se um dia...
ainda que eu não encontrasse mais ninguém
tal dia seria a vida completa e plena
quanto pau a mais que ferro?
No lagoaceiro, guias a água até onde ela se some no leve areal que é onde o milho não sobrevive e a abóbora raquítica e bêbeda da tua água boleca te serve de desculpa para veres pessoas e pernas de cachopas que passem com seus carregos de feijão arrancado pelo pé.
Mal se endireitam as cachopas na voz e é para murmurar coitado do rapaz! Tão mordido está pelas folhas do milho e sem leituras que nem sabe que fazer do entrepernas! Elas conhecem o ferreiro que moldou a pá da enxada, o martelo, as orelhas. Pelo olho da enxada passa a identidade do cavador, o pau do peregrino, o cabo encerado pelo suor e com rugas e calos de gente, um cabo dos trabalhos rasgado pela cunha temperada na celha do lameiro. Elas não conhecem a marca do cavador, o cabo da enxada espetado na cova do ombro, na espreita dormente da presa, os nervos despertos para a vibração da toupeira cega quando cava o seu último túnel.
Escritos para os sons da escrita (audio blog e podcast) da voz e da música de José António Moreira
a mulher sentada
de perna traçada
a mulher sentada
e cabeça na lua
não vê sol nem solidão
ali mesmo à mão
ao cimo da rua
a liberdade passa por aqui perto
O primeiro foi um alarido de fogueiras. Ameaçou disparar à queima roupa contra a minha mão que desenha. O assunto era a indignação de alguns crentes e agentes contra os desenhos do profeta, quando os desenhos do profeta tinham partido a embrulhar coisas menos dignas. Houve quem compreendesse a indignação e até justificasse o fanatismo violento, por razões religiosas que a razão reconhece. E houve até quem achasse merecida a vingança fanática contra os loiros, de direita e xenófobos, que desenharam e publicaram. E, de joelho em terra e em nome de governos que nada publicaram, houve quem pedisse desculpa ao profeta pelos desenhos do profeta. Este assunto atirou à queima roupa. Com a roupa queimada de medo, apesar de não gostar dos desenhos, de os achar execráveis e irresponsáveis, venho aqui defender que, quem assim o decidir, tem o direito de os publicar. E dar-me, a mim e a toda a gente, o direito de criticar, de processar e de desenhar esses artistas em indecorosas posições de rabo para o ar. A liberdade é também a liberdade de reinventar os profetas todos. E de escrevermos que, neste assunto como noutros, ?quanto mais nos baixamos, mais o sangue nos sobe à cabeça?.
Na segunda cena vê-se, em primeiro plano, uma manifestação de calções e apitos entredentes de ouro. Um major reformado de barba branca reaparecia reluzente nos seus calções de amador profissional à cabeça da manifestação de calções. Para os calções e para a televisão, vociferava contra um presidente em retirada estratégica por terras de senhorim e outras nunca dantes visitadas. Que rouquejava ele? Firme? Sentido? Direita volvereeee? Nah! Em sua reserva, o nosso major salivava contra o presidente retirante que não se pronunciara sobre as violações do segredo da injustiça. Aquele é o major árbitro do estado de direito. A norte da cena, a televisão segue um bruxo que, a pé e carregando o fardo da sua cruz, vai até ao sameiro para lançar um mau olhado aos árbitros contra a descida do vitória. E, de norte para o centro da cena, Felgueiras, disfarçada de peregrina vai a Fátima. Fatinha monta uma feira em Fátima: depois de uma missinha, distribui comes e bebes, lencinhos brancos bordados com seu nome e outras miudezas.
O que é que estes assuntos têm em comum? A animação! A animação! Roguei a Deus que tudo isto se passasse com bonecos animados e nós, finalmente acordados, nos pudéssemos rir porque tinha sido tudo fruto da imaginação.
Já não adianta rezar! Os assaltos são reais! O sobressalto é grande. Lá terá de ser! Aceitamos o exorcismo.
[o aveiro; 16/02/2006]
o beijo do ferreiro, a marca
Quando a filha do ferreiro desinfectava a agulha da seringa no álcool ardente e te distraíam até que, em teu delírio, perdesses a vergonha antes que te perdesses na dor, sobrava de ti um afogado em suor, no mar da vergonha e da raiva de te lembrares do pesadelo do delírio.
Na ideia absurda, mas verdadeira, que atazanava os teus cornos de aço, a razão era a tua. A tua razão não tinha que ser razão para toda a gente.
Escritos para os sons da escrita (audio blog e podcast) da voz e da música de José António Moreira
a estrada nacional 109
Uma guitarra e piões em madeira. Bustos de mulher em pedra de ançã de antigas lápides do cemitério,
Melhor me lembro como a minha avó as desfez a golpes certeiros do machado afiado para o outono da lenha do inverno e de todo o ano.
Antes fosse bêbedo meu avô sem arte, sem literatura e sem mistério. Assim ninguém o via quando ele vagueava no seu modo translúcido de uma garrafa para outra de aniz escarchado depois de já ter bebido toda a genebra que havia na aldeia, todo gin e todo o whisky.
Por via dele tinham entrado no comércio local. Por via da minha avó tinham saído, que as proibia à medida que se esgotavam os stocks.
Escritos para os sons da escrita (audio blog e podcast) da voz e da música de José António Moreira
a casa do ferreiro.
Escondido entre pinheiros e incêndios, masturbaste a tua aldeia. Ou foi outra aldeia qualquer? Ou foi mulher que o desejasse e não te desejasse em mais que à tua mão decepada na guerra colonial e logo substituída por um toco de madeira verde para depois ser puída pela tua vida. És uma carícia de pau envernizada. Honesta caricatura de carícia, mas não mais que isso.
Antes assim que peso morto em contentor de chumbo! - dizias tu para quem te queria ouvir. Não sei se acreditavas nisso que dizias. Eu acreditava.
De que me hei-de lembrar? Se a aldeia tal como a conheci nem existe já e as pessoas fugiram a sete pés de lá para fugir dos seus mortos que não páram de as atazanar com as promessas por cumprir e a inveja da vida que levam antes da morte que as leve. A aldeia é a cobrança coerciva de uma dívida que nunca existiu senão como sentimento de culpa pelos gatos que se afogaram cumprindo ordens ou outras maldições menores tais como pecados mortais que não matavam, da cobiça da mulher alheia, da inveja e da preguiça. Os outros nomes dos pecados nem sabíamos o que queriam dizer. Como podíamos cometê-los? Devo dizer que ninguém cobiçava a mulher alheia que para ali estava como se não estivesse neste mundo. Nós só pensávamos que era maldade da parte de Deus não a ter levado quando era um anjo leve e não aquele peso que a aldeia inteira não conseguiu carregar aos ombros nem ninguém consegue contar o que a aldeia fez para a levar até à cova. Estavam lá todos e ninguém se lembra. Não é estranho?
Escritos para os sons da escrita (audioblog e podcast) da voz e da música de José António Moreira
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