Há mais de um ano, em Julho de 2002, escrevi para o jornal um texto sobre os processos no pcp e a forma como vi a reclamação dos renovadores ao tribunal constitucional. A memória prega-nos partidas e, sei porquê!, lembrei-me do tempo em redor desse texto. Decidi transcrevê-lo para aqui. Esta publicação não tem qualquer interesse para quem não interessa. Há dias assim.


No fojo do lobo, todos somos lobos.
Arsélio Martins


A paisagem é quase inóspita. Algumas poucas árvores bem altas chamam a atenção no descampado. Aproximamo-nos e podemos ver uma construção: vê-se que ali foram arrumadas algumas das pedras que Deus espalhou a esmo, durante a distracção de uns momentos em que brincou a atirar pedrinhas contra o mundo acabado de criar.

Homens muralharam um acidentado terreno e lá dentro não se encontra mais mão de homem que num cavado feito em rocha meio enterrada. Num dos extremos há ainda uma pequena elevação natural feita de pedras maiores que devem ter ficado juntas acidentalmente quando escorregaram das mãos de um Deus já cansado de brincar.

Os homens carregaram a cabra doente e degolaram-na, deixando o sangue cair no cavado da pedra do sacrifício. Logo a seguir, saíram para bem longe dali, num jogo de medrosas escondidas. Talvez um mais decidido (ou escolhido pelos outros) tenha ficado escondido entre as pedras da pequena elevação.

O lobo que fareja, aproxima-se da cabra sem reparar na baixa muralha que em volta dela se ergue. Repara, tarde demais, que toda a muralha ganhou vida. Os lobisomens voltaram e, tão raivosos quanto medrosos, mostram varapaus afiados e pedras. Acossado, o lobo procura uma saída. Mas, para onde quer que vá, recebe uma chuvada de pedras e paus afiados. Esconde-se num dos lados da elevação, protegido da muralha assassina mais próxima e o mais longe possível do resto da muralha. Perdeu o apetite. Descansa por momentos, lambendo algumas das feridas feitas pelas pedras e pelos paus quando tentava escapar por cima da muralha. De repente, recebe uma pedrada e uma picadela violenta proveniente da elevação. Alguém procura expulsá-lo daquele frágil refúgio ali no descampado.
Agora não quer saltar a muralha, mas também não pode ficar ali. Experimenta então atacar o lobisomem que se escondia na pequena elevação. Em vão. Uiva contra a lua, mas depois que se perdeu por uma oportunidade de refeição, nenhuma alcateia há que lhe dê força e companhia. Uiva mesmo assim, contra todas as regras (já que denuncia o espírito do lugar), como se esperasse apaziguar ou amedrontar a muralha de lobisomens em seu redor.
Corre para o centro do círculo muralhado. Uiva de dor, até parecer que nem se importa de ser domesticado por regras de qualquer família lobisumana que o aceite.

Uiva ainda na esperança de ser ouvido pelo Tribunal Constitucional.

[o aveiro, julho de 2002]
Florestas de papel
Arsélio Martins


As mudanças das formas de vida das pessoas e dos animais, no que tem a ver com o fim da pastorícia e a sua substituição pela indústria da criação de gado e a expansão do acesso a alternativas modernas(?) de energia, acrescentadas do despovoamento do interior a favor do sobrepovoamento do litoral e das cidades, fizeram das florestas portuguesas o que elas são hoje: primeiro tornaram-se pastos para o papel e outros produtos industriais e depois pasto para as chamas. E fizeram das pessoas que insistiram em viver nas aldeias do interior (ou no isolamento total das florestas) velhos sozinhos primeiro e vítimas agora. Ao abandono e desordenamento radical das florestas, acrescentou-se o desordenamento da construção com a expansão de algumas aldeias e vilas e o consequente pânico medieval a lembrar cercos de fogo devastador.

Voluntários, os bombeiros contam-se pelas dezenas de milhar. Em condições normais, os dedicados voluntários com as suas associações chegam para as encomendas de desgraça que o acaso cria. Mas sabemos hoje que a situação vivida (neste e noutros verões) não é obra do acaso, antes consequência de actos de politicas profissionais bem determinadas (para o mal). Para combater consequências de politicas profissionais deliberadas não podem chegar os voluntários das comunidades aptos a enfrentar desgraças ocasionais. E é, por isso, que os voluntários têm de ser erguidos à categoria de heróis. As comunidades têm de criar capacidade de intervenção cívica para compreender e mudar as politicas, para além de manterem a sua capacidade de combate a imprevisíveis flagelos.

