa, uma bengalada que nunca existiu.
o diário
hoje caí na asneira de olhar para o lado. ao meu lado, ia uma senhora com uma bengala que golpeava o ar compassadamente. o ar que nos rodeava bem tentava desviar-se das bengaladas. sem conseguir. o ar atrapalhado do ar deu-me vontade de rir e quando uma gargalhada se preparava para sair a bengalada no ar atingiu-me a gargalhada que saltitava à minha frente. assustado, perdi a vontade de rir. comecei a procurar a vontade de rir pelo chão. quando a vi, baixei-me para a apanhar. e apanhei com uma bengalada mesmo em cheio na mão que acabava de pegar a vontade de rir. o ar que até aí andava a fintar as bengaladas pôs-se de cócoras para ver melhor o meu ar. senti uma lufada de ar, uma gargalhada de ar. com pena vi que tinha perdido toda a vontade de rir e toda a vontade de a procurar. o pior é que não estranhei a falta de vontade. à minha volta, o ar andava às voltas tentando ter graça. eu não lhe achei graça nenhuma. para além do riso, deixei de achar graça. se calhar nunca mais vou achar.
desenho, logo existe
desenho para desconhecer
desenho para reconhecer
desenho para conhecer
desenho para esquecer
desenho para aquecer
bater do coração
entram na sala e a sala enche-se deles de sons de palavras soltas umas pelas outras palavra puxa palavra pairam palavras por toda a sala de palavras. só uns momentos... até que dêem pela falta das minhas palavras e os olhares comecem a substituir as palavras que se vão sumindo sem que outras tomem o seu lugar. até à sala vazia de sons até que o silêncio seja cal: e eles ouçam o bater compassado do meu coração: e eu possa enfim abrir os olhos para falar.
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