o dia seguinte

1
se eu pudesse passar-me para amanhã
e já não chegasse lá nem eu nem a dor
de existir hoje nem de noite nem o dia

ai francamente! porque não me passaria?

2
tá! não posso passar-me para amanhã
e estou aqui pensando o mesmo ontem
que foi igual ao que é hoje e para onde

olho vendo o tapete que ontem esconde

3
tá bem! sempre confesso que uma boa parte
passa para o dia seguinte com manha e arte
nessa esperança de ver cortado o que quero

como dúvida e não sei fazer a ser sincero!

4
eu queria era voltar a queimar as horas como
quem queima as pestanas assim me diziam
as velhas que justificavam as horas de cordel:

romance meio lido com olhos de pisa-papel

4
e sai daí que o teu tempo acabou dá o livro
a outro a quem não deste o litro que bebeste
como se fosse verdade que o que fazes e dizes

te elege presidente do portugal dos infelizes.

contra-reforma! conta-reforma?

Um dia destes, vi uma mulher a caminhar pelo meio do rio. Espantado, dei por mim a chamar por ela, da minha margem esquerda. Ela acenava-me e continuava o seu caminho como se o rio fosse uma rua segura.

Um dia destes, o ministro das finanças disse que a segurança social está falida. Uma ameaça atómica - dizem - esta da falência do estado social para que todos nós aceitemos novas restrições, novos apertos. Disseram-me para viver sem dormir ou vivendo um pesadelo futuro. Um dia destes, os candidatos a presidente da república que apoiam as posições dos governos ps/psd/pp face à segurança social fizeram-se ouvir a dizer que não há problema e se houver vai ser resolvido. Cavaco Silva, para nos sossegar, até nos diz que já é reformado e não teme pelo futuro da sua reforma. Soares não falou da sua reforma, mas parece-me sossegado. Manuel Alegre também me parece sossegado e alegre. Mandam-me dormir descansado e garantem-me um bom sonho.

Perguntei à mulher que toma o rio pela rua se esta bomba atómica da segurança social tem alguma coisa a ver com as novidades atómicas do médio oriente dos últimos dias: pacíficas armas nucleares israelitas e aterradoras garantias do governo iraniano de que retoma os programas nucleares para fins pacíficos. Ela encolheu os ombros de funâmbula enfadada.

Cansado destas coisas atómicas que são sonhos e são pesadelos, preparo-me para acordar. A mulher que pesca espíritos no meio do rio explica-me pacientemente que as bombas atómicas já não são o que foram e muito menos o são em tempo de campanha presidencial. Perguntei à mulher o que vão fazer os velhos presidentes reformados depois de serem eleitos sobre estas preocupações atómicas de que hoje se fala. Ela disse-me:

Amanhã esqueceram-se de hoje. O que eles sabem é que a indústria nuclear, ainda que com bomba, é boa se for a nossa. E que não há problemas com as reformas ... dos políticos reformados que nem das reformas precisam. Falarão das reformas ... da segurança social, com as intenções do costume.

Por ter dito a verdade, a mulher afundou-se na fantasia. Eu acordei afogado em suor.

[o aveiro; 12/01/2006]

água na água

um dia poderás falar com exaltação
do amor sem sombra e sem mágoa

e dirás para quem ouvir o teu coração
que te sentiste a água que cai na água

a meia rasa

Só não fui para padre, porque era muito pequeno e seria motivo de risota em qualquer paróquia quando tivesse de pegar na minha meia rasa para chegar ao altar. A meia rasa era uma caixa rectangular que servia para medir cereais e, no meu caso, podia servir-me de degrau para o trabalho no altar ou para que, a ser pregador, fosse visto por cima da balaustrada do púlpito.

Uma meia rasa supriria a minha dificuldade de baixote. Ninguém punha em causa que a criança tímida pudesse aprender a essência da doutrina da igreja para a recitar ao povo dos fiéis ou até argumentar para alumiar alguma comunidade cristã com a chama da fé que me sobrava, ao que me lembro.

Embora os rapazes da minha aldeia (que me lembro de ver partir para estudar as segundas letras) tivessem ido para o seminário, eu não saí da aldeia por essa rua estreita. Nem pela outra que era vir para o sal finda a terceira classe ou, passados uns anos no sol a sol do campo, para a distância das Amercas ou dos Brasis para onde perdêramos de vista o meu pai e outros homens com valia para vingar longe da nossa miséria.

Alguém me empurrou para fora do berço e da aldeia, caí em escolas várias em busca da verdade. Nunca me fez falta a meia rasa para erguer a voz quando comecei a cantar. E aprendendo a ver, ouvir e ler dei por mim a vacilar. Mudei as vezes necessárias para continuar no essencial o mesmo. Gritei e argumentei uma boa parte da minha vida. Fracas armas as palavras nuas de quem não pode oferecer mais que a esperança da justiça e a luta pela liberdade. A democracia vale a pena como o mais rico regime em diversidade de ideias, como construção complexa. Chegámos a pensar que as nossas ideias não valiam. Mas, gloriosamente, renascíamos sempre que nos ouvíamos a falar por cima do silêncio opressivo de quem nos calava e se calava. Mais gloriosamente ainda renascemos quando resistimos à tentação da censura, à tentação da pressa.

A maioria absoluta na Câmara e na Assembleia explica pouco, torna-se rápida e obtém, por via dos votos, a aprovação das suas propostas. Com decoro, a maioria ouve os mínimos da oposição. Feito de regras, formalidades e pouco mais, o debate torna-se pobre e insuficiente. A maioria fez-se surda depois de se ter mostrado pouco menos que muda. Falta-lhe mais que meia rasa para oficiar no altar da democracia.