A floresta fez-se pasto do papel e de outros derivados industriais da madeira tanto quanto o assunto da defesa da floresta e da sua desgraça pastou no prado do papel. Milhares e milhares de folhas de papel receberam escritos inteligentes sobre a floresta e propostas de medidas para o ordenamento do território. As medidas boas foram todas para o caixote do lixo. Por não ter sido possível reciclar todo o papel escrito sobre o assunto, podemos medir hoje a extensão da ignomínia dos poderes políticos. Substituiram-se uns aos outros até conseguirem uma floresta de cinzas e, quem sabe!, passarem do despovoamento do interior para a desertificação, essa que tanto antecipam e combatem com a língua afiada pelas conveniências.

Agora, os poderosos esperam inundar resmas de papel com notícias de outros acontecimentos que apaguem e façam esquecer os incêndios e as suas vítimas, Talvez tentem ser céleres a enviar tropas para combater emergências americanas noutras paragens, procurando compensar a lentidão em mobilizar para o combate do incêndio no território nacional. O ministro eleito por Aveiro cuidou pouco de funerais dos bombeiros e outras vítimas da incúria, mas ajoelha-se e benze-se em auto de fé anti-comunista que pretende passar por fé patriótica. Nem descanso dá aos mortos na sua dignidade própria. Sem pingo de fé, carrega fel e fogo ao seu sinal da cruz, criando uma notícia de contra-fogo na tentativa de esconder as cinzas do fogo em que arde.

[o aveiro, 21/8/2003]
O josé não escreve por escrever. Eu compreendo-o quando ele escreve nada.
E reconheço que, muitas vezes, mais valera não ter escrito.
Nós procuramos juntar as palavras que sejam em vez de nós, quando não formos.
Nesse ofício juntamos muito lixo. O pior é que quando reconhecemos o lixo, levamo-lo para a rua em frente à nossa porta. A curiosidade dos vizinhos fareja o nosso saco.
O norte de Aveiro
Arsélio Martins

A melhor forma de saborear o norte de Aveiro é viver a norte. Estou a norte da Feira, em Nogueira da Regedoura. Vim pela A1 e saí na portagem mesmo ao lado de casa. Para ir a Espinho, tomo cinco minutos de IC24 e posso tomar 10 minutos de IC1 para a Feira. Para ir ao Porto, tomo 45 cêntimos de restos de A1, tão contestados com as excursões lentas lideradas pelos autarcas de Espinho e arredores. A EN1, do outro lado, caíu nos seus próprios buracos em obras.

Nem falo de Espinho que já é outro concelho e outro mundo em que todos os caminhos vão dar ao Porto, neles incluindo as ferrovias. Lamas e Lourosa (ou Fiães) são grandes aglomerados populacionais, zonas industriais e comerciais. Ora viajamos por largas estradas mais recentes, ora entramos em labirintos mal empedrados sem passeios para peões (que arriscam exercícios de sobrevivência nas voltas do dia a dia). Tento imaginar as redes de água, saneamento e esgotos para esta diversíssima e aparentemente caótica combinação de casas rurais, bairros urbanos, fábricas, centros comerciais. E pasmo a olhar para os locais de recolha de lixos domésticos transbordantes de restos de vida que mais parecem lixeiras a céu aberto e desmentem qualquer boa intenção dos ecopontos em que tropeçamos a cada passo. A câmara autoriza a edificação urbana neste mundo em desenvolvimento(?) sem garantir serviços públicos que apoiem a vida das comunidades fixadas a dois passos da metrópole do Porto ou das suas próprias concentrações industriais. Não será assim com as outras?

Leio os jornais locais. Lourosa, Lamas, etc reclamam autonomia para o norte industrial da Feira enquanto atribuem méritos de programador cultural e turísitico ao presidente da câmara da cidade da Feira. O presidente da câmara feirense desvaloriza as declarações do seu duende partidário Marques Mendes sobre a área metropolitana de Aveiro, a favor da inclusão na área metropolitana do Porto ou de uma região que abarque os municípios correspondentes ao Centro da Área Educativa Aveiro Norte (já ligado à DRE do Porto e ao Sindicato dos Professores do Porto), acrescentada do município de Ovar.

Ouço as pessoas falar e é como se estivesse do lado de lá.
Sei que Aveiro perdeu o norte. E, perdido o norte, desnorteado, Aveiro não é mais que a bela cidade da lágrima de sal. A indignação também chora?

[o aveiro, 31/07/2003]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...