ciência prática
E, a respeito das praxes, ouvi (e li n'O Público de 7/11 ) o Ministro da Ciência afirmar que as escolas do ensino superior "não devem ser escolas de submissão e de iniciação a práticas fascistas" e que é "absolutamente contra aquilo que se designa, com algum humor sádico e machista, por praxes académicas, como se nos devêssemos rir disso". Acrescentava que essas praxes "são uma escola de falta de democracia e fascismo" e que "devia haver uma atitude de menos complacência por parte de todos, nas universidades e fora delas".
Sabemos bem como a Universidade tolera a actividade das hordas praxistas. E é intolerável essa atitude que acaba por legitimar a um certo nível as palhaçadas que, por vezes, acabam em verdadeiros crimes (sem culpados?). Afirmou o Ministro que é preciso "aplicar a lei e exigir o seu cumprimento dentro das universidades", que não se podem aceitar assédio e humilhações em sítio algum e que "não há paraísos para a humilhação ou para práticas fascistas" e que, se os houver, "esses paraísos não podem estar dentro do ensino superior". Mariano Gago afiança que irá tomar "o máximo de medidas que seja possível" e pede "que aqueles que sejam vítimas se queixem", pois ""se o não fizerem estarão a ser cúmplices dessa barbaridade".
Somos solidários com a revolta do Ministro e com as vítimas. Sem aceitar que haja patrocinadores para esta vida selvagem nem a cumplicidade das autoridades das academias e das cidades, tenho de lamentar que, para falar disto, seja preciso haver novas vítimas capazes da denúncia.
Não são públicas e notórias estas demonstrações dos velhíssimos veteranos da parvoíce juvenil? Um dia ainda vamos ser espantados pelo espancamento dos veteranos às mãos de jovens cansados de tanta humilhação e cansados do estado descansado.
[o aveiro; 10/11/2005]
mel
qualquer coisa nas gavetas; remexeu
no armário, nos bolsos dos casacos,
dos capotes e de cabeça e mãos
na cómoda tirou tudo para fora.
Virou do avesso até a cozinha.
Passava de um quarto para outro
sem me ligar.
Quando começou a revistar a minha cama
perguntei-lhe: que procuras?
Não sei. Primeiro procurava um prego,
a seguir um botão, depois queria fazer café
e agora preciso que me digas alguma coisa,
nem que seja uma tolice.
[cantèda vintitrè; mel;
tonino guerra, mário rui oliveira]
prova de vida
Fiz parte de um pequeno grupo que concebeu e discutiu com professores os programas de matemática. Há poucos processos que tenham merecido tantos debates como esse. Anos passados nesse trabalho e de reflexão sobre ele, podemos ver-nos reflectidos em parte nas opiniões que se fizeram ouvir, ver estabelecidas novas formas democráticas de autoria e autoridade.
Apesar da qualidade da discussão, reconhecemos que poucas vezes sentimos a necessidade do debate fora das multidões que aderem tecnicamente aos argumentos a favor e contra as decisões programáticas. Na falta de melhor participação cidadã, comparamos com o que foi antes de nós e aceitamos as limitações como sendo coisa inevitável.
Convencidos sobre a fatalidade das limitações e munidos com a arrogância de quem não espera aprender em discussões sobre as adaptações do geral a este ou aquele subsistema específico, aceitámos adequar programas gerais de ensino ao ensino recorrente, ao ensino profissional ou à educação e formação. Nem nós, nem outro além de nós se lembrou de ouvir uma ou outra comunidade sobre quaisquer aspectos da nossa acção.
Essa acção influencia a vida toda de muitas pessoas em cada comunidade. Não estranhei que toda a decisão fosse feita longe de todas as ribaltas de discussão pública.
Nem imaginava que podia ser de outro modo, até que me convidaram para moderador e provocador de um debate sobre educação e formação na Murtosa. No Centro Recreativo Murtoense, na sequência de outros encontros e debates sobre variados assuntos em espaços associativos, vi-me cercado de pessoas com projecto, interessadas em levantar pontos de vista sobre o ensino e sobre a formação como quem levanta pesos e o mundo em ombros, capazes de acrescentar cor local, sabedoria e experiência ao saber de teoria feito.
Ao surpreender-se a si mesma em vida comunitária, a vida não pára de nos surpreender e, se encontra fresta aberta, cria um ensinamento maior que o anunciado no gesto de toca a reunir. Bolos e cafés, sala com história, pessoas com memória. E boas falas.
[o aveiro; 3/11/2005]
arte postal
Arranquei uma folha de papel
manteiga do meu livrinho diário.
No verso, colei um selo de 30 cêntimos
depois de escrever um nome e seu lugar,
como endereço possível.
Para saber se os melhores
correios do mundo entregam a folha
sã e salva, espero.
Ela espera sem saber.
reunião de desenhos
a reunião reunião começou ainda a tarde era uma criança luminosa.
quando acabou já o dia se tinha perdido numa escuridão outonal
e eu, abandonado, perdera a mão em luta num postal quase ilustrado.
olha
olha como o céu vela por ti:
como um véu sombrio te esconde
dos inimigos vizinhos e mesmo de ti
bem podes perguntar porque estás aí ou onde
sabes que subiste para lugar nenhum
e aí ficaste sentada do lado direito
do mais simples espírito e estreito
bocal que entoa três vozes sendo um
as duas pastas
Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...
-
Nenhum de nós sabe quanto custa um abraço. Com gosto, pagamos todos os abraços solidários sem contarmos os tostões. Não regateamos o preço d...
-
se ensinas uma teoria sem teoremas não tens que dominar a arte e a técnica da demonstração podes ver que os teus aprendizes crescem cont...