[o aveiro; 5/01/2005]

a ternura



o fim do ano aproximava-se e os quatro idosos davam
uma volta ao estádio municipal; na praça deserta
a passada, a conversa e as sombras lentas vão à frente

há melhor festa? quatro amigos
tanto tropeçam em pedras,
nas próprias sombras,
como na ternura.

puxam de uma gargalhada
e disparam contra a noite
até fazer dela a alvorada
do ano, manhã de amanhã.

a pele que se despe

1
tantos dias uma mágoa, uma vaga dor sempre presente
clama por ti de quem a memória lembra um bater de asas
de tantos dias numa mágoa, um oco guardado e tu ausente
em viagem feita adeus de ave migrante

quando voltas nem vens sozinha nem vestes túnica de fogo
que aqueça a noite e a lua espelhadas na gelada água
da talha que é meu corpo tolhido em tantos dias desta mágoa
de frio deserto de falha entre tu e eu de mim

2
morreremos separados sem que saibas o nome
desta mágoa, da falta de ar que é a tua ausência sufocante
e ainda menos lembres as marcas nas cartas do nosso jogo

3
desisto de um momento teu e em vez do instante que consome
animo as tuas asas de vidro e, sem olhar a memórias, chamo o fim,
esse fiel animal de sombra sempre pronto a disparar
e a ir comigo de qualquer um para outro lugar.

demonstração de força

Tenho passado os últimos  dias da minha vida a tentar responder, de uma forma construtiva, a uma exigência genérica que é feita a todo o ensino secundário. Trata-se de saber como é que os jovens aprendem a raciocinar e, em particular, como é que se chega lá - à  verdade aceite universalmente (?).
Todas as disciplinas organizam discursos sobre a sua metodologia para garantir a veracidade de uma afirmação dentro de apropriados quadros de referência. Em geral, o conjunto das disciplinas cooperam para o desenvolvimento das competências necessárias à boa argumentação (identificadas com  a capacidade de reconhecer as formas erróneas de argumentar e  de criticar argumentos que suportam alguma  tese).  Se isto é verdade para tudo quanto seja comunicação, é primordial no ensino das ciências, da matemática. Entre os que precisam de estabelecer definitivamente alguma coisa como verdade inquestionável numa comunidade de interesses,  não são raros os que se servem de referência matemática como  censura autoritária. 
Relacionada com todas  as disciplinas experimentais às quais fornece modelos e sistemas de controle dos resultados da actividade experimental, a matemática (e os seus professores) é cerne da exigência sobre a correcção dos raciocínios dos jovens e sobre a noção de prova e demonstração rigorosa. Os professores de matemática variam entre facilitadores da aprendizagem experimental  em que se reconhecem alguns modelos  matemáticos e magistrais pregadores a apresentar conceitos  matemáticos independentes de que recomendam o reconhecimento de alguma aplicação ainda que surreal. Os programas oficiais nunca determinaram o fim do ensino da matemática e suas aplicações nem o fim da aprendizagem baseada na experiência  e das conexões  entre os  diversos ramos do saber. As transformações operadas na sociedade e as mutantes  correntes educativas e culturais sobre o que seja o crescimento em graça e sabedoria também moldam (e mudam pouco)  o ensino da matemática.
Os actuais programas do ensino secundário de matemática, a  diversos  níveis de exigência, aceitam que aos professores de matemática é atribuída a responsabilidade de desenvolver diversos tipos de raciocínio, de raciocínios demonstrativos hipotético-dedutivos (com referências explícitas a oportunidades). Não inibem qualquer tipo de actividade lectiva que possa ser desenvolvida  com esse fim e permitem que os professores escolham as oportunidades mais adequadas para as condições  em que exercem  a sua actividade.
Porque é que há então tanta pressão de denúncia (na comunidade académica, em especial) sobre não restarem quaisquer vestígios de actividades demonstrativas do ensino secundário?  Os professores não cumprem os programas? Desvalorizam todas as referências ao raciocínio demonstrativo? Não  exigem, na argumentação oral e escrita, as regras de rigor e de procura  decente da verdade? Os professores de matemática tendem a dizer que o seu trabalho é vão, por não ser acompanhado de igual rigor no ensino das restantes disciplinas científicas ou das que exploram as funções da linguagem e da comunicação humanas. Não sabemos. Assumimos sim que há dificuldades intrínsecas à matemática actual na actualidade dos valores culturais e hábitos ligados às disciplinas do pensamento. Sofre da mesma erosão que sofrem todas as disciplinas que aparecem contraditórias com as práticas sociais dominantes (educação ambiental versus práticas,  por exemplo; onde estão entre os que mandam e falam, os que foram educados para pensar correctamente e falar respeitando nexos lógicos?.. ) e que são contestadas no domínio das ferramentas tecnológicas disponíveis no quotidiano e interditas na escola...
Para que o ano 2006 seja melhor, propomos construções de geometria clássica que, com recurso a ferramentas computacionais de uso livre e generalizado, podem motivar os estudantes a desenvolver o raciocínio. Os estudantes reconhecem o  princípio, definem etapas sequenciais sem subentendidos, cada uma com a matemática e as ferramentas apropriadas, para atingir um FIM.

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[a página da educação; 01/2006]

as duas pastas

Trago sempre duas pastas dentífricas dentro da pasta onde guardo também alguma roupa interior e lenços de assoar. Nunca me foram úteis a...